O RioOnWatch publica regularmente matérias sobre a luta pelo direito à terra nas favelas do Rio de Janeiro. Com isso em mente, ocasionalmente publicamos também artigos que, como este, retratam conflitos mais abrangentes em torno do direito à terra no Brasil e até mesmo no mundo.
Na madrugada do dia 6 de abril, um sábado, moradores de Acará, um município fora de Belém, capital do estado do Pará, na Região Amazônica, acordaram com a notícia desagradável de que uma balsa de transporte havia colidido com os pilares de sustentação de uma grande ponte na área, fazendo com que ela desmoronasse no Rio Moju. A ponte faz parte do corredor de transporte de Alça Viária, ligando Belém ao interior do estado.
Ninguém foi morto ou ferido no acidente, mas em entrevista ao jornal O Globo, a moradora local Adriana Lameira relatou ter ouvido barulhos altos e “pessoas gritaram socorro, socorro” quando a ponte caiu. Adriana e seu marido, Vagner Carvalho, até alegaram ter visto um carro cair na água quando o acidente aconteceu. Os bombeiros resgataram membros da tripulação do barco que causou o acidente e continuaram sua busca por vítimas adicionais no domingo e segunda-feira. Enquanto isso, os moradores da área estão em situação de emergência, decretado pelo estado, e não poderão acessar as principais estradas, hospitais, escolas e centros comunitários por um período indefinido de tempo.
Ignorando o papel das políticas públicas anti-ambientais em causar desastres fatais que impactam os moradores locais, Helder Barbalho, governador do Pará, em entrevista coletiva na manhã de domingo dia 7, insinuou que a estrutura da ponte era singularmente responsável pelo incidente e publicamente se empenhou em garantir “a celeridade e segurança nesta manutenção [da ponte], garantindo assim a indispensável mobilidade da região”.
A balsa que causou o acidente estava transportando resíduos de óleo de palma para serem usados como fertilizantes, que foram comprados diretamente do conglomerado de óleo de palma BioPalma. A BioPalma é uma subsidiária menos conhecida da Vale S.A., o conglomerado internacional cuja negligência causou os desastres de mineração fatais em Brumadinho e Mariana. Somente no Brasil, de acordo com a Amazon Watch, a Vale está envolvida em apropriações de terras, evasão fiscal, intimidações de funcionários, contaminação da água, promoção da prostituição infantil e práticas trabalhistas ilegais.
Desde que a BioPalma começou a operar no Pará em 2012, a empresa está envolvida em constantes conflitos com comunidades locais, ativistas dos direitos fundiários e ex-funcionários. Em 2015, um grupo de ativistas indígenas ocupou uma plantação da BioPalma em Comarca de Acará, no Pará, para denunciar o desmatamento ilegal e a poluição agroquímica. Em 15 de abril de 2018, um líder quilombola de 33 anos, Nazildo dos Santos Brito, que havia organizado o protesto em Acará, foi brutalmente assassinado. Três meses antes da morte de Nazildo, ele havia pedido sem sucesso ao Ministério Público Federal por proteção, proteção que ele considerava necessária, uma vez que ele havia sido ameaçado por funcionários da BioPalma que estavam irritados com sua resistência ao uso de terras indígenas para a produção do óleo. Em janeiro de 2019, uma investigação policial concluiu que os produtores de óleo de palma locais haviam matado Nazildo, mas se recusaram a comentar sobre a conexão da BioPalma com o caso. Sem surpresa, a Vale S.A. e BioPalma também ficaram em silêncio. Em entrevista à Amazônia Real, a viúva de Nazildo, Ivonete dos Santos, disse que seu marido queria “fazer um futuro melhor para as crianças que estão nascendo hoje dentro da comunidade” e repetidamente enfatizou que seu marido foi assassinado porque se recusou a abrir mão de sua terra para a indústria de palma. “Todo mundo vive com medo”, disse Ivonete, mas “o mais importante é não deixar morrer o sonho do Nazildo”.
