Nos dias 13 e 14 de abril foi realizado o maior evento cultural indígena do Rio de Janeiro: o Dia do Índio no Parque Lage. A Associação Indígena Aldeia Maracanã (AIAM) em parceria com a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), abriram um espaço para a exposição e venda de artesanato indígena tradicional, apresentações de grupos culturais, rodas de conversa e mesas de debate sobre a questão indígena atual.
A AIAM, exemplo de resistência indígena, acolhe e reúne desde 2006 várias etnias em contexto urbano na cidade do Rio de Janeiro. Para a comemoração do Dia do Índio, ela conseguiu congregar mais de cem indígenas do Brasil, que pertencem às etnias Pataxó, Guarani, Tukano, Tikuna, Puri, Potiguaras, Guajajara, Huni-kuin, Ashaninka, Uitoto, entre outras.
Ao confraternizar, os povos originários reconhecem suas práticas e crenças, o que permite a preservação de culturas milenárias. Além disso, esses tipos de encontros servem como oportunidade de junção de narrativas, intercâmbio de estratégias e interação entre os povos indígenas e pessoas não indígenas. É necessário abrir portais culturais entre os povos, “fortalecendo o espírito, centrifugando as forças para vencer essa batalha, essa batalha que não é só do índio, pois deve ser a batalha do ser humano”, como disse Tobi Itaúna, pajé e dono de uma loja de ervas medicinais. O Brasil passa por um contexto onde a união deve mostrar-se mais potente que nunca, pois a riqueza e diversidade indígena estão em risco iminente.
A terra: importância da recorrência do debate e o que implica para a cultura indígena
A protagonista nas rodas de conversas e mesas de debates foi sem dúvida a temática da disputa pela terra. Desde 1500 o sistema colonial subjugou aos povos que moravam nos territórios invadidos, e tirou-lhes sua cultura e seu lar. Reparações não se completam por conta da falta de governança nas regiões mais afetadas, legislações ambientais flexíveis e preconceitos nocivos. Esses elementos fazem da terra uma questão completamente contemporânea e um debate necessário.
Assistimos constantemente grandes obras desenvolvimentistas que servem como “motor da economia”, porém esses projetos atropelam as áreas protegidas. Efetivamente, a floresta está em perigo graças a um ritmo de exploração e desejo de crescimento econômico insustentável, que mina todo direito constitucional ou acordo internacional. Por isso, a demarcação de Terras Indígenas (TIs) se tornou o ponto central do debate, pois é um dos poucos mecanismos que permite garantir tacitamente a proteção das florestas e dos povos que dependem dela para viver.
Para os povos indígenas a terra é mais do que o espaço que os sustenta com as riquezas naturais ali presentes. Em uma das mesas de debates do evento montadas na grande Oca Kupixawa, Tobi Itaúna disse que temos que ser conscientes da “importância e valor da terra”. Ele afirmou que a natureza fornece as condições necessárias para a reprodução física e cultural das populações indígenas, e que atacar a terra é atacar as comunidades que nela habitam.
Tobi Itaúna acabou seu comovedor discurso dizendo que o índio quer terra “para salvar o planeta” porque “onde tem terra, tem mata, tem animal e onde tem mata, tem água”, elementos que asseguram a base da nossa existência. Aliás, as Terras Indígenas são as áreas com maior índice de preservação ambiental do Brasil.
No entanto, o panorama não parece avançar, com o presidente atual tendo prometido que em seu mandato a terra indígena protegida não aumentará nem um centímetro. À vista disso, o patamar de direitos conquistados cambaleia frente as grandes entraves governamentais.
A guerra declarada do Estado contra o índio
“No dia em que não houver lugar para o índio no mundo, não haverá lugar para mais ninguém”, já dizia Ailton Krenak, uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, reconhecido por seu discurso na Assembleia Constituinte em 1987, quando defendeu a emenda constitucional da União de Nações Indígenas. Essa emenda foi considerada uma vitória porque reconhecia pela primeira vez aos indígenas e a sua terra na nação brasileira.
No entanto, as instituições são aquelas que mais agridem aos povos ancestrais. Em pouco mais de 100 dias de governo as ofensivas foram diretas e mercenárias: Desde o primeiro dia de governo, Bolsonaro decretou uma Medida Provisória (MP) Nº 870/2019 que busca transferir a identificação das Terras Indígenas do Ministério de Justiça para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, comandado pela bancada ruralista. De igual maneira, o órgão federal encarregado das questões indígenas, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), seria esvaziado e perderia as atribuições que lhe foram dadas há mais de 50 anos. Pouco tempo depois, a administração propôs o desmantelamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Ademais, membros do Partido Social liberal (PSL) como o deputado Rodrigo Amorim têm incitado o ódio e o preconceito pelos indígenas, inclusive injuriando a Aldeia Maracanã.
O desrespeito aos direitos constitucionais desses povos tangencia problemas profundos com respeito ao desmatamento, a invasão de áreas protegidas, as atividades ilegais de extração de madeira e minérios, o benefício de corporações e segurança das lideranças indígenas.
Chamamento a todos os indígenas e o Acampamento Terra Livre 2019
“Não conseguiram matar as nossas raízes. Resistir para lutar. Viver e lutar até morrer e nunca jamais matar. Força a todos nós! Irmãos, unidos seremos mais fortes” recitava uma líder indígena na cerimônia do encerramento do evento no Parque Lage. O forte componente político do encontro deixou bem esclarecida a vontade dos povos indígenas de seguir combatendo contra qualquer constrangimento. Por isso, do 24 ao 26 de abril representantes de todas as comunidades indígenas do Brasil têm se reunido em Brasília, na esplanada dos ministérios. A ocupação desse espaço é conhecida como o Acampamento Terra Livre (ATL) e é organizada pela a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Ela conta com atividades culturais, manifestações políticas, palestras e contato com personagens de diversas esferas para falar sobre o turvo futuro dos diferentes grupos étnicos.
O líder Pataxó, Arassari Pataxó, falou em uma das palestras que a mobilização “vai começar no 24 de abril, mas vai durar até que ele [o Presidente] aprenda a respeitá-los”. Ele acrescenta: “nós estamos aqui antes da conquista, há milhares de anos. Não é agora que um presidente vai nos destruir”. As diversas lideranças reiteraram no evento que contam com o apoio do povo brasileiro.
Perspectivas de futuro
Dois dias inteiros de cantos, cultura, debate, articulações políticas entre povos indígenas geraram resultado. A presidenta do AIAM, Marize Guaraní, despediu-se do público dizendo que “voltam para casa felizes com o dever cumprido novamente, mas também com a alma cheia de energia por estar aqui, sonhar juntos, levar juntos outros sonhos e outras certezas das lutas que precisam ter nos próximos meses”.
Essas comemorações permitem desmistificar o outro, acabar com a ignorância do que significa fazer parte de um povo indígena, seu jeito de pensar e suas condições fundamentais para perpetuar sua existência. Elas motivam também o trabalho em comunhão e dão força para seguir visibilizando as injustiças, denunciando os abusos e conservando os direitos indígenas.