Projeto ‘A Cor da Mobilidade’ Aborda Impactos do Racismo no Deslocamento da População Negra pelas Cidades Brasileiras

Roda de Conversa Aborda o Tema: "Por que a mobilidade urbana precisa ser antirracista?"

Arte original por David Amen

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Esta matéria é a primeira de uma série de três cobrindo as rodas de conversa do projeto A Cor da Mobilidade. Também faz parte da série antirracista do RioOnWatch que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021—Enraizando o Antirracismo nas Favelas: Desconstruindo Narrativas Sociais sobre Racismo no Rio de Janeiro.

“Por que a mobilidade urbana precisa ser antirracista?” Esse questionamento foi tema de uma roda de conversa realizada no dia 13 de outubro pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), em parceria com a Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade) e com o Pedal na Quebrada. Os participantes refletiram sobre as dificuldades e desigualdades que permeiam a experiência da população preta e parda com a mobilidade urbana. 

Esse foi o primeiro de uma série de três encontros que fazem parte das ações do projeto A Cor da Mobilidade, que tem como objetivo visibilizar os efeitos do racismo no deslocamento da população negra pelas cidades. Nessa primeira roda de conversa, participaram os organizadores do livro Mobilidade Antirracista, Rafaela Albergaria e Paíque Santarém, e a coordenadora de comunicação do ITDP, Mariana Brito, que mediou a conversa. 

Rafaela é mestre em Serviço Social e pesquisadora nas áreas de direitos humanos, políticas públicas, mobilidade urbana e racismo institucional. Em 2019, lançou o livro Não foi em vão: Mobilidade, desigualdade e segurança nos trens metropolitanos do Rio, com coautoria de João Pedro Martins e Vitor Mihessen. A obra é resultado de uma extensa pesquisa sobre mortes por atropelamento nos trens da Supervia. Uma das histórias contadas é de Joana Bonifácio, prima de Rafaela, morta aos 19 anos ao tentar embarcar em um trem na Estação Coelho da Rocha, em São João de Meriti, Baixada Fluminense. A morte da prima fez saltar aos olhos da pesquisadora a relação estreita entre raça e precariedade no transporte ferroviário e, de forma mais ampla, a influência do racismo na mobilidade urbana, como contou Rafaela durante a conversa.  

Doutorando em arquitetura e urbanismo pela Universidade de Brasília (UNB), Paique Duques Santarém é antropólogo e membro do Movimento Passe Livre e do Movimento Negro. A relação entre o racismo e a estruturação da mobilidade urbana no país está no centro da análise desenvolvida pelo pesquisador. Como argumentou Paique durante o evento, a mobilidade racista “é um conceito que nasce de uma vivência, de uma experiência real”. 

O encontro teve início com um convite à participação dos presentes: “Quando você pensa em mobilidade antirracista, qual a primeira palavra que vem na sua cabeça?” A partir dessa provocação, os presentes indicaram termos que relacionam ao assunto. Igualdade, equidade, direito e desigualdade foram as palavras mais utilizadas.

Palavras foram indicadas por participantes da roda de conversa

Pegando de empréstimo alguns versos do poema “Passageiro do Último Vagão”, de Elisa Lucinda, que abre o livro Mobilidade Antirracista, Mariana Brito deu indícios do que seria discutido na roda de conversa: 

“Eu a vida toda tive medo de perder o trem.
Sempre morei longe do sonho, do dinheiro, da formação, de um tipo de arte, do descanso.
Calculei a vida pra não perder o trem.
Fiz a conta:
distância mais cidade partida do meio
dá igual caminho andado em vão.
[…]
E agora, nesse fim de noite me apontou pontualmente, como faço todo dia, porque a vida toda eu andei para não perder o trem agora. 
uma confusão, gritos, socorros, 
gente gritando para, 
outro perguntando quem?
metade do meu corpo, se separa, e é recolhido no vão. 
E eu, toda vida, lutei para não perder o trem. 
Perdi a vida no trem.”

A relação entre o racismo e a mobilidade urbana pode ser observada a partir de diferentes perspectivas. Na base desse problema está o estranhamento do racismo nas instituições, seu atravessamento na organização dos espaços, na hierarquização e diferenciação das pessoas, e na formulação de políticas públicas. Citando Frantz Fanon, Paique explica que “o racismo é um sistema de diferenciação de pessoas, que só existe quando consegue, em toda a sociedade, construir hierarquias e essas hierarquias interferirem em todas as instituições”. 