A BioPalma foi novamente implicada em violações de direitos humanos em 2018, quando um ex-funcionário processou a empresa por práticas ilegais de trabalho. O requerente foi forçado a trabalhar “faça chuva ou faça sol” das 6 da manhã às 6 da tarde com apenas 15 minutos de intervalo para o almoço. Depoimentos do caso revelaram que a BioPalma não fornecia água potável aos seus empregados ou banheiros em suas plantações de palmeiras. A companhia recebeu uma pequena multa do governo, mas suas operações no Pará foram essencialmente desinibidas.
Em um breve comunicado no dia 9 de abril, a BioPalma negou a responsabilidade pelo acidente de Alça Viária e alegou—mas não provou—que os resíduos de óleo de palma estavam sendo transportados por “terceiros”. As autoridades do estado do Pará continuaram com seu padrão de impunidade. A Vale SA e BioPalma mantiveram o silêncio sobre o assunto.
A BioPalma afirma em todos os seus documentos públicos que a empresa mantém rígidos padrões de direitos humanos e ambientais. Por mais chocante que isso possa parecer, a BioPalma tem motivos para se sentir à vontade para fazer essas afirmações descaradas. A Vale S.A. e a BioPalma são membros do Pacto Global das Nações Unidas (UNGC) e da Corporate Human Rights Benchmark (CHRB). Essas organizações de prestígio são responsáveis por monitorar e verificar as práticas de direitos humanos e sustentabilidade de suas empresas associadas. No entanto, embora a atividade de mineração da Vale S.A. tenha sido advertida pelo CHRB depois de Brumadinho, nenhuma organização jamais condenou especificamente o comportamento abusivo da BioPalma no Pará. De fato, UNGC e Vale S.A. publicaram em conjunto documentos que elogiam os “esforços de caridade” da BioPalma na região. Recentemente, em novembro de 2018, meses após o assassinato de Nazildo, o CHRB afirmou que a empresa vinha “aprimorando a sua gestão de direitos humanos a partir de processos de due diligence, melhorias nos mecanismos de escuta às manifestações da comunidade e maior transparência na divulgação de informações da empresa relacionadas ao tema para o mercado”.
A BioPalma não é a única produtora de óleo de palma responsável por danificar a infraestrutura local e violar os direitos humanos no Pará. Na verdade, um acidente quase idêntico ocorreu em março de 2014, quando um barco da AgroPalma licenciado bateu em outra ponte sobre o Rio Moju e causou o desmoronamento parcial da ponte. A AgroPalma vende seu produto para inúmeros fabricantes de alimentos, bebidas e bens domésticos. A empresa é reconhecida pela Mesa Redonda sobre Óleo de Palma Sustentável (RSPO), o mais importante órgão certificador para empresas de óleo de palma, como uma empresa Supply Chain Council (SCC). A RSPO é uma iniciativa com vários interessados, composta por produtores, consumidores e ONGs ambientais (The World Wildlife Fund e The Nature Conservancy). A RSPO afirma promover “o crescimento e uso de produtos de palma sustentáveis por meio de padrões globais confiáveis e engajamento de partes interessadas”. Empresas como BioPalma e AgroPalma exibem a certificação RSPO SCC, bem como outros rótulos como “orgânico” e “comércio justo” como provas de que a cadeia de fornecimento de óleo de palma mantém fortes padrões ambientais, de segurança e de direitos humanos. Na época do acidente de 2014, um porta-voz da AgroPalma alegou que a empresa não tinha responsabilidade pelos danos porque o barco era operado por um contratante. Isso contradiz as diretrizes da RSPO, que determinam que a AgroPalma e todos os outros órgãos certificados pela RSPO sejam responsáveis por quaisquer acidentes ou violações éticas cometidas por terceirizados. Embora os padrões da RSPO estabeleçam claramente a balsa de transporte que causou a tragédia de 2014 sob a jurisdição da AgroPalma, a empresa nunca foi repreendida pela RSPO ou pelo governo estadual do Pará por sua gestão negligente da cadeia de suprimentos.
