Eça de Queiroz, o notável escritor português, autor de clássicos como Os Maias e O Crime do Padre Amaro, nunca passou por grandes dificuldades financeiras. Jornalista e diplomata, frequentou os corredores do poder e da intelectualidade locais com desenvoltura. Era o que poderia se chamar de um aristocrata. Categorização bem diferente, 118 anos depois de sua morte, de uma rua que recebeu seu nome, e que hoje é uma das principais vias de acesso ao bairro Pantanal, periferia de Duque de Caxias. Fomos até lá ouvir alguns de seus moradores sobre como as eleições de 2018 estão interferindo na vida da comunidade.
Nesta Eça de Queiroz da Baixada Fluminense, em vez das patisseries e dos finos bistrôs de Coimbra, o comércio local é abundante em borracheiros, bares, padarias, botecos e casas de alvenaria. Mas não há creches nem UPAs. Falta esgotamento sanitário adequado em quase todas as ruas, situação que se soma a problemas de mobilidade que se perpetuam por anos na localidade. O Pantanal é assim batizado em virtude da existência de terras alagadas nas sub-bacias hidrográficas dos rios Iguaçu e Sarapuí, que banham a região. Pertence ao segundo distrito do município e, diz-se por aí, abriga uma chácara que pertenceria ao histórico e controverso prefeito Tenório Cavalcante, aquele que ostentava uma capa preta e andava com uma submetralhadora a tiracolo.
Encontramos com três moradores dessa comunidade. Juliana Maia é guia de turismo e uma das idealizadoras de um projeto social, Família Lanatanpa, que dissemina a cultura hip hop na região. Acompanhada dela estão Jonathan Farias, comerciante, e Gabriel Goulart, um jovem barbeiro de 20 anos. Perguntamos, primeiramente, qual a impressão que cada um tem em relação aos debates com os candidatos a governador nas emissoras de TV e de que forma eles representam os anseios dos eleitores locais.
Faz-se um silêncio durante alguns segundos na mesa após a indagação e Juliana arrisca uma declaração. Ela considera que são tempos difíceis. Para ela, candidatos e propostas de governo são caóticos. Para ela a numerosa quantidade de pleiteadores ao governo do estado, assim como os presidenciáveis, resulta em uma divisão desnecessária de ideias. O que deveria unificar as intenções de voto passa por uma disputa por causas menores. “São pessoas estranhas, com planos estranhos. As propostas para a educação são rasas”, diz Juliana.
Jonathan confessa ter dificuldades em acompanhar os debates pois o excesso de trabalho o impede. “Não que eu não esteja interessado, mas como são muitos negócios em diferentes horários, fica impossível acompanhar. Eles dizem que a população local não se interessa pelo que acontece no cenário político.” Mas as pessoas, quando não participam, é por desânimo, ou por cansaço de tantas promessas descumpridas. Os motivos são muitos. “Têm casas lá em cima sem fossa sanitária em que moram 16 pessoas. Como é que elas vão acreditar que uma solução vai vir do poder público?”, pergunta Juliana.
Para eles, os debates na TV são insuficientes em quase tudo. O horário é inadequado, são desinteressantes enquanto transmissão de propostas, e o tempo, muito curto para se analisar criticamente os planos de governo. “Como é que alguém vai entender aquilo tudo, processar na cabeça que o que vai ser dito vai fazer parte da sua vida pelos próximos quatro anos?”, indaga-se Jonathan.
Quem sabe faz a hora
Eles não costumam esperar por milagres e fazem das urgências as suas próprias políticas. Juliana e Jonathan fazem parte de um coletivo que, de tempos em tempos, organizam festas populares e ações sociais na comunidade. Batizada de “Turma do Bem”, o coletivo que surgiu dessa necessidade de tomar as rédeas da situação arrecada alimentos para distribuição de cestas básicas. Essas ações só são possíveis, muitas vezes, por intermédio de vaquinha dos amigos. Para ganhar as cestas, a única exigência que se faz das famílias é um cadastro.
Mas matar a fome não é tudo. A educação é um dos pontos fracos do Pantanal. Toda a rede pública de ensino de Duque de Caxias está sucateada. A escola municipal Maria Clara Machado, localizada na Vila São José, bairro ao lado do Pantanal, é um exemplo. Professores estão sem receber salários desde que o prefeito Washington Reis assumiu, além de existirem diversos conflitos trabalhistas registrados no Sindicato Estadual dos Professores.