Ele continua desenvolvendo o argumento: “Para se reproduzir, essa estrutura atua em todas as instituições, em todos os espaços da sociedade, uma coisa que é secular, que se reproduz e que muda de forma. A principal característica do racismo, para mim, é a capacidade de transformação, de conseguir se adequar a diferentes sistemas sociais e conseguir se manter como estruturador… Então, se o racismo estrutura todas as instituições e se a mobilidade é uma instituição da nossa sociedade, então ele organiza ela, certo?”, questiona Paique Santarém. 

Paique Santarém é antropólogo e doutorando em em arquitetura e urbanismo

Segundo avaliação do pesquisador, a mobilidade urbana não pode ser vista como uma consequência da segregação socioespacial. Deve ser, pelo contrário, compreendida como um agente ativo e construtor dessa política de afastamento da população negra e de baixa renda das regiões valorizadas. Distante dos centros, essa população está também, por consequência, afastada da infraestrutura e dos serviços públicos. Afastamento este que se torna cada vez maior na medida em que as cidades—seus serviços, oportunidades e infraestrutura, incluindo os modais de transporte—continuam a se desenvolver de forma desigual, concentrando investimentos e oportunidades em determinadas áreas e precarizando outras. 

Esse descompasso que atravessa a existência e sobrevivência dos corpos negros vem de longe. “O navio negreiro é um primeiro espaço da mobilidade racista, mas ela tem um grande impulso no momento de nascimento e estruturação das cidades, quando se estruturam os bondes, os trens… Até os anos 1930, os bondes e os trens eram mecanismos, simultaneamente, de integração das cidades e de segregação da população negra, tanto por poder afastá-la mais para longe como pelas tarifas que eram instituídas”, ilustra Paique. 

No momento de estruturação das cidades, os ideais higienistas e eugenistas faziam parte do imaginário e da vivência daqueles que eram responsáveis pela formulação de políticas públicas e pela organização do espaço urbano. Na visão de Paique a mobilidade racista continua atuando para construir ferramentas de segregação, que podem se apresentar de várias formas. Ele exemplifica: “Com a minha aparência ou os ataques que eu vou sofrer nas ruas; com o meu território sendo mais precarizado; com eu entrar no ônibus, ter menos renda e não ter acesso ao vale transporte; ou, com eu estando no ônibus e sofrendo baculejo; ou, estando no ônibus e as pessoas não sentarem ao meu lado; o ônibus não parando para mim; ou, o trem não chegando onde eu chego, ou quando ele chega, a infraestrutura dele é péssima, muito mais suscetível a acidentes… Então, todos os aspectos da mobilidade vão ter um vínculo com o racismo”, conclui Paique Santarém. 

“As métricas que determinam os cálculos do transporte partem da desumanização dos nossos corpos”, refletiu Rafaela Albergaria no começo de sua fala. A pesquisadora relembrou a morte da prima, Joana Bonifácio, que foi arrastada e morta após ter a perna presa na porta do trem quando tentava embarcar. Segundo Rafaela, seu olhar sobre a mobilidade urbana parte da luta por reparação: “É pensar em memória, pensar na luta por justiça e por garantia de não repetição. Eu sempre falo da Joana porque lembrar, exercitar a memória daqueles que nos antecederam e que foram importantes para nós é, também, produção política de existência e de vida”. A partir do entendimento de que um problema social só se torna alvo de política pública quando mapeado, Rafaela passou a levantar dados e conversar com pessoas que utilizavam os trens, dando início, assim, a pesquisa que resultaria no livro Não foi em vão: Mobilidade, desigualdade e segurança nos trens metropolitanos do Rio.

Joana Bonifácio foi morta quando tentava embarcar em uma composição na Baixada Fluminense. Foto por Larissa Amorim/Casa Fluminense

Na compreensão da pesquisadora, o racismo opera por meio de uma política de interdição em contraponto a uma política de acesso, tomando como ponto de partida uma perspectiva eugenista de organização do espaço público. Ela argumenta: “Corpos brancos acessam as instituições a partir de um lugar de garantia. Corpos negros acessam as instituições e os espaços públicos a partir de um lugar de interdição… Quais são os corpos que vão acessar às cidades e os direitos? Quais são os corpos que vão acessar à cidade sob uma ótica de interdição, de controle e de extermínio?

Ainda hoje, segundo Rafaela, as teorias e políticas eugenistas que fomentaram a construção das cidades e das políticas mostram seus efeitos nas condições de acesso da população negra e de baixa renda às cidades, às oportunidades e aos direitos. 

