Esta matéria é a segunda de uma série de três cobrindo as rodas de conversa do projeto A Cor da Mobilidade. Também faz parte da série antirracista do RioOnWatch que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021—Enraizando o Antirracismo nas Favelas: Desconstruindo Narrativas Sociais sobre Racismo no Rio de Janeiro. Leia a primeira matéria da série aqui.
Como construir um transporte justo e de qualidade para todos? Esse foi o tema da segunda roda de conversa realizada, no dia 20 de outubro, pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), em parceria com a Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade) e com o Pedal na Quebrada. O encontro faz parte do projeto A Cor da Mobilidade, que tem como objetivo visibilizar os efeitos do racismo no deslocamento da população negra e periférica pelas cidades. Neste segundo encontro, os participantes foram convidados a refletir como a qualidade do transporte público delimita o acesso à direitos e oportunidades.
Para falar sobre o assunto, foram convidadas Luana Costa, consultora de redes e mobilização social do Movimento Nossa BH, e Sarah Esli, arquiteta e urbanista. Luana e Sarah são mulheres negras que estudam mobilidade a partir da vivência em seus territórios. Luana é educadora e comunicadora popular, tem pós-graduação em direitos humanos e cidadania e, também, é coautora do artigo “A juventude negra vai circular”, publicado no livro Mobilidade Antirracista. Já Sarah Esli é idealizadora da plataforma Ruas e Rimas, que propõe estudos urbanos a partir da cultura Hip Hop. Ela vive na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte.
A facilitadora da conversa foi Lorena Freitas, doutoranda em Engenharia de Transportes e Coordenadora de Gestão da Mobilidade no ITDP. A poesia em forma de música de Rincon Sapiência deu início ao evento. Vivendo a experiência de um homem negro e periférico se deslocando pela cidade de São Paulo, o rapper escreveu a letra da música “Transporte Público”:
[…] Embarco no vagão, tranquilo, na moral
A viagem é coletiva, mas também é pessoal
Cada um busca uma forma de manter o astral
Ouvindo um som, bolando ideia, lendo jornalHorário de pico, metrô lotado, passando mal
Trabalhador no veneno bem antes do serviçal
Para o pobre, dificuldade é a real
A liberdade dos carros correndo na radial […]
Assim como Rincon, Sarah também acredita que o uso do transporte coletivo é uma experiência pessoal. Por isso, é tão fundamental pensar quem são as pessoas que planejam e quem são as pessoas que utilizam os modais. “Falar de direito à cidade pra mim é falar de experiência e de vivência. E, a vivência ela não se repete de uma pessoa para outra, ainda que essas pessoas estejam no mesmo espaço, no mesmo momento. A experiência não se repete”, argumenta Sarah, que complementa: “raça, gênero, sexualidade, idade são aspectos que vão estar sempre diferenciando as nossas experiências e as nossas vivências”.
A segurança no transporte coletivo é um bom exemplo disso. A segurança foi apontada pelos participantes da roda de conversa como um dos fatores centrais no momento de optarem ou não pelo transporte coletivo. Ainda que a questão tenha sido indicada por homens e mulheres e que abarque não só o interior do veículo, como também, o trajeto até as paradas, a preocupação delas é bastante diferente da preocupação deles. O medo do assédio e da violência sexual, por exemplo, é apontado como questão importante para as mulheres. Logo, a vulnerabilidade gerada pelo gênero propicia preocupações e vivências diferentes.
“Pensando transporte público, a criança passa por baixo da catraca. O idoso entra pela parte de trás. Uma pessoa com vínculo escolar, vai mostrar a carteirinha. O motorista, hoje em dia, é motorista e cobrador. Então, o mesmo ônibus vai ter experiências diferentes, por mais que seja o mesmo trajeto, o mesmo ponto de descida e de subida”, ilustra Sarah. A experiência também será determinada pelo território e, consequentemente, pelo perfil dos usuários. A oferta de transporte e sua qualidade delimitam os acessos e influenciam as dinâmicas de lazer, trabalho, educação e muito mais.
Para explicar isso, Sarah trouxe, para a roda de conversa, mapas do projeto Acesso a Oportunidades, fruto de uma pesquisa coordenada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O projeto estima o acesso da população a oportunidades de trabalho, serviços de saúde e educação por meio de transporte. Dessa forma, as desigualdades criadas ou acentuadas pela mobilidade tornam-se visíveis.
A partir dos mapas da cidade de Natal, Sarah mostra que os habitantes da região central conseguem acesso às oportunidades andando cerca de 15 minutos, enquanto aqueles que moram nas periferias necessitam do transporte para realizar esse acesso. “Falando de territórios periféricos, de pessoas racializadas, nós vamos estar falando, principalmente, de ônibus, trem, bicicleta e moto, pelo menos aqui em Natal”, conta Sarah. Logo, a ausência ou a oferta precarizada do serviço de transporte restringe ou até impede a circulação e acesso à oportunidades e direitos.
