No dia 5 de abril, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) sediou um lançamento coletivo de livros seguido de um painel de debates sobre violência de Estado com os autores dos livros e outros palestrantes convidados. O evento foi parte de uma iniciativa organizada por professores do IFCS, chamada “Circuito pela Democracia“—uma série de eventos, incluindo painéis de debates, exibição de documentários, lançamentos de livros e rodas de conversa promovidas durante o mês de abril com o objetivo de discutir o Golpe Militar de 1964 e o que aconteceu nos últimos 55 anos, desde o início da ditadura militar no Brasil. Para ver a programação completa de eventos, clique aqui.
O lançamento coletivo dos livros foi apresentado e moderado pela psicóloga Daniela Sevegnani Mayorca, uma das autoras do livro Corpos Que Sofrem: Como Lidar com os Efeitos Psicossociais da Violência?. O livro é o produto de diversas palestras ministradas no Centro de Estudos em Reparação Psíquica de Santa Catarina, combinado com diferentes debates e mesas-redondas oferecidas pelos organizadores do livro.
O deputado federal Marcelo Freixo abriu o evento, destacando como os três livros lançados são projetos que deveriam abordar a violência do passado—a violência de Estado que permeou a história brasileira, especificamente durante os anos de ditadura. “Infelizmente”, ele disse, “esses livros são uma ferramenta relevante para os dias de hoje também”, a fim de chamar a atenção para a normalização e institucionalização da violência no Brasil. Ele mencionou a reforma da previdência social que vem sendo altamente debatida, uma vez que “tal reforma é algo muito violento, é algo que vai aumentar as desigualdades sociais do país”.
Freixo, então, falou sobre o papel das universidades na luta contra o fascismo, referindo-se a um debate que havia ocorrido mais cedo naquele mesmo dia em frente à UFRJ do qual ele participou, apesar das tentativas, por parte de deputados do Partido Social Liberal (PSL), de barrar seu comparecimento. “As universidades não podem se curvar diante do fascismo, porque são os primeiros lugares que vão fechar—os primeiros lugares que vão impedir que funcionem”, declarou. De acordo com Freixo, a corrente luta política é muito complexa e a oposição tem o papel crucial de reconstruir a esperança coletiva. Ele afirmou que prefere não usar o termo “resistência” porque “parece que está vindo um tempo de perda, e eu não quero perder—eu quero avançar”. Freixo concluiu dizendo que a saúde, bem como a saúde mental, são ferramentas importantes para se construir esperança que deveriam ser usadas para lutar contra a notória violência do governo atual.
Olivia Morgado Françozo, psicóloga e coautora do livro Clínica Política: A Experiência do Centro de Estudos em Reparação Psíquica ‘Lá em Acari’, tomou o palco em seguida. O livro é a culminação do projeto Centro de Estudos em Reparação Psíquica (CERP) do Instituto de Estudos da Religião (ISER), que surgiu através de uma parceria entre o Fundo Newton do Conselho Britânico e a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça brasileiro. O projeto visa desenvolver ferramentas para ajudar profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) a trabalharem com indivíduos que lidam com o trauma resultante da violência de Estado da ditadura passada. O projeto envolve aproximadamente trinta profissionais da favela de Acari, na Zona Norte do Rio, muitos dos quais agora coordenam grupos clínicos com famílias das vítimas, com o objetivo de ajudar a remediar os efeitos psicossociais da violência de Estado.
Olívia contou que o projeto tinha como intenção abordar a violência de Estado passada. “Quando a gente começou a fazer este projeto, como freixo falou, a gente não tinha ideia do quanto esses livros seriam absolutamente atuais”. O livro inclui resultados de cinco meses de palestras técnicas semanais sobre questões como o silenciamento e a banalização da violência. Esses fenômenos têm sido “tão frequentes, tão antigos e com uma repetição tão grande, que os casos de violência não chegavam as autoridades, como demanda de tratamento. A gente estava atuando em uma da regiões mais violentas do Rio de Janeiro, notadamente violenta, e o que a gente ouvia dos profissionais [de saúde] era que os casos não chegavam. Então a gente se perguntou, porque estes casos não chegam?” De acordo com Olívia, a resposta está, parcialmente, na individualização da violência. Para lidar com esse problema, ela destacou a importância de se construir experiências coletivas e de se entender que “o assassinato é uma coisa que muda a família, muda a comunidade, muda os vizinhos, muda o país”. Isso é crucial para, propriamente, se alcançar, compreender e tratar indivíduos e comunidades que lidam com traumas resultantes da violência de Estado. É por isso, que a estratégia de terapias de grupo foi considerada essencial a fim de desindividualizar a violência e, ao mesmo tempo, intervir nas experiências privadas dos indivíduos.
Tânia Kolker, analista institucional e coautora de Clínica Política, elaborou sobre o apontamento de Olívia, afirmando que políticas públicas não devem apenas mirar os efeitos tangíveis e visíveis da violência de Estado—como aqueles perpetrados durante a ditadura—mas devem também se estender a todos os indivíduos e grupos que são afetados indiretamente por todas as formas de violência. Ela reforçou que o evento não é apenas um lançamento de livros, mas também uma ocasião para se lembrar o aniversário de 55 anos do Golpe de 1964 e da violência que foi perpetrada pelo governo durante o período obscuro da ditadura. Finalmente, ela enfatizou a importância de se ocupar as ruas e os espaços acadêmicos para intensificar as discussões sobre essas questões, porque fazer isso “é um importante ato de resistência”, particularmente no atual momento político.
A última publicação, Reparação Como Política: Reflexões Sobre as Respostas À Violência de Estado no Rio de Janeiro, foi apresentada por dois de seus quatro autores, Lucas Pedretti e Rafaela Albergaria. O projeto de pesquisa, do qual o livro foi um resultado, é também uma iniciativa do ISER e aborda a política do Rio de Janeiro de reparação da violência de Estado ao discutir de forma crítica o passado e o presente. Lucas reforçou, desde o início, que “toda a violência do presente é de certa maneira um fruto, um legado da violência da ditadura”. Ele debateu as políticas de reparação e como “têm outras violências que jamais foram objeto de qualquer tipo de política pública” e que, por sua vez, permitiram que a naturalização das “mortes de corpos negros e periféricos” acontecessem. “É necessário falar de reparação, mas também de memória, de verdade, e de justiça em relação a outros períodos de violência, como esse momento atual da violência, que é o genocídio da população negra e favelada no Rio de Janeiro”, disse Lucas.
Rafaela Albergaria continuou com fervor na mesma linha. Ela reforçou que o racismo é um problema estrutural e institucional no Brasil, um país que foi “fundado e forjado pela violência racializada”—primeiro contra os povos indígenas, depois contra os escravos negros, posteriormente contra opositores da ditadura e hoje contra as populações negras. O livro é crucial para se entender que “a violência é sistemática e que não se pode falar sobre violência sem falar sobre racismo… e como nós [corpos negros] têm sido historicamente retratados como corpos matáveis”, ela disse. De acordo com Rafaela, e conforme discutido em sua publicação, políticas públicas precisam endereçar e ser capazes de parar a continuidade da violência passada que ocorre no presente. Aí reside o significado de reparação: se é verdade que o homicídio nunca pode ser verdadeiramente reparado para a família da vítima, o que a política de reparação pode fazer é garantir que a violência pare de ser negada para que seus autores sejam responsabilizados, o governo seja igualmente imputado e as vítimas sejam tratadas como vítimas.