Esta é a segunda matéria, de uma série de quatro, oriunda de uma pesquisa sobre processos disciplinantes que operaram no período pré e durante megaeventos no Rio, e que ainda operam em favelas no Rio. A série utiliza como caso de referência as favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, e como categoria de análise aborda o tema da disciplina em três dimensões: física, econômica e simbólica. Esta série é baseada em um artigo científico publicado no periódico CITY, em dezembro de 2018. Leia o artigo na íntegra, em inglês, aqui. Para a parte 1, que traz uma introdução, clique aqui.
A pesquisa utilizou como referência levantamentos de dados sobre políticas públicas no Rio de Janeiro e entrevistas levadas a cabo entre os anos de 2014 e 2019 nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira. Os nomes dos moradores não foram divulgados. A parte 2, abaixo, analisa o processo de disciplina física.
Disciplina Física: UPP, Violência e Estereótipos
A disciplina física a qual refere-se nesta matéria está ligada à violência em uma pluralidade de manifestações: físicas, verbais e psicológicas. No contexto de uma sociedade cada vez mais urbana, estas manifestações estão também profundamente atreladas ao processo de formação das metrópoles e seus processos de segregação socioespacial.
No caso das favelas e periferias, a violência é parte integrante do histórico da relação entre Estado e cidadão, cujo status social, geralmente encontra-se sob o estigma do mito de marginalidade1, ou seja, nos preconceitos e no imaginário estereotipado que dissemina-se hegemonicamente sobre estes assentamentos e seus moradores. O Estado e seus representantes, por sua vez, propagam a tentativa de costurar uma cidade fraturada enquanto, paradoxalmente, utiliza seus braços reguladores para exercer controle nas favelas, ora removendo moradores no bojo de políticas urbanas, ora disciplinando-os no contexto de intervenções e políticas de segurança.
Contextualização
A relação entre segregação socioespacial, favela, crime e políticas de segurança desenvolveu-se de maneira intrincada ao longo do século XX. Desde os anos 1950, um boom de industrialização e urbanização contribuiu para o crescimento vertiginoso das favelas no sudeste do país. Não coincidentemente, durante os anos 1960 e 1970, são também registrados extensos projetos de urbanização com caráter remocionista, onde tem-se como exemplo emblemático os projetos urbanos no governo de Carlos Lacerda.
Tais políticas, entretanto, não foram capazes de conter o crescimento em número e densidade nas favelas, que com seus becos e ruelas criaram um novo linguajar urbano e paisagístico para as metrópoles brasileiras. Posteriormente, aproximadamente a partir dos anos 1970, surgem algumas das facções criminosas que até hoje disputam estes territórios. Cabe ressaltar que, embora muitos destes grupos não tenham sido formados em favelas, foram justamente “nos becos e ruelas abandonados pelo Estado”2 que braços do crime organizado conseguiu estabelecer-se de maneira sólida.
Deste modo, entre intervenções e operações no Rio de Janeiro, já há quase meio século as favelas são o palco para conflitos armados entre diferentes facções criminosas e entre os agentes do Estado e tais organizações, o que naturalmente atinge o cotidiano dos moradores.
É nesse contexto que, no final década de 2000, surge o projeto das UPPs: uma tentativa de criar uma política de pacificação permanente e eficaz para o problema do tráfico e do crime na cidade. De maneira inédita, as UPPs criaram um braço físico do Estado dentro dos territórios de favela, o que em tese traria maior segurança tanto para os próprios moradores das favelas quanto para o restante da população.
Visões Ambíguas Sobre a Presença da UPP Durante os Megaeventos
Desde seu início, a presença da UPP nas favelas é polêmica e divide opiniões. Também é importante ressaltar que a atuação da UPP não é homogênea e variou bastante ao longo dos anos e em função da localização da favela em questão.
Nas favelas da Zona Sul, foco desta análise, há a peculiaridade de que a presença da polícia foi um forte catalisador para o turismo e para a especulação imobiliária, o que inevitavelmente contribuiu para novas dinâmicas socioculturais no tecido urbano. A UPP passou a, não só patrulhar as ruas das favelas para coibir o tráfico, como também controlar a realização de festas, organizações e eventos públicos em algumas favelas. Um exemplo tradicional citado pelos moradores é a proibição do baile funk em muitas das favelas com UPP, o que abordaremos em maior detalhe na parte 4 desta série.
Quanto à violência e à disciplina física, embora muitos moradores tenham relatado sentir-se mais seguros com a presença da polícia, as denúncias de abuso de autoridade e agressão dos agentes da UPP para com os moradores de favela também são alarmantes e mostram a ambiguidade desta presença disciplinadora.
A UPP suavizou os problemas de crime. Nem tudo está sob controle, mas ela ajudou as pessoas a se sentirem seguras para conhecer os que moram aqui [fazendo menção ao turismo]. Abriu uma grande porta.” – Homem, 31 anos, comerciante, 2015
Uma das grandes mentiras sobre o Projeto da UPP é que ele iria inviabilizar a sobrevivência do varejo de drogas e dos traficantes que existem aqui. Porque aqui não há traficantes. ‘Traficantes’ são aqueles que vendem drogas em grande escala. E não há traficantes aqui.” – Homem, 40 anos, ativista local, 2015
O caso das favelas Babilônia e Chapéu Mangueira é especial nesse sentido, pois tanto os moradores quanto os próprios oficiais da UPP alegam que o local é historicamente mais seguro comparado a outras favelas do Rio de Janeiro. Alguns moradores especulam que isso se deve, em parte, pela própria configuração destas favelas: menos densas e propícias a esconderijos de traficantes em becos e ruelas.
