Esta matéria faz parte da série antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021—Enraizando o Antirracismo nas Favelas: Desconstruindo Narrativas Sociais sobre Racismo no Rio de Janeiro.
Salgueiros são árvores graciosas. Não é por isso que o morro carioca é denominado como tal, mas faz todo sentido mesmo assim. O Morro do Salgueiro, na Zona Norte da cidade tem um ambiente fértil, onde mulheres da comunidade formaram um grupo de erveiras. Após o término do programa Favela-Bairro, várias ervas que nasciam espontaneamente, e que também eram cultivadas para uso medicinal e culinário, foram arrancadas para dar passagem para o asfaltamento de ruas e construção de calçadas. Frente a este pequeno desmatamento, em 2019 alguns moradoras perceberam a necessidade de preservar e conhecer mais as diversas espécies da flora salgueirense. Para tal, as “tias”, como são carinhosamente chamadas na comunidade, contaram com a ajuda de médicos do posto de saúde Heitor Beltrão para agregar informações técnicas sobre os benefícios e propriedades de cada erva que nasce no morro.
Desde então, os encontros do Grupo das Erveiras e Erveiros do Salgueiro passaram a acontecer na tradicional Padaria Caliel, uma padaria familiar aberta na década de 1990 onde os pais de Marcelo da Paz—hoje administrador do estabelecimento—faziam pão em casa, sem nenhum maquinário. A massa com base no trigo e no fermento era preparada numa grande bacia, com a qual os proprietários saíam por becos e vielas vendendo seus pães e bolos para os moradores. A Padaria Caliel se transformou em um polo social que abraça a cultura do morro.
Antes da pandemia, as rodas de conversa das erveiras eram mensais, mas devido à pandemia do coronavírus, a padaria parou de receber o encontro presencial. Agora, elas estão se programando para retomar os encontros, seguindo todas as medidas de distanciamento social necessárias. A comunicação, por enquanto, tem sido virtual mas o grupo está firme e tem o propósito de catalogar as ervas espalhadas pela favela, pensando no diálogo com as novas gerações.
Denise Vieira, conhecida como “Denise Ambiental”, é uma das fundadoras do Grupo das Erveiras e Erveiros do Salgueiro. Ela explica: “Entrei no grupo por conta da minha mãe que era descendente de indígena, oriunda de Olinda, Pernambuco. No nosso quintal tinha muitas ervas que sempre nos curaram. Em uma parte da comunidade, tem um pomar com espécies nativas da Mata Atlântica. Lá, eu levei crianças e adultos para fazerem um reflorestamento. As árvores frutíferas não servem apenas para alimentar a fauna, mas também para nos alimentar, todas com propriedades medicinais. Somos uma área de amortecimento do Parque Nacional da Tijuca. As ervas e as plantas são seres que têm alma também. A lição é que sem elas não teremos qualidade de vida. As ervas podem não só gerar renda, mas também bem-estar”.
O objetivo do Grupo das Erveiras e Erveiros do Salgueiro é fazer prevalecer e manter viva a memória das matriarcas da favela. É mostrar para todos o potencial que há nos quintais de suas casas e nas matas que circundam a favela. A soberania alimentar também é um ponto discutido nos encontros. Denise Vieira conta: “Minha mãe morreu com 94 anos, gerava renda através de uma creche e cuidava das crianças através das ervas do nosso quintal. A creche era na nossa casa. Não existiam políticas públicas para creches nas comunidades em 1969. Mamãe usava fumo de rolo com álcool para acabar com os piolhos de todos. Usávamos carvão triturado para clarear os dentes como se fosse pasta de dente. Erva de bicho para curar coceira. Aroeira para curar picada de pernilongo, em forma de chá para banho. Lágrimas de Nossa Senhora para ajudar no parto das mães. Tínhamos galinheiro, e os alimentos para os galos e galinhas eram folhas. Até temos um pé de abiu centenário, uma espécie da Amazônia com inúmeras propriedades medicinais. E chá de folha da goiabeira para minimizar a diarreia. Água de limão com maizena é usada para refrescar o intestino. Naquela época não tínhamos muito acesso a tantas marcas de refrigerantes. As crianças eram mais saudáveis porque [os alimentos] eram naturais”.
