No dia 28 de setembro de 2021 foi realizada a primeira Audiência Pública do Termo Territorial Coletivo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O evento foi organizado pela Comissão Permanente de Assuntos Urbanos e pela Comissão Especial pelo Direito à Moradia Adequada da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em parceria com o Projeto Termo Territorial Coletivo—projeto facilitado pela Comunidades Catalisadoras (ComCat)*. Moradores, lideranças comunitárias e representantes da sociedade civil e do Poder Executivo municipal debateram o instrumento, que recentemente foi incluído no Projeto de Lei de Revisão do Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro (PLC nº 44/2021, artigos 147 a 151) e que em breve será votado na Câmara. O evento, que aconteceu em ambiente híbrido e foi transmitido ao vivo no canal do YouTube da Câmara, teve início às 10h45 sob a presidência da Vereadora Tainá de Paula, Presidente da Comissão de Assuntos Urbanos, e contou com a presença dos vereadores Reimont, Eliel do Carmo e Monica Benicio.
Após uma breve introdução de cada vereador presente, Tarcyla Fidalgo, Coordenadora do Projeto Termo Territorial Coletivo, e Theresa Williamson, Diretora Executiva da Comunidades Catalisadoras, apresentaram o instrumento. Theresa iniciou a sua fala contextualizando a questão da moradia tanto no Rio, quanto ao redor do mundo e destacou o fato de que “pelo menos 20% da população de qualquer cidade no mundo não têm acesso à moradia através do mercado privado formal”. Ela acrescentou que cabe ao poder público ou à sociedade civil atender tal demanda. Theresa também relembrou os impactos que os megaeventos tiveram sobre diversas comunidades cariocas que sofreram com as remoções e a gentrificação. “Então vimos nesse processo que nem a concessão de uso na Vila Autódromo, nem os títulos que tinha em áreas do Vidigal levariam à segurança de posse”, disse Theresa. É nesse cenário que surge a busca por uma alternativa mais robusta que culminou na descoberta do Termo Territorial Coletivo (TTC).
O Termo Territorial Coletivo (TTC) é a tradução do Community Land Trust (CLT), um instrumento que emergiu do movimento de luta por direitos civis dos Estados Unidos na década de 1960 e desde então tem se espalhado pelo mundo, estando hoje presente em diferentes países e contextos. Através da gestão coletiva da terra, o TTC visa garantir o fortalecimento comunitário, a permanência dos moradores e o seu direito à moradia adequada, de forma permanente.
Segundo Tarcyla, apesar do TTC possuir um caráter altamente flexível, capaz de se adaptar a diferentes circunstâncias e atender às necessidades locais, ele é composto por algumas características essenciais, sendo a característica principal a separação entre a propriedade da terra e das construções. No modelo do TTC, a terra pertence à comunidade como um todo, a partir da construção de uma pessoa jurídica formada e gerida pelos moradores, enquanto as construções pertencem aos moradores individualmente. Além disso, a adesão ao TTC é espontânea, não podendo ser imposta aos moradores, e a gestão da terra deve ser realizada coletivamente. Por fim, a acessibilidade econômica permanente dos imóveis que fazem parte do TTC é o grande objetivo.
Valéria Hazan, representando a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano (SMPU) e o Secretário Washington Fajardo, explicou o processo de inserção do TTC na proposta de atualização do Plano Diretor do Rio e afirmou que um dos pontos mais importantes do instrumento é a “organização [dos] moradores em prol de um bem comum para eles”, além dele “resgatar uma visão de coletividade muito necessária para a cidade”.
Em seguida, a vereadora Tainá de Paula abriu a fala para representantes da sociedade civil, de universidades e de movimentos populares. Ricardo de Mattos, do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUTH), ressaltou os benefícios da maleabilidade e da adaptabilidade do instrumento e comentou sobre a sua aplicabilidade no contexto brasileiro. “Apesar de ser um instrumento muito promissor e novo, ele se adequa à legislação que nós já temos no Brasil, tanto a legislação federal quanto de outras esferas”, disse.
Orlando Santos Junior, do Observatório das Metrópoles, destacou a importância do protagonismo carioca na incorporação de novos instrumentos de planejamento urbano, principalmente quando se trata de um instrumento com o potencial de responder a grandes questões enfrentadas pela cidade, como “a regularização fundiária das favelas e assentamentos precários, e o enfrentamento do poder paralelo das milícias e do tráfico de drogas”. Ele também ressaltou que “a experiência pioneira de Porto Rico mostra que esse instrumento se mostra adequado para promover a regularização fundiária, a segurança da posse e a gestão comunitária de territórios populares, em especial as favelas; além de promover a garantia [da] moradia a preços acessíveis de forma permanente nesses territórios”.
