Esta é a quarta matéria de uma série gerada por uma parceria, de um ano, com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre direitos humanos para o RioOnWatch.
Genocídio como definido na Convenção para a Prevenção e Punição de Crimes de Genocídio de 1948 das Nações Unidas é composto por atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. A palavra genocídio evoca imagens imediatas do Holocausto e de Ruanda, e a palavra foi de fato criada por um jurista judeu para se referir ao Holocausto. O Holocausto ocupa uma posição crucial na memória humana como o genocídio mais substancial da história. Ao mesmo tempo, o caso do genocídio de Ruanda é cristalino e aceito como paradigma de atrocidade.
No entanto, muitos outros conflitos no mundo de hoje são atribuídos a diferenças étnicas, raciais e religiosas. O uso da palavra genocídio é frequentemente evitado nesses casos, talvez, porque essa designação exige medidas drásticas em resposta. O Conselho de Segurança da ONU tem, de fato, a obrigação de intervir em um cenário amplamente reconhecido como genocídio. Por isso em 1994, diante da hesitação por parte do Conselho de Segurança e de membros do governo americano em chamar o que estava acontecendo em Ruanda de “genocídio” (e quando, em vez disso, o embaixador dos EUA em Ruanda, David Rawson aconselhou que se declarasse, que “atos de genocídio podem ter ocorrido”), o jornalista da Reuters, Alan Elsner, perguntou à porta-voz do Departamento de Estado americano Christine Shelley: “Quantos atos de genocídio são necessários para se constituir um genocídio?”
A história da formação do Estado brasileiro é marcada pelo extermínio de corpos e de saberes. Primeiro de etnias e comunidades diversas agrupadas sob a etiqueta de “indígenas” no imaginário europeu durante o projeto de colonização das Américas, a que seguiu-se o extermínio deliberado de não um, mas diversos povos e grupos, cujo traço comum era a cor e a origem geográfica, durante o projeto de escravização de africanos.
Ambos movimentos não se extinguem com o fim da colonização ou da escravidão. Ao longo do século XX indígenas continuaram a ser exterminados, incluindo em conflitos ambientais por recursos e por estarem no caminho de grandes projetos desenvolvimentistas, chegando ao menor contingente populacional na década de 1950 (de 3 milhões estimados em 1500 para 70.000). No Brasil, o genocídio foi reconhecido como crime a partir da Lei No. 2.889 de 1956. O caso mais conhecido de genocídio do país ocorreu em 1993: o massacre de Haximu, no qual atacaram por duas vezes um acampamento Yanomami, mutilando e matando 16 pessoas, incluindo mulheres e crianças. Entre 2003 e 2015, 742 indígenas foram assassinados, e esses números só aumentam com o projeto do governo Bolsonaro de exploração mineral na Amazônia e de empecilhos para a demarcação de terras indígenas—o que gerou um aumento de 150% nas invasões de terra e uma onda de ataques a indígenas desde as eleições de 2018.
Já no que diz respeito à população negra, observa-se no Brasil de 2019 não só o assassinato deliberado dos corpos negros, inclusive pelas mãos do Estado, mas diversas restrições de direitos e distribuição desigual de bens e serviços que têm como efeito, direto ou indireto, também o extermínio do povo negro. A chave para entender esse processo é a parte da definição da ONU para genocídio que inclui não só “assassinato e provocação de danos à integridade física ou mental de membros do grupo”, mas também “a imposição de condições de vida que possam causar sua destruição física e mental ou que impeçam a reprodução física de membros do grupo”.
Trata-se da necropolítica do filósofo camaronês Mbembe—conceito que vem sendo mobilizado por movimentos sociais para caracterizar os governos que fetichizam a morte, como do atual governador do Rio, Wilson Witzel. Enquanto isso, o próprio Witzel tem chamado de genocídio assassinatos por traficantes. O necropoder é não só o poder de gerir a vida e fazer viver (prolongar, multiplicar e disciplinar a vida, para que ela produza valor), mas também o poder de desencadear a morte e permitir que ela ocorra em alguns grupos—quando o Estado não provê serviço de saúde adequado para tratar das doenças, quando não provê água e saneamento adequados para prevenir doenças, quando encarcera e deixa o indivíduo exposto a chances maiores de morte. O necropoder, no Brasil, é informado por um racismo de Estado—critério para decidir sobre que corpos o poder da morte pode ser exercido—para decidir quem deve viver e quem deve morrer.
