No último sábado, dia 28 de setembro, aconteceu na Biblioteca Parque de Manguinhos uma Oficina de Planejamento Urbano Popular organizada pelo BR Cidades, projeto que visa a construção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis e pela organização jovem Levante Popular da Juventude. A necessidade de uma oficina popular surgiu a partir da identificação da participação maciça de pessoas negras e periféricas no II Fórum BR Cidades no Rio de Janeiro, que aconteceu três meses antes, e da percepção de que é preciso pensar o planejamento urbano a partir da particularidade das experiências dessas pessoas na cidade, que por via de regra as ignora—principalmente por ser executado por profissionais e gestores públicos predominantemente brancos e privilegiados.
“A ideia é construirmos uma cidade pluriversal, com vários saberes de outras dimensões que não sejam acadêmicos, muito menos uma academia eurocentrada, que coloca os gestores públicos como protagonistas ou mesmo únicos atores do debate da gestão e do planejamento das cidades. O fato é que as grandes maiorias não estão contempladas nas políticas públicas, nem participam da formulação das políticas que gerem as suas vidas”, explicou Tainá de Paula, mulher negra, periférica, arquiteta e urbanista e coordenadora do BR Cidades no Rio. “Então a gente pensar um planejamento periférico, insurgente, popular como estamos fazendo aqui é uma tentativa de reverter o polo de pensamento sobre cidade. Não dá mais, na minha opinião, para pensarmos mitigação de conflitos e eliminação das desigualdades urbanas territoriais sem colocarmos os principais agentes envolvidos e mais interessados na reversão desse sistema. Hoje a gente pegou gente que teve que aprender projeto, planejamento urbano, política pública, noções de estado em cinco horas e desenvolveu uma estratégia para dar conta do fiasco das políticas públicas do Rio de Janeiro.”
A oficina começou com a identificação dessas vivências particulares da cidade, a partir da reação das pessoas aos temas propostos de segurança pública, saneamento e mobilidade. Foram relatadas: dificuldades de circulação devido à distância, qualidade e valor dos transportes; sensação de insegurança, principalmente com relação ao próprio Estado; precariedade das estruturas e serviços de coleta de lixo, esgoto e abastecimento de água—problemas que se materializam de forma mais cruel nas favelas e periferias. Em seguida, os participantes foram convidados a pensar a cidade que eles queriam para daqui a 100 anos. “Vamos brincar de construir outra cidade? Manguinhos pode ser nosso CCBB e a gente vir ver cinema russo aqui”, provocou Tainá. “Vamos pensar o Jacarezinho como um complexo industrial daqui a 100 anos, como já foi 100 anos atrás? Vamos pensar Campo Grande como uma área de resorts, com vários hotéis na beira do rio? Por que a gente não nada nos rios de Campo Grande?”, continuou ela.
Tainá ressaltou que em algum momento será preciso que a cidade lide com a Barra e com a Zona Sul no seu planejamento urbano pois também são pautadas em um desenvolvimento insustentável. Mas ela deixou claro que é urgente que a gente pense a Zona Norte e a Zona Oeste, onde a maior parte da população está concentrada e onde os serviços e infraestruturas são mais precários. Para pensar soluções de planejamento urbano para essas regiões, foi apresentada aos participantes a metodologia do “design thinking“, uma ferramenta para pensar soluções, que nesse caso seriam necessariamente “de baixo para cima”, isto é, partiriam das pessoas locais e não do governo.
“As soluções são dadas a partir de quem mora na região, que conhece os problemas e aponta as soluções”, disse o participante Osmar Paulino, geógrafo de Imbariê, Duque de Caxias. Ele continuou: “A oficina foi incrível para a confecção de redes; tinham pessoas de diversas regiões, coletivos; e por dar para as pessoas a ferramenta do design thinking, que elas mesmas podem multiplicar para outros contextos”.
Para Pedro Paiva, designer da Rocinha que apresentou a ferramenta junto à Magda Gomes, também da Rocinha, “design” nada mais é do que “uma palavra pomposa para significar ‘solucionar problemas'”. Isso não demanda uma educação formal—para ele, muitas vezes as universidades não estão criando soluções para o mundo real. Exemplo disso é seu avô, que criou uma cadeira para transportar a sua mulher, que não conseguia se locomover pelas ladeiras da parte alta da Rocinha, até o ponto de ônibus. “Depois outra vizinha precisou. Hoje a cadeira fica no quintal e o portão fica aberto para quem quiser usar. Ele não sabia ler, mas criava soluções para seus problemas”. Na oficina, Pedro orientou que as soluções deveriam estar orientadas para a sobrevivência do público alvo, para a tentativa de mudar o sistema e de influenciar a criação e a adoção de novas políticas.
