Esta é a terceira matéria, de uma série de quatro, oriunda de uma pesquisa sobre processos disciplinantes que operaram no período pré e durante megaeventos no Rio, e que ainda operam em favelas no Rio. A série utiliza como caso de referência as favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, e como categoria de análise aborda o tema da disciplina em três dimensões: física, econômica e simbólica. Esta série é baseada em um artigo científico publicado no periódico CITY, em dezembro de 2018. Leia o artigo na íntegra, em inglês, aqui. Leia a série completa aqui.
A pesquisa utilizou como referência levantamentos de dados sobre políticas públicas no Rio de Janeiro e entrevistas levadas a cabo entre os anos de 2014 e 2019 nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira. Os nomes dos moradores não foram divulgados. A parte 3, abaixo, analisa o processo de disciplina econômica.
A Pressão Latente Sobre o Território da Favela
Nesta série tratamos de três importantes catalisadores que, articuladamente, contribuíram para o processo de transformação socioespacial nas favelas contemporâneas da Zona Sul nos últimos anos: (1) as políticas de segurança, (2) os projetos urbanos e (3) os investimentos privados independentes.
As políticas de segurança contribuíram para, em um primeiro momento, diminuir os estigmas ligados às favelas, enquanto os projetos urbanos criaram ambientes mais legíveis e legítimos, tanto para moradores locais, quanto para visitantes externos. Atrelado a eles houve o boom de comércio e investimentos autônomos, que terminou por acarretar em mudanças nas dinâmicas de uso, apropriação e significação do solo. Tais catalisadores geraram e intensificaram forças disciplinadoras nos âmbitos físico, econômico e simbólico de algumas favelas da Zona Sul.
Nesse sentido, a disciplina econômica refere-se tanto à pressão imobiliária gradual sofrida pelos moradores das favelas da Zona Sul, quanto à forma como essa pressão interferiu e ainda interfere a longo prazo em seu modo de vida e em sua capacidade de ter um acesso de qualidade à cidade; o que seria um processo de gentrificação embrionária.1
Contextualização
Como fenômeno sociológico, a gentrificação começou a ser estudada na Inglaterra2 desde meados do século XX. Em estudos contemporâneos, possui uma relação íntima com a guinada neoliberal que marcou muitas das grandes cidades globais. Eventos esportivos tiveram um papel importante neste cenário. Cidades como Barcelona, por exemplo, foram pioneiras na implantação de projetos urbanos (e de remoções) de grande escala para receber turistas e investidores.
Entretanto, existem muitas maneiras de se pensar sobre gentrificação. Em geral, a maior parte dos autores a descrevem como um processo de “aburguesamento” de um bairro ou região, que pode inclusive começar com a chegada de artistas e intelectuais, ou seja, um público com interesses e um perfil de consumo que, pouco a pouco, começa a atrair os demais moradores da classe média/alta das cidades.
Mas seriam então os gentrificadores os “culpados” pela gentrificação? Para especialistas como Neil Smith, a importância da gentrificação não se encontra no perfil dos novos moradores, mas sim nos processos de valorização do solo e na chegada massiva de investimentos. Em suas próprias palavras: “[é] um movimento de chegada de capital, não de pessoas”.3
A Peculiaridade da Gentrificação nas Favelas
A abrangência do que se entende como gentrificação gera alguns questionamentos: afinal, pode-se dizer que todo e qualquer processo de valorização de uma área urbana se trata de gentrificação? No caso de continentes como a América Latina, sequer faz sentido importar um conceito estrangeiro para o contexto de cidades que foram moldadas a partir de outros processos históricos e sociais?
No Brasil, estes debates tampouco são recentes, mas foi no período de preparação para os megaeventos esportivos que o tema ganhou grande impulso e notoriedade. Favelas como o Vidigal e a Babilônia viraram locais da moda. Além da chegada de novos restaurantes, bares e albergues, grandes personalidades chegaram a comprar terrenos e casas nestes locais, gerando dúvidas sobre quem seriam os reais beneficiários de todas as transformações nas favelas a longo prazo.