É irresponsável para autoridades públicas como Helder Barbalho culparem esses desastres às infraestruturas, quando uma grande parte da culpa deve ser atribuída à negligência corporativa da BioPalma e da AgroPalma. No entanto, é igualmente irresponsável para o UNGC, o CHRB e o RSPO continuar a certificar as práticas de gestão da cadeia de fornecimento BioPalma e AgroPalma quando colocam em risco a vida dos residentes locais. Em teoria, esquemas de certificação como o RSPO fornecem aos clientes e consumidores da AgroPalma uma referência para amenizar suas preocupações ambientais e sociais. Na prática, empresas como BioPalma e AgroPalma escolhem cuidadosamente os diferentes padrões e certificados de que participam.
A AgroPalma só trabalha para obter um certificado ambiental quando os compradores o exigem. Por exemplo, a AgroPalma por sua vez considerou obter a certificação da Rainforest Alliance (RA), mas optou por sair. Os consumidores, ao que parece, consideraram a certificação RA “redundante”, dadas as certificações ambientais RSPO da AgroPalma. Embora o valor de mercado da aprovação da RA possa ser mínimo, a organização avalia o desmatamento muito mais do que outros organismos de certificação, como o RSPO, que nem usa métodos simples como a análise de dados de sensoriamento remoto para verificar a sustentabilidade de suas empresas certificadas.
O RSPO também faz distinção entre áreas com alta cobertura florestal das de baixa cobertura florestal (menos de 80%), dando aos membros permissão para desmatar em áreas onde mais de 20% da cobertura arbórea já foi removida. Os registros públicos do status “zero-desmatamento” da AgroPalma são quase exclusivamente publicados pela própria AgroPalma e são baseados em padrões estabelecidos pela RSPO e suas afiliadas (ou seja, o Palm Oil Innovation Group). Parece notável que a AgroPalma tenha mantido seu status de “desmatamento zero” sob a certificação RSPO, especialmente considerando que a indústria agrícola comercial contribuiu significativamente para os 12% do declínio da cobertura florestal do Pará entre 2000 e 2017. É importante notar que a AgroPalma não é a única produtora de óleo de palma na região e existem outras indústrias que contribuem para essa perda de cobertura vegetal. No entanto, as práticas de desmatamento da AgroPalma exigem um exame mais detalhado do que o que a RSPO exige atualmente para que a floresta amazônica do Pará seja protegida adequadamente.
A natureza negligente da certificação RSPO não afeta apenas o desmatamento realizado pela AgroPalma. Há uma razão real para acreditar que a fraca estrutura de relatórios da RSPO permite que a AgroPalma explore sua força de trabalho. Uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal do Pará analisou registros de processos judiciais movidos contra a AgroPalma por um pequeno grupo de funcionários e ficou chocada ao descobrir que os trabalhadores são obrigados a chegar ao trabalho às 3h e devem pulverizar pesticidas em pelo menos 1,9 quilômetros quadrados de terra por dia. “As mulheres que trabalham nas plantações da AgroPalma reclamaram que tinham que encher pelo menos três sacas de 60 kg de palmito por dia para poderem ser compensadas pelo seu trabalho”, segundo um relatório divulgado pelos pesquisadores da UFPA, Vania Araújo e Daniela Correa. Embora esses padrões sejam abusivos e contrários às práticas de comércio justo que a RSPO prenuncia apoiar, a RSPO confere à AgroPalma total liberdade de escolha sobre qual terra é escolhida para revisão pelo órgão certificador. Assim, a AgroPalma pode intencionalmente deixar quaisquer áreas ou processos dentro de sua área de responsabilidade que violem a política de RSPO, sem acompanhamento da RSPO.
