Uma Abordagem Piramidal para a Urbanização das Favelas: Crédito, Transparência, e Controle Orçamentário (Parte 3)

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Esta é a terceira matéria de uma série de seis sobre a aplicação da Pirâmide de Meléndez à urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro. Este conceito foi concebido pela autora desta série como uma metodologia para alcançar resultados mais coerentes e sustentáveis na urbanização de favelas. Inspirada na Hierarquia de Necessidades de Maslow, a pirâmide de Meléndez é composta por dez blocos, cada um representando um conjunto de elementos indispensáveis. Principalmente com base na multidimensionalidade, interdependência e simultaneidade, a pirâmide aborda os aspectos físicos, políticos, econômicos, sociais, culturais e psicoemocionais das favelas. Leia a série inteira aqui.

Esta terceira matéria trata da importância de acesso ao crédito, transparência, governabilidade, controle orçamentário e recuperação de custos. ​Leia a segunda parte aqui.


O acesso a crédito, transparência e boa governança são elementos que constituem a parte inferior direita da Pirâmide para Urbanização de Favelas. Juntamente à regularização, serviços básicos, participação e organização comunitária, estes elementos constituem a base de programas de urbanização efetiva de favelas que devam partir das estratégias, projetos e iniciativas da própria favela. Por falar nisso, é importante enfatizar que programas de urbanização (especialmente programas exógenos–aqueles que são impulsionados por critérios externos) não devem ser construídos do zero, mas sim a partir dos conhecimentos dos moradores de cada favela, e nos próprios termos e concepção das favelas. Essa pirâmide se opõe à abordagem padrão, a qual impõe condicionais “de desenvolvimento”, exigindo concepções exógenas constantemente.

O acesso ao crédito é o mecanismo mais intuitivo para se iniciar trabalhos de urbanização. Porém, ao passo que as populações de baixa-renda se esforçam para alcançar critérios de elegibilidade aos subsídios ou empréstimos, é crucial que as estruturas financeiras sejam inclusivas. A ​Agência Sueca de Desenvolvimento Internacional (ADIS) criou um modelo​ para reverter esse quadro: ela utiliza critérios de seleção diferentes que também contam com as realidades socioeconômicas de cada grupo. Já que os métodos tradicionais de financiamento tendem a ser inacessíveis aos moradores de favela, a entidade financiadora, seja ela governamental ou privada, ​deve funcionar como uma credora inclusiva e de escala pequena​. Esse tipo de modelo financeiro pode ​evitar com que moradores recorram ​aos pagamentos informais à vista ou parcelados, que normalmente implicam taxas de juros flutuantes ou elevadas.

Seguindo o exemplo do modelo ADIS, a urbanização das favelas deve adotar um modelo financeiro que seja sustentável e transparente. Indo por essa linha, devem ser oferecidos diferentes tipos de empréstimos (por exemplo, de infraestrutura, reforma de residência, microempreendimento, projetos comunitários e iniciativas culturais ou psicoemocionais). Idealmente, um investimento inicial de base que eventualmente é pago de volta à entidade credora poderia permitir que a comunidade gerasse um fundo rotativo. As famílias receberiam o empréstimo, o usariam para dar conta de suas necessidades, e então pagariam de volta em parcelas de acordo com suas capacidades financeiras.

Este modelo procura solucionar o debate “empréstimo versus subsídio” tão discutido no campo desenvolvimentista. Por um lado, subsídios podem contribuir para uma percepção ilusória do custo dos materiais de desenvolvimento, potencialmente limitando a autonomia pessoal e comunitária. Por outro, empréstimos–se não forem controlados, ou se forem injustos com os devedores–podem impor um padrão de vida inalcançável que ignora o real poder aquisitivo das pessoas, levando-as ao endividamento. Portanto, este modelo apresenta uma alternativa: um fundo rotativo. Assim que o financiamento inicial de base é pago, o fundo é autonomamente controlado pela comunidade. Este fundo daria acesso a pequenos empréstimos que atendem às necessidades e capacidades financeiras das pessoas e da comunidade. Além disso, um fundo rotativo produz autonomia em relação à política partidária e ao desenvolvimento não-pluriverso.

A pirâmide de Meléndez de urbanização de favelas. Arte por Natália Melendez Fuentes

Para que estruturas de financiamento sejam eficientes, ​a transparência​ é um elemento primordial que garante a eficácia em termo de custos e ​pode ajudar a curar a relação entre comunidades e autoridades, construindo confiança. Isso fica mais evidente quando o elemento de participação permite que as comunidades conheçam, controlem e auditem a entidade financeira (seja ela um órgão comunitário ou externo). Usando a lógica da transparência, todos os procedimentos–especialmente os de solicitação de empréstimo–são diretos e plenamente entendidos pelos moradores, evitando jargões. Com relação ao financiamento de projetos, a participação dos moradores nas decisões orçamentárias, no monitoramento e na avaliação constrói confiança, capacidade e mudança de narrativa.