Entretanto, há uma série de fatores que fazem com que estas transformações sejam únicas nas favelas: o primeiro é a própria dificuldade em se “medir” a gentrificação. Isso porque a informalidade das transações dificulta a compreensão sobre qual é o real perfil sociodemográfico de cada favela e como ele está se transformando ao longo do tempo. Além disso, há o fenômeno de verticalização e subparcelamento para locação dos imóveis; ou seja, enquanto em um processo de gentrificação “tradicional” o morador antigo venderia sua casa ou lote para um morador mais novo ou para uma empresa, o morador de favela muitas vezes somente aluga, ou vende parte de seu imóvel. Assim, embora os preços subam, é extremamente difícil detectar como e por quem esta valorização é capturada.
“[O aluguel do imóvel] onde eu moro tá avaliado em torno de R$1.200. Mas meu tio é o dono, então eu pago R$700. É um apartamento de um quarto, mas é espaçoso. Minha casa antiga tava quase caindo aos pedaços, em uma área de risco, então a prefeitura ajuda com R$400 por mês, o aluguel social. Antes, quando o programa do aluguel social começou, tinha casas de R$400 aqui pra alugar. Hoje em dia não, isso não existe.” (Mulher, 20 anos, moradora antiga, 2016)
Há também a questão racial neste cenário. No caso das favelas da Zona Sul do Rio, a chegada de moradores estrangeiros e de classe média não representaria somente o aburguesamento, mas também o embranquecimento destes territórios.
“Na minha opinião, foi feita uma ‘limpeza branca’ aqui. O que é ‘limpeza branca’? Você tira a pessoa da parte de cima do morro, alegando que é uma área de risco.” (Homem, 38 anos, morador recente, 2015)
Finalmente, há de se considerar o tempo para a consolidação da gentrificação, que é inconstante nas favelas. Paradoxalmente, são justamente os fatores que trazem vulnerabilidade aos moradores os mesmos que ajudam a retardar a gentrificação. Ou seja, não se trata de um processo completo; trata-se de uma força embrionária, que avança ou retrocede em função das ondas de violência, da qualidade física e do status fundiário do local.
Na realidade, a questão central a longo prazo é a incerteza que estes processos disciplinadores geram para os moradores e a forma como o Estado e outros agentes se articulam para produzir e intensificar estas incertezas.
Navegando pela Disciplina Econômica
Diferentes moradores assimilam processos como este de maneira híbrida e por vezes até conflituosa. Durante os megaeventos, enquanto alguns moradores elogiavam as melhorias físicas trazidas pelos projetos urbanos e pelas oportunidades econômicas que os novos empreendimentos geravam, outros questionavam a vinda de turistas, novos moradores e o papel do Estado nesse processo:
“Tá puxando todo mundo. Eu venho com um bar, aí a outra pessoa vem com outro bar, aí outra pessoa vem com um artesanato, outra com um projeto legal. (…) Sim, os preços subiram aqui e também no asfalto, mas é relativo. Alguns moradores vão conseguir ficar. Se ele se qualificar para viver em um local como esse, acompanhar o que tá acontecendo, ele fica fácil.” – Homem, 31 anos, morador antigo, 2015
“Eu gosto, porque nossa comunidade aprende a conviver com eles [turistas, novos moradores] e eles aprendem a conviver com a gente. E pra eles, eles imaginam que vão encontrar um lugar sujo, casas caindo aos pedaços. Mas eles chegam aqui e veem uma coisa diferente. E é por isso que eles se apaixonam. Eles não querem ir embora. Eles chegam e querem ficar. (…) O aluguel subiu muito. Eu conheço gente que teve que sair daqui porque o aluguel aumentou. Nós estamos no limite agora. Se os preços subirem mais, as pessoas vão perder seus alugueis. Graças a Deus eu sou proprietária da minha casa.” – Mulher, 40 anos, moradora antiga, 2015
“Isso é o que o mundo precisa saber, a que preço as Olimpíadas estão sendo feitas: a preço de sangue, a preço de dor, a preço de lágrimas, a preço de remoções de famílias, porque as remoções também matam (…). Nós somos pobres, mas nós temos a nossa casa. Esse é o preço que nós estamos pagando”. – Homem, 40 anos, ativista comunitário, 2016
O Que Será do Futuro nas favelas da Zona Sul?