Assim, no Brasil de 2019, se coloca a questão: quantos atos de genocídio serão necessários para chamarmos de genocídio o extermínio do povo negro?
Quantos mais negros precisam morrer para chamarmos de genocídio o extermínio do povo negro?
Segundo a última edição, de 2017, do Atlas da Violência, publicado pelo IPEA, 75% dos indivíduos assassinados no Brasil eram negros (no Rio o percentual é de 78,4%). Apesar de 56% da população ser negra. Isto é, 49.000 pessoas em um ano em números absolutos—e à medida que a taxa de homicídios de não negros cai, a de negros cresceu 23% em 10 anos. Nessa proporção e nesse nível populacional, em 10 a 20 anos o número de mortos se igualaria ao do genocídio de Ruanda (estimado em 500.000 a 1 milhão de mortes). Um estudo empreendido no Rio de Janeiro mostrou que negros possuem 24% mais chances de serem vítimas de homicídio do que outros grupos, e que esse percentual chega a 147% aos 21 anos, quando há o pico das chances de ser vítima de homicídio. O Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial mostrou que a chance de um jovem negro ser assassinado no Brasil é quase três vezes superior à de um jovem branco. No que diz respeito à morte de mulheres negras, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019 diz que 61% das vítimas de feminicídio em 2019 foram mulheres negras.
Quantas mais chacinas?
O Rio de Janeiro sofreu 400 chacinas apenas na última década, com 1.300 mortos. Oito assassinados pelo BOPE durante uma festa de um artista local na Rocinha em 2018, a maioria de jovens negros. Cinco assassinados em Maricá numa área de lazer de um condomínio do Minha Casa, Minha Vida, todos jovens negros, atuantes em rodas de rima e em grupos da juventude socialista. Cinco jovens negros mortos pela polícia com 111 tiros dentro de um carro em Costa Barros, na Zona Norte, em 2015. Oito adolescentes assassinados pela polícia na emblemática chacina da Candelária em 1993, em sua maioria negros. Desde o crime, 44 de 70 jovens em situação de rua que foram identificados como vivendo na região também morreram, também quase todos negros. Estas são apenas algumas das chacinas, devastadoramente frequentes, experimentadas no Rio e todas seguem um perfil, assim como a abordagem policial: seus alvos são, majoritariamente, jovens negros.
Quantos mais autos de resistência?
Segundo o relatório “Você matou o meu filho”, da Anistia Internacional, que analisou todos os autos de resistência na cidade do Rio entre 2010 e 2013, quatro a cada cinco vítimas de homicídios decorrentes de intervenção policial, anteriormente chamados de autos de resistência, são homens negros. Segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, em 2018 no Brasil três em cada quatro vítimas dos autos eram pessoas negras. Além disso, são também os negros maioria entre os policiais mortos, em serviço ou não (incluindo suicídios)—policiais negros corresponderam a 51.7%% dos mortos em 2018, segundo mesmo anuário.
Quantos mais precisam ser presos para percebemos que somos um viveiro de necropolíticas?
Existem no Brasil hoje mais de 800.000 presos. Em um estudo de 2016, constatou-se que 64% (dos que tiveram informações sobre raça classificadas) são pessoas negras. No Rio de Janeiro, esse número é de 72%. O tráfico é o crime que mais leva pessoas à prisão no Brasil (um em cada três presos responde por tráfico), mas na ausência de determinações legais da quantidade de drogas que caracteriza consumo próprio ou tráfico, a decisão cabe à interpretação de quem julga, enviesada por um olhar racista. É emblemático o caso de Rafael Braga, preso com um Pinho Sol e condenado a 11 anos de prisão, enquanto brancos apreendidos com drogas permanecem em liberdade. Em São Paulo, negros são os mais condenados por tráfico e com as menores quantidades de drogas.