A professora Nirvia Ravena, especialista em justiça ambiental do Centro de Estudos da Amazônia (NAEA) da UFPA, também acredita que as táticas de apropriação de terras da AgroPalma evidenciam ainda mais sua ética questionável. De acordo com Nirvia, pequenos proprietários de terra na Amazônia são encorajados a alugar suas tradicionais fazendas de subsistência à AgroPalma a cada 25 anos. Incluído neste contrato de arrendamento de terra há um contrato de trabalho de 25 anos—em outras palavras, os agricultores prometem, essencialmente, tanto alugar suas terras quanto trabalhar para AgroPalma por um quarto de século. Pesquisadores da UFPA documentaram que empresas como a AgroPalma atraem os agricultores, prometendo a eles até R$4.000 por mês em ganhos com o trabalho de plantação de óleo de palma. Uma vez que os agricultores assinam os contratos, as empresas prendem os agricultores em dívidas, fornecendo-lhes grandes empréstimos para o fornecimento obrigatório de materiais para produção de óleo de palma (sementes, fertilizantes, etc.) que não podem pagar. Segundo Nirvia, os agricultores também estão “sofrendo com o aumento da insegurança alimentar, já que não podem mais comer os alimentos que produzem”. Ela acredita que a natureza desses contratos a longo prazo—além dos salários miseráveis dos trabalhadores, vulnerabilidade da terra e insegurança alimentar—podem colocar a empresa em violação dos estatutos das Nações Unidas sobre a escravidão moderna. Aparentemente, a RSPO não levou em conta nenhuma dessas informações quando renovou a certificação da AgroPalma este ano.
Apesar das práticas éticas questionáveis das empresas, o caminho para a expansão parece extremamente promissor para AgroPalma e BioPalma no Brasil. Em 2017, 236 mil hectares de terra foram usados para o cultivo de óleo de palma no Brasil. A Abrapalma, o órgão que representa os produtores de óleo de palma no Brasil, prevê que esta área dobre até 2025. A demanda global por óleo de palma disparou e o mercado deve crescer de US$65,73 bilhões em 2015 para US$92,84 bilhões em 2021. Grandes empresas como Unilever, Mars, Nestlé, FrieslandCampina, Colgate-Palmolive, ConAgra, Walmart, General Mills, Kellogg’s e Danone compram de empresas de óleo de palma, como AgroPalma e BioPalma, certificadas pela RSPO. Essas empresas citam diretamente certificações de sustentabilidade como a RSPO como justificativa para o uso de óleo de palma em uma infinidade de produtos domésticos, como batom, massa de pizza, sorvete, margarina, chocolate, pão embalado e detergente.
Desastres como o desmoronamento da ponte de Alça Viária indicam que as certificações internacionais de direitos humanos como UNGC, CHRB e RSPO podem fornecer uma licença moral para BioPalma, AgroPalma e seus pares para explorar comunidades tradicionais e recursos naturais na Amazônia, mantendo uma fachada ética e sustentável para os consumidores. As empresas podem receber o apoio de ONGs ambientalistas como a WWF, que aconselham diretamente as pessoas a procurarem as etiquetas da RSPO pelas “linhas gerais necessárias para produção de palma de maneira socioambientalmente correta e responsável”, porém sem estarem sujeitas a revisões rigorosas—ou mesmo superficiais—de suas práticas de sustentabilidade. Os consumidores de óleo de palma e de produtos de óleo de palma, tanto a nível industrial quanto familiar, merecem saber que essas organizações internacionais não estão conseguindo responsabilizar as empresas. Empresas como BioPalma e AgroPalma—e o restante da indústria de óleo de palma no Brasil—devem ser pressionadas pela comunidade internacional para melhorar os comportamentos sociais e ambientais, para que o crescente comércio de óleo de palma na Amazônia não catalise uma catástrofe de direitos humanos.
Rachel Mucha é uma bolsista Fulbright que pesquisa a interseção entre a gestão dos recursos naturais e a paridade de gênero na Mata Atlântica e na Amazônia.