Também pelo histórico de coesão social e relativa pacificidade, muitos moradores questionam se a atuação da UPP não reforça os estigmas do favelado—ao invés de ajudar a quebrá-los—e, consequentemente, os processos de segregação. Moradores relatam serem tratados com “grosseria” e como “cachorros” pelos oficiais da UPP, enquanto turistas e visitantes da classe média são tratados com cordialidade e gentileza. Já os oficiais, quando entrevistados durante os megaeventos, relataram não fazer qualquer distinção.
“Quando eu nasci aqui não era mais perigoso, mas quando a minha mãe chegou na comunidade era muito pesado. As pessoas eram mortas na frente de qualquer um… O que eu presenciei mais foi guerra entre os donos do morro, tiroteio. Eu tava dentro da minha casa e começava.” – Mulher, 20 anos, estudante, 2015
“Quando você tá caminhando na rua aqui, você é abordado [pela UPP] de um jeito que é como se você fosse um cachorro, sabe? Não todos eles, mas acontece. É o jeito deles de abordar, é agressivo. Ninguém é louco para ser tratado com agressão e continuar quieto. Então, eles te desrespeitam primeiro, mas aí se você responde, você é preso. Você trabalha, acorda cedo, se mata para poder prover pra sua família e tem que passar por isso?!” – Mulher, 35 anos, trabalha com construção, 2015
“Para mim, o trabalho da polícia aqui é outro. Eles querem fazer um trabalho que não compete a eles. Para mim, a Unidade de Pacificação está relacionada com segurança, e isso é uma coisa que a gente não tem tido problemas. Mesmo antes da UPP era seguro andar aqui.” – Mulher, 30 anos, autônoma, 2016
O Pós-megaeventos
Atualmente, mesmo os discursos mais otimistas mudaram. Moradores que antes elogiavam a presença da polícia hoje ponderam a face negativa de sua presença e falam sobre uma falência desta política pública. Nos últimos anos, inclusive, o clima no morro da Babilônia ficou generalizadamente mais tenso devido ao enfrentamento de facções rivais do tráfico em 2018. Neste contexto, oficiais da UPP, antes simpáticos e abertos a entrevistas, não quiseram discutir o tema.
Além das contínuas queixas de abusos de autoridade e agressões físicas e verbais, mesmo a suposta proteção dos moradores pela UPP também parece ter falhado. Em junho de 2019, um dos guias turísticos locais relatou, por exemplo, que traficantes armados voltaram a patrulhar a mata no morro da Babilônia, em grande parte por meio da conivência da própria polícia.
Em suma, vemos que a percepção dos moradores sobre a violência e a presença do Estado tende a ser híbrida, pois a realidade é complexa. Além disso, sugerimos que a disciplina física segue sendo um dos grandes problemas reforçados pelas políticas públicas, pois em muitos casos reiteram os estereótipos de violência e os mitos da marginalidade enfrentados pelos moradores. Afinal, para a maior parte dos moradores, estas favelas não são só locais de caos e violência; são também locais de grande coesão social e solidariedade.
Quanto aos agentes perpetuadores da disciplina e da violência, alguns moradores parecem não ver os agentes do Estado e os “donos do morro” como forças opostas; são apenas soberanias no território e forças reguladoras:
“Muitas das vezes, e quase sempre, o mesmo camburão que carrega o corpo preto sem vida é o mesmo camburão que traz as drogas e as armas para a favela. Você faz uma apreensão na favela do TCP e revende pra favela rival do Comando Vermelho. Então não existe a venda de entorpecentes em todo o território do Rio de Janeiro sem a conivência da instituição Polícia Militar, que é o braço armado do Estado.” – Homem, 40 anos, ativista local, 2019
Na próxima matéria, falaremos da disciplina econômica, onde abordaremos as pressões imobiliárias sobre o solo das favelas e uma suposta gentrificação embrionária que teve seu auge nos megaeventos.
Eric Chu é professor de Planejamento e Geografia Humana na Escola de Geografia, Ciências da Terra e do Meio Ambiente da Universidade de Birmingham.
Isabelle Anguelovski é fundadora e diretora do Laboratório de Barcelona para Justiça e Sustentabilidade Ambiental Urbana e professora de pesquisa do ICREA na Universitat Autònoma de Barcelona, no Instituto de Ciência e Tecnologias Ambientais (ICTA) e no Instituto Hospital del Mar de Investigações Médicas (IMIM).
Thaisa Comelli é doutora em urbanismo e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ, e pesquisadora visitante na Unidade de Planejamento de Desenvolvimento da University College London.
[1] Referência à obra de Janice Perlman, o Mito da Marginalidade, de 1977.
[2] Expressão extraída a partir de conversas com moradores da Babilônia.
Esta é a segunda matéria, de uma série de quatro, oriunda de uma pesquisa sobre processos disciplinantes que operaram no período pré e durante megaeventos no Rio, e que ainda operam em favelas no Rio. Para a parte 1, clique aqui.