Além da violência de se restringir a liberdade de alguém, no Brasil, há uma chance seis vezes maior de se morrer na prisão do que em liberdade. Além da precariedade das instalações, da higiene e da alimentação, há violentos confrontos com os próprios agentes carcerários ou entre facções. Chacinas não são incomuns: em julho de 2019, 57 pessoas morreram em cinco horas em uma chacina em um presídio no Pará, 16 delas decapitadas. No Rio, em 2016 foram 257 mortos, principalmente por tuberculose e HIV.
Quantos mais precisam estar em situação de rua?
A Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, de 2008, é ainda o dado mais abrangente e confiável que se tem sobre a população de rua, que triplicou entre 2014 e 2017. Ela indicava que, em 2008, 67% das pessoas em situação de rua eram negras. Além da precariedade da vida na rua em termos de acesso a serviços e emprego, as pessoas estão ainda sujeitas a violência, a homicídios e, no caso das mulheres, à violência sexual. Em 2017, o Rio foi a terceira capital com maior número de notificações de violência contra pessoas em situação de rua. De todas as notificações do Brasil, a maioria era de violência contra negros (55%) e mulheres (51%). Somente entre março e agosto de 2017 foram registrados 69 assassinatos de pessoas em situação de rua no país e entre 2015 e 2017 foram 673 notificações de violência sexual.
Quantos mais precisam cometer suicídio?
Segundo dados do Ministério da Saúde, a taxa de suicídio entre jovens negros (até 29 anos) é 45% superior a de jovens brancos. Negros sofrem o impacto psicológico do racismo. Além disso, estão muitas vezes mais vulneráveis aos impactos psicológicos da pobreza, da falta de representatividade e pertencimento aos espaços e acúmulo de trabalhos produtivos e reprodutivos, entre outros. Além disso, têm menos acesso a profissionais de saúde mental, seja pelo custo de adquirir tal serviço, seja pelo estigma ou por despreparo dos profissionais para lidar com questões do racismo e mesmo pela pequena presença de profissionais negros no campo.
Algumas pessoas argumentam que o caso do Brasil não envolve um extermínio sistemático e deliberado e que, portanto, não devemos nos engajar no termo genocídio. Mais comum é o uso da palavra “guerra” para caracterizar a violência urbana do Rio de Janeiro, um termo que foi reacendido em 2017 pela criação de um “editorial de guerra” pelo jornal Extra. Essa imagem é reforçada por uma política de segurança pautada na “guerra às drogas” e no abate, endossado pelo governador quando ele diz que a polícia deve abater pessoas que estiverem armadas, em vez de desarmá-las, em um projeto de construção de um inimigo e sua desumanização.
“Guerra” contribui para a legitimação de práticas mais violentas e de crimes que são na realidade cometidos discriminadamente contra negros, pobres e favelados—inclusive pela convocação das forças armadas para atuar em um cenário nacional urbano, como no caso da intervenção militar federal de 2018 e do frequente acionamento do mecanismo de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)—e mascarar o fracasso em termos de políticas públicas institucionais ao atribuir a responsabilidade a “inimigos”, que são construídos como sendo irracionais a sanguinários.
Assim, pode-se argumentar que o caso do Brasil aproxima-se mais de um genocídio do que de uma guerra, pois além dos dados apresentados acima, a guerra presume uma mínima igualdade entre as partes, um projeto mútuo de destruição—não pela destruição em si—mas para atingir um objetivo claro. No caso do Brasil, é inegável que negros morrem e são deixados para morrer por serem negros—não só por crimes de ódio e autos de resistência, mas também a morte indireta pela sua manutenção à margem do sistema econômico, a negligência quanto à sua saúde e educação. Esse racismo de Estado, que informa a cor do “inimigo” que é construído, a cor dos corpos cuja morte é aceitável, é prova da intenção que existe por detrás dessas mortes.
Assim, é importante falar de genocídio para gerar pressão, nacional e internacional, para se pensar e cobrar políticas públicas para o enfrentamento desse extermínio, desde políticas de drogas que não sejam racistas, até políticas de saúde voltadas especificamente para a população negra, políticas afirmativas na educação e políticas de enfrentamento do racismo na instituição policial (incluindo a investigação e a punição dos autos de resistência). E sim, reparações.