Rafaela Albergaria é coautora de dois livros sobre mobilidade urbana e racismo

Para Rafaela, esse acesso permeado por profundas desigualdades é acentuado pela ausência de políticas de reparação no período pós-escravista. Ainda segundo ela, o que se observou, pelo contrário, foram inúmeras políticas criadas para manter ou até acentuar a condição de precariedade na vida e sobrevivência de pessoas negras. Essa lógica de diferenciação e hierarquização das pessoas se manifesta em todas as esferas da vida, inclusive no deslocamento. Rafaela chama atenção aos impactos disso no dia a dia das pessoas: “Para você acessar qualquer outra política social, você precisa se locomover pela cidade. Para você ir no posto de saúde, que fica perto da sua casa, você precisa se locomover. A política de mobilidade é determinante para a nossa existência”. 

Se a garantia da existência é atravessada pelo deslocamento pela cidade, é preciso lutar para reformular as políticas e as lógicas a partir das quais a mobilidade opera. Sobre isso, Paique Santarém faz alusão às transformações ocorridas nas universidades nos últimos anos: “A universidade pública brasileira é uma instituição racista… mas hoje ela tem políticas antirracistas efetivas. São suficientes? Não necessariamente, mas estão criando espaços para que os pretos lutem por mais coisas dentro das universidades, sabendo que a universidade só vai ser antirracista quando ela for refundada. Mas ela tem políticas antirracistas ali dentro. Então, nós podemos instituir políticas antirracistas no transporte, sabendo que a mobilidade é uma instituição racista. Acho que é nesse sentido que a gente tem que trabalhar”. 

Desembarque na Estação Japeri, na Baixada Fluminense. Foto: Fabio Leon

Ainda nesse tema, Rafaela também defende a construção de políticas afirmativas voltadas ao deslocamento, que tenham como base as experiências concretas. O abismo entre as políticas de mobilidade e as necessidades da população negra, segundo a pesquisadora, se apoiam em projetos intencionais de interdição e controle por um lado, mas também resultam da falta de materialidade dos problemas para aqueles que têm o poder de modificar esse cenário. Em outras palavras, a falta de vivência nos problemas de acesso por parte daqueles que controlam as políticas e os recursos acentua o abismo que exclui pessoas negras e de baixa renda da cidade.  

“As pessoas que decidem sobre as políticas públicas a partir da sua materialidade… a gente só sonha com aquilo que é visível. Ninguém sonha com aquilo que nem sabe que existe. A gente só sonha e só constrói desse lugar. Então, isso já desmonta o pensamento de universalidade que as pessoas brancas assumem, que não se reproduz só com pensamento, mas também como política”, afirma Rafaela. Se os espaços de decisão são ocupados, majoritariamente, por pessoas brancas, “elas vão priorizar investir o orçamento que elas controlam naquilo que é visível para elas. Elas não vão pensar e conseguir elaborar demandas de Jardim Gramacho, quando elas nunca colocaram o pé lá. Elas não vão priorizar o trem quando elas nunca entraram numa estação, quando o máximo de transporte público que elas acessam é o metrô”, defendeu Rafaela Albergaria.

As várias intersecções entre raça, racismo e mobilidade serão abordadas ao longo de três encontros promovidos no mês de outubro pelo ITDP. A proposta é debater o tema a partir de pesquisadores e ativistas negros, que atuem na temática de transporte e acesso à cidade. 

Assista à Roda de Conversa “Por que a mobilidade urbana precisa ser antirracista?Aqui:

Assista as próximas rodas de conversa!

  • Como construir um transporte justo e de qualidade para todos? – Dia 20/10 de 18:00 às 20:00h. Inscreva-se aqui.
  • Pedalar como resistência: racismo e mobilidade por bicicleta – Dia 27/10 de 18:00 às 20:00h. Inscreva-se aqui.

Esta matéria é a primeira de uma série de três cobrindo as rodas de conversa do projeto A Cor da Mobilidade. Também faz parte da série antirracista do RioOnWatch que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021—Enraizando o Antirracismo nas Favelas: Desconstruindo Narrativas Sociais sobre Racismo no Rio de Janeiro.

Sobre a autora: Jaqueline Suarez é jornalista e mestranda na UFF, cria do morro do Fallet, em Santa TeresaZona Central do Rio. É também comunicadora popular e vídeo-documentarista independente.

Sobre o artista: David Amen é cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, jornalista, grafiteiro e ilustrador.

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