A raiz puramente quantitativa dos estudos e análises que norteiam a estruturação dos sistemas de mobilidade urbana é apontada por Sarah como um de seus grandes incômodos. “Existe uma valorização aos estudos e análises quantitativos, que com certeza tem importância para a gente elaborar e defender política pública, mas na minha opinião números não são suficientes para a gente entender os problemas e pensar caminhos, que preze direito à cidade e direito à mobilidade para todes”.
Para pensar em melhorias reais, segundo a pesquisadora, é necessário discutir a mobilidade e o planejamento dos modais com as pessoas que, de fato, utilizam o transporte público. Além disso, é necessário que as pesquisas priorizem as experiências e o perfil dos usuários: “A gente precisa conhecer quem usa o transporte público para daí construir os caminhos”.
Compreender a raça e origem dos usuários no debate sobre mobilidade, apontada por Sarah, foi o que levou Luana a entrar no movimento Nossa BH. Moradora da Zona Norte de Belo Horizonte, em Minas Gerais, ela tinha a missão, como ela mesma conta, de fazer o assunto “furar a bolha do centro da cidade” e chegar à periferia.
Ela relembra que o período pós escravidão no Brasil não veio acompanhado de políticas de reparação e equidade, produzindo uma sociedade desigual que se organiza a partir do racismo estrutural. A formação das favelas e as condições do transporte acessado por essa população periférica e, especialmente pelo povo negro, são atravessados por esse histórico. “Eu não consigo pensar na conexão de transporte enquanto direito para uma população que não tem, minimamente, a sua cidadania respeitada”, argumenta Luana, mostrando que o caminho ainda é longo.
“Não dá para falar de transporte público de qualidade na minha quebrada não”, conta Luana se referindo a dificuldade de discutir esse assunto nas periferias. Ela vive a cerca de 20 quilômetros do Centro da cidade e explica: “A vida inteira a minha experiência, como a de diversas pessoas que estão nessa região da cidade, é de estar longe dos espaços. Longe das oportunidades, longe do emprego, longe da escola, longe do posto de saúde ou do hospital”. Recitando um trecho do poema de Elisa Lucinda, que abre o livro Mobilidade Antirracista, ela resume: “nós estamos longe do sonho”.
Para Luana, no Brasil é possível falar de transporte coletivo, mas não de um transporte público de verdade pelo aspecto de propriedade que o sistema tem, fazendo dos lucros a prioridade. Assim como Sarah Esli, Luana vê a participação dos usuários, especialmente da população periférica, que é a que mais usa e depende do transporte público, como fundamental. “Para discutir direito, a gente tem que ocupar espaços. Como que a gente garante a participação das pessoas nesses processos? Olhando para BH e outras capitais do Brasil, essa participação não é garantida não!”, observa.
A plena participação dos usuários esbarra em uma série de questões, como indica a pesquisadora. Luana conta um pouco sobre suas experiências em fóruns e comissões de debate do assunto: “Não pense que o fato de aparecer uma pessoa preta lá garante que essa voz vai ser ouvida. Muito pelo contrário, todas as vezes que eu tive oportunidade de estar em um desses espaços, eu fui massacrada. Primeiro que, às vezes, eu não sou nem vista. Quando eu sou vista, eu sou vista como um elemento estranho, suspeito, como na nossa sociedade o preto é. E, voz? Voz é outra história”. Na contramão disso, Luana explica que o Movimento Nossa BH tenta articular redes e mobilizar as pessoas para construir outros espaços de debate sobre mobilidade, inclusive levando a discussão do Centro para os bairros periféricos.
Sarah e Luana mencionam, ainda, outros fatores que limitam ou até impedem a participação dos usuários do debate sobre mobilidade. O número reduzido de reuniões para ouvir a população antes da formulação de um planejamento é um dos exemplos. Sarah conta que em Natal, muitos moradores sequer ficam sabendo dos encontros e que muitos ocorrem no final da tarde, quando muitas pessoas ainda estão trabalhando ou no transporte. Já Luana chama atenção à tecnicidade que o assunto adquire, o que acaba afastando as pessoas da conversa. “Parece que se você não tem uma formação que, em alguma medida, possa falar sobre a temática da mobilidade, você não discute sobre isso. É um negócio que te afeta tanto e todo dia, como você não consegue falar sobre isso?”, questiona Luana.
Assista à Roda de Conversa “Como construir um transporte justo e de qualidade para todos?” Aqui:
Assista a última roda de conversa!
- Pedalar como resistência: racismo e mobilidade por bicicleta – Dia 27/10 de 18:00 às 20:00h. Inscreva-se aqui.
Esta matéria é a segunda de uma série de três cobrindo as rodas de conversa do projeto A Cor da Mobilidade. Também faz parte da série antirracista do RioOnWatch que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021—Enraizando o Antirracismo nas Favelas: Desconstruindo Narrativas Sociais sobre Racismo no Rio de Janeiro.
Sobre a autora: Jaqueline Suarez é jornalista e mestranda na UFF, cria do morro do Fallet, em Santa Teresa, Zona Central do Rio. É também comunicadora popular e vídeo-documentarista
Sobre o artista: David Amen é cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, jornalista, grafiteiro e ilustrador.