Jurema Constâncio, coordenadora da União por Moradia Popular do Rio de Janeiro (UMP-RJ) e moradora da Cooperativa Shangri-lá, em Jacarepaguá, mencionou dois elementos trazidos pelo TTC: a garantia da segurança da posse e o debate sobre autogestão. Segundo Jurema, a discussão em torno do TTC “não vem de cima para baixo, a gente constrói junto.” Ela também comentou que é exatamente essa construção coletiva que levará a bons resultados. Representando a Pastoral de Favelas, Eliane Oliveira também ressaltou a importância do processo de gestão coletiva do TTC, que dá uma “chance aos moradores de controlar sua maneira de viver, sendo donos, com segurança, com controle… visando, assim, a defesa dos moradores contra todo esse processo de remoções e ameaças”.
Para Aruan Braga, do Observatório de Favelas, “compreender e entender que a regularização fundiária, o acesso do direito à terra não se conquista apenas com um instrumento jurídico” é algo muito importante. Ele afirmou que “o TTC promove, aliado a essas garantias legais, [um] processo de comunicação, mobilização e informação nos territórios populares”.
Em seguida, Neide Mattos, moradora do Conjunto Esperança, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, falou sobre a sua comunidade que, através de um processo de autogestão e mutirão, conseguiu construir moradias dignas para 70 famílias. Em relação ao TTC, Neide disse que ele “precisa ser implantado aqui no Rio, no Brasil para que… o morador seja ouvido e [para] que… ele consiga transmitir a sua segurança em relação a sua moradia, em relação a sua comunidade, para que a sua comunidade prospere”. Ela continuou dizendo que “não adianta vir com coisas de cima para baixo, em que o morador não participa, que o morador não sabe e que o morador não está ciente”.
Já Ailton Lopes, segundo secretário da Comunidade Trapicheiros, uma comunidade centenária na Tijuca que está lutando por sua regularização fundiária, compartilhou o motivo pelo qual eles apoiam o TTC: “Nós nos apaixonamos pelo TTC porque é uma ferramenta que realmente vai blindar as comunidades de uma forma protetiva contra a especulação imobiliária, tanto à gentrificação, quanto os ataques de remoção forçada”. Ailton também acredita que o TTC ajudará as comunidades a “se reerguer, se organizar, fazer com que a comunidade não seja só conhecida como uma comunidade, mas como uma sociedade, uma sociedade de baixa renda, mas que é organizada, que tem o interesse de melhorar o viver dos seus moradores”.
Representando a Comunidade Indiana, Marcello Deodoro relatou como foi o primeiro contato da Comissão de Moradores com o TTC em 2018: “Ali, a gente viu que as pessoas têm que ser escutadas, cada uma tem que ser escutada. Cada morador tem seu diferencial, cada comunidade tem sua particularidade. Ali no TTC, a gente se viu representado”. Para Marcello, o TTC traz aos moradores o pertencimento a sua comunidade e faz com “que eles sejam vistos como uma entidade única, que não vai ser dissolvida com uma, duas, três porradas”.
Por fim, Maria da Penha Macena, moradora da Vila Autódromo, na Barra da Tijuca, deu o seu depoimento sobre o instrumento: “Eu gostaria de dizer que [o TTC] traz realmente a esperança de toda comunidade, de toda favela, de toda moradia informal ser respeitada, porque é um direito de cada cidadão ser respeitado na sua moradia, que construímos com muita dificuldade”. Penha explicou que o TTC pode ser implementado em uma comunidade já existente, sem necessidade de realojamento e permitindo que uma favela seja melhorada e que os laços comunitários e sua história continuem, o que é de extrema importância para os seus moradores. Ela também afirmou que “a terra… não foi feita para ser vendida, ela foi feita para ser partilhada. [Mas] infelizmente, o homem não consegue entender muito isso”.
O Procurador Geral do Município, Luiz Roberto da Mata, finalizou os depoimentos falando da importância de superarmos “a ideia de que o bom é o direito de propriedade individual, que a propriedade coletiva tem sempre que um dia virar [individual]”. Além disso, o Procurador mencionou a necessidade de pensarmos em novas abordagens de propriedade que sejam coletivas e organizadas.
Também presente na plenária estava Fábio Dutra Costa, da Comunidade do Horto, que falou sobre a luta da sua comunidade contra a especulação imobiliária e as ameaças de remoção. Ele relatou a importância do instrumento e disse torcer para que ele “seja levado à frente não só no nível municipal, mas também no estadual e federal”.
Encerrando a audiência, o Vereador Reimont reafirmou a urgência e a importância do TTC para as comunidades cariocas e brasileiras e disse que o instrumento “trabalha com e não trabalha para” as comunidades, e que com isso “promove uma questão que é importantíssima… que é a questão da consciência crítica, de que cidade queremos, de que moradia desejamos, de que busca fazemos, de que sentido têm as nossas vidas”. Após as considerações finais, a presidente da sessão, a Vereadora Tainá de Paula, agradeceu a presença de todos e encerrou a audiência pública.
Para maiores informações ou para fazer parte do projeto TTC, visite o site www.termoterritorialcoletivo.org.
Assista à Gravação da Audiência Pública Aqui:
Leia a Transcrição Completa no Diário Oficial Aqui.
*Tanto o RioOnWatch quanto o Termo Territorial Coletivo (TTC) são iniciativas da organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).