O crescimento do conservadorismo e da polarização
Durante os últimos anos, a Baixada Fluminense tem se distanciado gradativamente das agendas progressistas, tendenciando uma aproximação com políticos mais à direita. Fatores como a insegurança pública e demandas por uma resposta mais enérgica das autoridades ao avanço da criminalidade, motivam escolhas mais conservadoras. Juliana tem a sua própria interpretação do que significa ser conservador. Candidatos conservadores buscam convencer aqueles que não se sentem representados nas mudanças da sociedade, especialmente com relação ao aumento dos direitos civis das minorias, e aqueles que aceitariam comportamentos ou discursos autoritários diante dessas mudanças. “Eu acho [que ser conservador é] uma hipocrisia, porque só nessa época do ano é que o candidato posa de politicamente correto, tenta passar a imagem de uma pessoa infalível, mas se for investigar a vida dele, vai encontrar um monte de erros. Vem pra cá com seguranças, todo engomado, tira foto de uma obra que já tinha sido prometida e coloca nas redes sociais”, explica a guia de turismo.
O que impressiona também, segundo o trio, é a polarização político-partidária que também chegou nas periferias. Lula e Bolsonaro são as extremidades de uma democracia incapaz, atualmente, de detectar meios-termos. A formação política para, principalmente, os jovens na faixa dos 20 anos, segundo Juliana, são leituras de textos pouco confiáveis no Facebook, encarados como verdades absolutas. “E são essas pessoas que vão votar, baseadas apenas nessas informações!”, desabafa Jonathan.
Jonathan diz que somente jogadas de marketing explicam vitórias consideradas suspeitas. “Eles estão vendendo imagens e a que mais agradar, ganha. Só que as pessoas não correm pra saber o que está por trás de cada coisa”. O pai dele foi candidato a vereador nas últimas eleições. “Ele tem um currículo muito vasto, é uma pessoa idealizadora. Mas tiveram candidatos que toda a comunidade sabia que estavam envolvidos com tudo o que existe de mais errado e obtiveram um número muito mais expressivo de votos do que o meu pai. Muito difícil de entender isso”, diz Jonathan.
Mercado informal da política
O município de Duque de Caxias, embora periférico, é uma potência na economia industrial, abrigando empresas como Texaco, Shell, Esso, Ipiranga, White Martins, IBF, Transportes Carvalhão, Sadia, Ciferal, entre outras. O segmento está mais concentrado nos setores de química e petroquímica, estimulados pela presença da Refinaria de Duque de Caxias (REDUC), a segunda maior refinaria do país. Isso, no entanto, não se traduz em empregos. A REDUC tem 70% de sua mão-de-obra importada de outros municípios do Estado, o que compromete a inserção na economia local da riqueza produzida pela empresa.
Diante desse cenário, Gabriel, o mais tímido dos três, expõe a faceta mais incômoda de todo esse processo: o balcão de empregos temporários gerados em bolsões de miséria que se multiplicam em épocas eleitorais. Na tarde de realização dessa entrevista, impressionava o número de pessoas perfiladas, agitando bandeiras em quase toda a Rua Eça de Queiroz, numa época em que o desemprego atinge cerca de 13 milhões de pessoas. Era possível observar famílias inteiras, bem humildes, se revezando na tarefa. O próprio Gabriel aproveitou para embolsar um dinheiro a mais: “Mas são oito horas de trabalho e você ganha 400 contos trabalhando por 15 dias. Não tem dinheiro para almoço, para mais nada.”
Jonathan pergunta para Gabriel se ele conhecia as ideias, as propostas políticas do candidato ao qual estava “apoiando”. “Conheço é nada, só tava ali pelo dinheiro mesmo”, responde bem econômico nas palavras. O jovem afirma que não vai votar em ninguém, de nenhuma esfera governamental. Optou por simplesmente anular o voto. “É tudo a mesma história, a mesma coisa”.
Politizados ou não, os moradores do Pantanal formam uma síntese das contradições do país.
Fabio Leon é jornalista e ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada.