Será Mesmo Que as Mudanças no Marco Legal do Saneamento Expandirão o Saneamento Básico?

Pia instalada no Morro da Providência. Foto por Mauricio Ora
Pia instalada no Morro da Providência. Foto por Mauricio Ora

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Esta é a nossa mais recente matéria de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre direitos humanos e justiça socioambiental em favelas.

No início de 2020, moradores do Rio de Janeiro começaram a reclamar de problemas com a água da torneira, reportando, online, que estava turva e com mau cheiro. À medida que corriam para os supermercados, o preço da água engarrafada disparava. Isto deixou moradores de favelas especialmente em perigo, já que pagar preços inflacionados pela água engarrafada estava financeiramente fora do alcance para a maioria.

Em uma cidade onde apenas 42,9% do esgoto é tratado, de acordo com o Instituto Trata Brasil, crises hidráulicas como esta não são surpreendentes. Para resolver este problema, o governo brasileiro revisou seu Marco Legal do Saneamento, tornando mais fácil para que serviços de saneamento sejam privatizados através de um processo de licitação no qual, segundo seus proponentes, será possível universalizar o saneamento básico. O Marco Legal revisado afirma que até 2033, 99% da população terá acesso à água potável, e 90% à coleta e tratamento de esgoto. É dentro desta nova estrutura que a diretoria executiva da concessionária estatal de água do Rio, CEDAE, votou a favor de sua privatização.

Planejadores urbanos e ativistas pelos direitos humanos advertem que, enquanto as privatizações ocorrem sob este revisado Marco Legal, os desafios para as favelas incluirão garantir o serviço em áreas pobres, obter acesso a informações sobre novos serviços e saber quem pressionar quando os problemas ocorrerem.

A desculpa é afirmar que “existe desigualdade e que não estão dando conta da universalidade, e por isso tem que privatizar”, disse Suyá Quintslr, professora de planejamento urbano e regional da UFRJ. Suyá falou em um seminário online organizado pela Rede Favela Sustentável*. Ela disse que pesquisas acadêmicas mostram que com a privatização, após um período de mudanças visíveis, porém simples–como, por exemplo, o fornecimento de novas tubulações para melhorar as redes de esgoto–serviços tendem a piorar em áreas mais pobres. Como o objetivo final das corporações com fins lucrativos é distribuir lucro aos acionistas, ela explica como este enfoque único impede o investimento nas favelas.

“Esses prestadores de serviços investem apenas nas zonas ricas, [como] Ipanema… e [n]as áreas com baixa capacidade de pagamento [eles] deixam [o sistema] envelhecer, e os serviços tendem a piorar.”

Enfrentando o risco de serem deixados para trás, moradores de favelas estão se instruindo sobre os impactos do revisado Marco Legal e discutindo maneiras alternativas de acessar água potável. Durante o segundo dia do seminário, a advogada Tatiana Bastos, do Instituto de Direito Coletivo, descreveu a falta de transparência em torno da qualidade da água.

“O relatório anual [da CEDAE] que deveria ser o compilado dos 104 indicadores [da qualidade da água] só tem duas páginas, e não atende a necessidade de transparência que nós consumidores precisamos”, ela explicou.

Água potável e acesso a saneamento básico é um direito humano fundamental e o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número seis das Nações Unidas. Tatiana acrescenta que a mobilização social é essencial para que esse direito seja cumprido. Mas sob o Marco Legal agora, moradores de favelas estão questionando como podem participar e garantir esses direitos quando o prestador de serviços é uma empresa privada. Ao contrário de como eles responderam em janeiro, quando a água ficou marrom, ativistas de favelas sentem que não poderão mais dirigir-se à sede da CEDAE e fazer reivindicações diretamente aos responsáveis pelas decisões públicas.

“Quando se torna privada, quem sabe quem são os tomadores de decisão? Será administrado por grupos e capital internacional–essa responsabilidade direta não é mais possível. A quem devemos exigir nossos direitos agora?” questionou Suyá.

Para garantir que as empresas cumpram sua parte do acordo, o revisado Marco Legal do Saneamento estabelece que se o objetivo da universalização não for alcançado até 2033, serão aplicadas sanções aos fornecedores, a distribuição de dividendos será proibida, e os contratos serão cancelados, com os municípios retomando o serviço.

Suyá explica que a universalização só é possível através de subsídios cruzados, nos quais as empresas podem atender as áreas mais pobres com o capital levantado de áreas mais ricas. Se as empresas privadas priorizarem apenas as áreas de alta renda, a meta do Estado não será atingida.

Além disso, ela diz que “as pessoas [nas favelas] veem isso e desistem [dos serviços privados] e começam a usar água da chuva”. Elas também podem optar por gatos que são prejudiciais à saúde, acrescenta ela: “Quando não têm acesso [a água], elas vão buscar de outra forma. É quando começa a comprar água da milícia ou comprar do carro pipa. A água desses sistemas é mais cara que a água da CEDAE. Perfurar um poço não é de graça, mas é água superficial, com grandes chances de estar contaminada. As pessoas perfuram e usam a água não tratada, dão banhos nos filhos, e compram água para beber. Isso dá problemas de pele. Mas não podem comprar água mineral para dar banho neles.”

Para Suyá, o revisado Marco reflete o racismo ambiental presente nas políticas do Estado, dado que as comunidades pretas, pobres e periféricas serão as afetadas pelas circunstâncias.

Quando se trata do Marco Legal do Saneamento, Suyá diz que é uma questão em aberto se as melhores intenções do Estado se realizarão ou se somente os suspeitos habituais se beneficiarão da privatização da CEDAE.

*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são projetos da Comunidades Catalisadoras. A RFS tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil.


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