Cada grupo então abordou um dos temas discutidos pela manhã. O primeiro passo consistia em se colocar no lugar da pessoa que passa pelo problema, depois definir o problema e o que a pessoa necessita para superá-lo. Seguia-se uma chuva de ideias de possíveis soluções e uma solução era escolhida para testar e prototipar. O grupo que tratou de mobilidade definiu que “João, trabalhador periférico que trabalha no Centro, precisa de transporte de qualidade para chegar no trabalho no horário”. A solução prototipada foi um aplicativo no qual João e outros trabalhadores poderiam pagar uma tarifa mensal fixa, de valor social, e usar os transportes públicos de maneira ilimitada. O aplicativo permitiria ainda que os usuários fizessem sugestões e denúncias de falhas nos transportes pela cidade. O uso da tecnologia para resolver os problemas de quem mais é prejudicado pelas políticas de mobilidade levou um dos participantes a concluir: “é a smart city a partir da favela”.
Já o grupo que focou na segurança pública identificou que o problema é o morador da cidade ter seu direito de ir e vir cerceado por conta das atuais políticas de segurança. A solução, portanto, passaria pela desmilitarização da polícia e o investimento de inteligência. Para isso, a ação concreta seria colocar à frente da Secretaria de Segurança um profissional que apoiasse a desmilitarização, de forma a promover a humanização das políticas públicas e um projeto de poder alternativo. “Projetos de poder atuais não nos inserem”, concordou Tainá. “Na ausência completa de planejamento ou na existência de um planejamento genocida, como no Rio, a gente tem que estimular o debate sobre esse projeto e a construção de um tecido social tão potente que consiga se estabelecer como um novo poder. Um projeto de poder periférico, popular, nosso. A gente quer radicalizar. Ou é com a gente ou não vai ser”.
O grupo que tratou do saneamento, por sua vez, partiu da experiência individual de um dos participantes, morador da região, que tem a sua casa inundada quando chove muito pela cheia do Rio Faria Timbó. O grupo escolheu, dentre todas as causas das inundações, atacar o problema da destinação incorreta do lixo, que entope bueiros e muitas vezes acaba no rio, causando obstruções. A solução proposta foi o estabelecimento de coleta seletiva, apoiada pela distribuição de folhetos informativos e a instalação de galões grafitados e coloridos para diferentes tipos de resíduos em uma praça da região, ressignificando um lugar onde moradores têm hábito de descartar o lixo.
A separação do lixo também conferiria mais eficiência ao trabalho dos catadores da região e acabaria com o problema do lixo orgânico espalhado depois que os catadores buscam o material reciclável nos resíduos e a Comlurb demora para fazer a coleta. Uma ação complementar aos folhetos nessa campanha de conscientização seria a ocupação do teatro da Biblioteca Parque—que está subutilizado—por um cineclube semanal seguido de um debate na praça em frente, no qual o primeiro filme exibido seria “É Rio ou Valão?“, que trata justamente das enchentes na área.
A ideia da oficina foi não só distribuir os saberes e tornar a linguagem do planejamento urbano mais acessível, mas produzir contribuições concretas para o planejamento urbano público do Rio de Janeiro nos próximos anos. “O Rio foi a cidade que mais recebeu investimento em planejamento, passando por grandes eventos, pelos grandes projetos de urbanização e transformação da cidade, e continua tendo um dos maiores hiatos de desenvolvimento urbano e de qualidade de vida. Não foi falta de dinheiro, não foi falta de projeto, não foi falta de planejamento, foi o projeto em si. O nosso planejamento urbano alternativo tem que estar pronto quando essa ‘panela’ explodir, porque ela vai explodir”, disse ela. “Até lá, outra grande contribuição desse curso é estimular o acompanhamento de políticas públicas, trazer não só planejadores, mas hackeadores de política, que possam ter uma atuação mais qualificada quando representa a sociedade civil nos espaços de participação”, apesar de estarmos vivendo um momento de esvaziamento dos mecanismos participação popular por parte dos atuais governos, finalizou Tainá.
Serão realizadas oficinas como essa de dois em dois meses em diferentes territórios da região metropolitana. Além disso, hoje, dia 1 de outubro, às 18:30h, haverá o lançamento da “Rede 20.21”—em alusão ao ano de 2021, para pensar a cidade para além dos anos eleitorais—no Centro Carioca de Design, que fica na Praça Tiradentes, 48. O objetivo da rede é reunir pensadores e ativistas das lutas urbanas para pensar “Ideias e Estratégias para Outra Cidade do Rio de Janeiro”.