Indo por esse caminho, é evidente que a transparência está ligada à boa governança. Em geral, o Brasil tem sido afetado por um déficit de governabilidade conspícuo. Isso inclui instituições sucateadas, mecanismos de participação e responsabilização cidadã decadentes, paternalismo, relações clientelistas ​e ​corrupção​, além de outros obstáculos. Acessar financiamentos de forma autônoma através de um fundo rotativo controlado pela comunidade poderia oferecer uma oportunidade de urbanização à favela, sem os impedimentos de um contexto mais amplo. Este pano de fundo sociopolítico também ilustra a razão pela qual a urbanização também deve contemplar o desenvolvimento institucional, incluindo a capacitação de atores externos que trabalhem com comunidades e organizações de base. Isso também pode contribuir para a reconciliação com as comunidades, por todo o país, onde a confiança foi quebrada no passado, e para fornecer mais apoio às favelas por meio de conexões e recursos em várias escalas.

Aprendendo com as comunidades, as autoridades locais poderiam aumentar o alcance de sua governabilidade. No Brasil, ​promessas políticas não cumpridas​ representam um perigo real. Sendo o ​voto obrigatório​, no Rio de Janeiro, onde ​23% da população mora nas favelas​, os moradores de favelas representam quase um quarto do eleitorado. Muitas ​promessas não foram cumpridas​ durante o mandato do Prefeito Eduardo Paes: um claro exemplo disso foi o programa Morar Carioca​. O mandato atual de ​Marcello Crivella​ (2017-2020) não concretizou suas promessas de campanha​. As autoridades locais supostamente deveriam estar usando seus privilégios para entender e escutar comunidades, se comprometendo com a ​Lei Orgânica Municipal de 1990​, assim como os Artigos 182 e 183 da Constituição Brasileira. Estas legislações preveem a provisão de serviços básicos, infraestrutura e urbanizações nas favelas que precisam.

É digno de nota que o Brasil, e o Rio em particular, estão vendo cada vez mais representantes de favela sendo eleitos. Este é um passo verdadeiramente significativo para uma mudança nas narrativas, refletindo a crescente consciência sobre a vida nas favelas: incluindo as reais situações e necessidades das comunidades, suas ações e capital social, de um enorme valor. Essa tendência tem o poder de neutralizar as narrativas estigmatizantes sobre favelas veiculadas historicamente pela grande mídia brasileira.

Uma relação mais estreita e aberta entre comunidades, autoridades e entidades financiadoras leva a dois cenários inestimáveis. Primeiro, as comunidades entendem o papel, as reais limitações e os recursos externos de entidades, e se apropriam do processo financeiro por meio de um fundo rotativo administrado pela base. Em segundo lugar, as autoridades aprendem a ouvir, trabalhar, apoiar e reconhecer os moradores das favelas.

Subindo na pirâmide, o próximo bloco da esquerda representa o controle orçamentário e os mecanismos de amortização de custos. Conforme apontado pelos planejadores urbanos Ivo Imparato e Jeff Ruster​, manter as ações de urbanização dentro do orçamento garante que a urbanização não pare devido a uma “repentina” falta de financiamento. Por sua vez, a amortização de custos–que é uma parte essencial do fundo rotativo–apoia a independência das favelas que estão realizando a urbanização.

Como traduzir o controle orçamentário e a amortização de custos em ação? Informando e ​incluindo as comunidades sempre​. Os moradores se tornam mais informados quando estão cientes do verdadeiro preço e dos fundos disponíveis em todas as etapas–superando o desconhecimento das condições e, possivelmente, as micro corrupções no desenvolvimento urbano. Dando mais passos em direção à transparência, os moradores precisam estar envolvidos nas decisões e podem, se eles acharem apropriado e justo, contribuir para uma porcentagem do custo total de projetos comunitários, dando continuidade à apropriação e ao engajamento. Além disso, a amortização dos custos é ainda mais garantida quando moradores realizam a maior parte das obras de urbanização, porque assim eles próprios controlam e garantem o planejamento, materiais, despesas e recursos humanos acessíveis.

Uma abordagem mais inclusiva, participativa e transparente nas finanças da urbanização trará ganhos econômicos substanciais às favelas do Rio e ao Brasil de maneira geral. Sem sombra de dúvida as ​favelas fazem contribuições importantes​ às economias sociais e locais (tanto ​formalmente​ quanto informalmente). Manter finanças inclusivas e autônomas meio às urbanizações pode favorecer a reciprocidade e também afastar a exclusão e a especulação na esfera financeira.

Esse é a terceira matéria de uma série composta por seis partes. Leia a série inteira aqui.

Natalia Meléndez Fuentes é mestranda em Construção e Design Urbano em Desenvolvimento na Unidade de Planejamento de Desenvolvimento Bartlett na University College de Londres. Sua pesquisa analisa os elementos psicoemocionais das favelas e da urbanização de favelas, principalmente na América Latina, e como trazê-los à tona.


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