A pressão imobiliária agora parece mais suave, mas a disciplina econômica é um processo constante, lento e com muitas nuances para as comunidades afetadas. O período anterior aos megaeventos gerou oportunidades, mas também provocou a remoção direta ou indireta de diversas famílias. Acima de tudo, tratou-se de uma disciplina justamente por ser uma pressão coerciva que, ora direcionava os moradores mais pobres para longe da Zona Sul, ora os impulsionava a acompanhar o ritmo das transformações e adequar-se as novas “regras do jogo”.
Além disso, cabe ressaltar que nos recentes períodos de recessão econômica e mesmo com a retomada da violência, os valores dos imóveis não sofreram uma queda tão intensa quanto sua subida.4 Assim, apesar da gentrificação no momento atual parecer menos ameaçadora, moradores e ativistas a consideram inevitável a longo prazo, a não ser que novas ações sejam articuladas.
A sensibilização e mobilização cidadã parece essencial nesse sentido, assim como o conhecimento sobre diferentes mecanismos jurídicos e urbanísticos para diminuir o impacto de novas transformações que podem chegar no futuro. Para os que ainda debatem gentrificação, a chave parece estar na de-comoditização da habitação, ou seja, na transição de um modelo cujo valor encontra-se na compra e na venda para um modelo onde o valor esteja no uso dos imóveis. Tal lógica pode assumir uma série de formatos, que vão desde a criação de termos comunitários para a gestão de propriedades compartilhadas até uma maior proteção legal dos locatários de imóveis em áreas mais vulneráveis. Resta saber em que estado de coesão estarão os moradores de favela quando a nova onda de gentrificação chegar e, principalmente, onde estará o Estado em meio às suas próprias forças disciplinadoras.
Eric Chu é professor de Planejamento e Geografia Humana na Escola de Geografia, Ciências da Terra e do Meio Ambiente da Universidade de Birmingham.
Isabelle Anguelovski é fundadora e diretora do Laboratório de Barcelona para Justiça e Sustentabilidade Ambiental Urbana e professora de pesquisa do ICREA na Universitat Autónoma de Barcelona, no Instituto de Ciência e Tecnologias Ambientais (ICTA) e no Instituto Hospital del Mar de Investigações Médicas (IMIM).
Thaisa Comelli é doutora em urbanismo e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ, e pesquisadora visitante na Unidade de Planejamento de Desenvolvimento da University College London.
[1] Autores como Patricia Novaes defendem conceitos alternativos como “gentrificação periférica”, que trazem alguns debates sobre gentrificação para o contexto mais específico das cidades brasileiras.
[2] Foi a socióloga inglesa Ruth Glass quem, nos anos 1960, cunhou o termo para referir-se à ocupação de bairros da classe trabalhadora pela classe média.
[3] https://eportfolios.macaulay.cuny.edu/chin15/files/2015/02/Smith-Theory-of-_Gentrification.pdf
[4] Ver gráfico na parte 1 desta série. A variação do índice FipeZap mostra que os preços imobiliários ainda são mais de 200% mais altos do que quando o país foi anunciado como sede da Copa do Mundo.
Esta é a terceira matéria, de uma série de quatro, oriunda de uma pesquisa sobre processos disciplinantes que operaram no período pré e durante megaeventos no Rio, e que ainda operam em favelas no Rio.