Em um mundo cada vez mais tecnológico, correr atrás da pipa avoada ainda é uma das principais diversões na Cidade de Deus. Diante dessa observação, no Dia das Crianças, o projeto social Casa Dona Amélia, em parceria com a Marginal, apresentou a exposição fotográfica Festival de Pipa: um olhar infantil para a Cidade de Deus. O objetivo da exposição é ser uma forma de resgate da autoestima dos moradores da favela na Zona Oeste a partir do olhar fotográfico das crianças sobre sua própria comunidade. Todas as fotos acompanhando esta matéria foram produzidas pelas crianças através de oficinas ministradas pelo projeto.
A inauguração da exposição, originalmente marcada para o dia 22 de setembro, ocorreu no dia 12 de outubro. A data foi simbólica, não somente por ser o Dia das Crianças, mas também pelo fato da data original ter sido cancelada em respeito e lembrança à menina Ágatha Félix. O dia 12 de outubro foi inclusive uma oportunidade para também celebrar a sua alegria e sua infância.
Além da exibição das fotos, o evento contou com uma roda de conversa com artistas sobre espaços criativos, distribuição de pipas, uso dos brinquedos do local e uma tarde ensolarada para quem passou pela CDD. As fotos, que em breve serão expostas em outros locais, contam uma história sobre a Cidade de Deus para a própria Cidades de Deus, uma história que se contrapõe àquela contada no filme homônimo de 2002, que retratou para um mundo uma história restrita à violência urbana na favela.
Ingrid Siss, psicóloga criada na CDD, para onde sempre retorna para visitar o pai, é a idealizadora da Casa Dona Amélia, que funciona na antiga casa de seus avós. A Casa surgiu para ser um espaço multi-uso que visa potencializar o engajamento e o desenvolvimento de favelas, e fomentar o acesso à informação e ao conhecimento na CDD. O público da Casa é diverso e atrai principalmente crianças e suas mães.
Segundo Ingrid, o que a motiva a fazer esse tipo de trabalho é o prazer que ele confere. “Permitir e possibilitar que os moradores descubram fazeres diferentes. A sutileza dos encontros me encanta. Percebemos, vivemos, cada vez mais uma desigualdade que se coloca. Estamos na linha de frente para minimizar os efeitos [da desigualdade]”, coloca ela.
A Casa Dona Amélia não possuí patrocínio e sobrevive de doações, incentivos próprios e editais, como o apoio recente por meio de um edital da ONG Fase. Para manter as ações contínuas, Ingrid está reunindo documentação para transformar a casa em centro cultural. “A Casa Dona Amélia já trabalha com cultura de diferentes formas, mas ainda não nos apropriamos desse lugar, desse nome. Isso em nada quer dizer que vamos parar de trabalhar com as mães, não! Porque a gente entende que a cultura é a base para tudo. A educação e a cultura andam juntas. Vamos levantar ainda mais essa bandeira. Para sermos um local de referência ao acesso ao acolhimento, a educação e a disseminação da cultura”, sonha Ingrid.
O processo de produção do Festival de Pipa foi resultado de um circuito artístico e cultural baseado na circulação das crianças por pontos positivos do território, guiadas por agentes locais da Cidade De Deus. “Em cada encontro as crianças pensavam e desenhavam sem regras o que sentiam. Fizemos uma produção criativa e colaborativa. Tentando demonstrar o que chama atenção. O que elas podem falar sobre elas mesmas”, relata Ingrid.
A parceria com a Marginal, coletivo de comunicação da Cidade de Deus que nasce com a intenção de transpor em forma de poesia a realidade de quem vive à margem dos direitos, trouxe André Edgard, fotógrafo cria da CDD e integrante da escola Marginal, como instrutor na oficina que deu origem ao festival.
O fotógrafo acredita na fotografia como instrumento de transformação social e em ações feitas em coletivo: “Num território que é frequentemente atingido pela violência promovida pelo Estado, que nos impede de ir para a escola, para o trabalho, de viver a favela, esse tipo de prática, de estar com a molecada, de compartilhar conhecimento e afeto, se faz extremamente necessário e urgente. Por isso valorizamos cada segundo em contato as crianças”, diz ele.
“Na perspectiva da educação popular, compartilhar conhecimento não é apenas restrito a espaços físicos formais. Nós fomos para a praça em frente à Casa Dona Amélia e continuamos lá a aula prática de fotografia. E como sempre na favela—quando as estruturas permitem que a favela possa existir, sem as trágicas operações—nós finalizamos compartilhando mais um momento de alegria com as crianças numa partida de futebol na quadra da praça. E assim passou a tarde, repleta de sorrisos largos, corações abertos e crianças tendo aquilo que nunca deveria ser retirado delas, a felicidade, a alegria de ser criança”, conta André.
Para contar histórias das praças, das falas do dia-a-dia, a Marginal também realiza o projeto “Todo dia uma foto da Cidade de Deus“, que tem como objetivo desmontar o imaginário violento sobre a favela, mostrando outras narrativas, colocando o sujeito que está à margem como protagonista da sua própria história e mostrando a beleza e potência da favela.
No início de setembro, um caveirão da Polícia Militar derrubou moradias na localidade do Brejo, uma das áreas mais desinvestidas da CDD. Após o trágico episódio a PM informou que a população seria ressarcida. Embora o episódio seja triste e alarmante, a realidade para quem vive na Cidade de Deus é bem diferente do que é divulgado na grande mídia. Iniciativas como a Casa Dona Amélia e a Marginal são exemplos de pessoas de dentro da favela que valorizam as potências que o território e seus moradores têm.
“Espero que os moradores da CDD mantenham viva a esperança de uma favela melhor, com direitos garantidos, com mais acessos e possibilidades”, deseja André. Para além de olhar para a favela, precisamos de mais olhares focados nas crianças faveladas para alcançarmos um Rio de Janeiro mais justo e menos desigual.
Beatriz Carvalho, cria de Vilar dos Teles em São João de Meriti, é jornalista, mídia-ativista, feminista e toca o Mulheres de Frente.