Em dezembro de 2020, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil realizou uma pesquisa em 2.180 domicílios em áreas urbanas nas cinco regiões do país. Os resultados mostraram que em 55,2% dos lares as pessoas convivem com a insegurança alimentar. Somente 44,8% dos domicílios tinham, em algum nível, segurança alimentar.
Garantir e aproveitar integralmente as hortaliças espalhadas pela favela é a missão das erveiras. Denise Santos, coordenadora da Biblioteca Jurema Batista, localizada no espaço da Rádio Se Liga Salgueiro, reflete: “Um dia eu estava na parte alta e tinha um muro que era só hortelã-pimenta, eu fiquei até impressionada por uma quantidade tão grande assim da planta. Trabalhar com plantas só traz amor para nós. É aprender cada dia mais com elas. Às vezes a gente está no meio do caminho e nem sabe o nome da planta. Por enquanto, estou renovando a minha horta, mas já tenho alfavaca, assa peixe, guaco… Estão chegando aos poucos para serem plantadas num lugar específico e quem está doando é morador. Um dia desses levaram para mim saião. O aquecimento global só pode ser combatido se plantarmos árvores, diminuir as queimadas. Precisamos plantar nos vasinhos, nas hortas em todos os lugares para combater o aquecimento global e a fome mundial que é a face mais cruel do racismo ambiental”.
A maior parte das erveiras está acima dos 60 anos, portanto é um grupo formado, em sua maioria, por pessoas que estão no grupo de risco para o contágio do coronavírus. Por isso, o grupo decidiu migrar todas as conversas para o WhatsApp, respeitando o isolamento social necessário. Relembrando sua entrada no Grupo das Erveiras e Erveiros do Salgueiro, o forte caráter presencial do projeto antes da pandemia e a manutenção de suas atividades, mesmo que remotamente, Denise Santos conta: “Minha entrada no Grupo das Erveiras e Erveiros se deu por conta da horta Atitude, horta que eu cuido no Morro. Eu colocava as ervas lá e o pessoal vendo isso me chamou para ser erveira. A ancestralidade da comunidade me encanta. Antigamente todos se tratavam com ervas. Meu pai, quando chegou na comunidade, plantou muitas dessas ervas, mas com a passagem de calçamento e de pontes muito se perdeu. O grupo veio para resgatar essa cultura das ervas. Ficamos um pouco parados e o primeiro encontro presencial, na pandemia, foi em março deste ano. É uma questão de preservação já que quase todas as espécies estão se perdendo. Pois só algumas encontramos nas matas, porque já nascem naturalmente nos meios de pedras. As plantas trazem uma alegria enorme e não só nas hortas, mas também como forma medicinal como a cidreira e a hortelã-pimenta. Eu aprendi muito com esse grupo”.
Nossos Passos Vêm de Longe
O Morro do Salgueiro é conhecido pela tradicional Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. Não apenas o samba e seus baluartes constituem a longa trajetória da comunidade Tijucana. O início da sua formação populacional foi no ano de 1885, com a chegada de ex-trabalhadores das plantações de café do Vale do Paraíba e de áreas vizinhas. No final do século XIX, o Salgueiro ainda fazia parte da Chácara do Trapicheiro. O Salgueiro foi batizado com esse nome em meados de 1920, fazendo alusão ao comerciante português Domingos Alves Salgueiro, dono de 30 barracos na comunidade, que se tornou referência e, assim, o morro passou a ser conhecido como Morro do “seu Salgueiro”.
Em seguida, começaram a chegar os primeiros habitantes vindos do sul da Bahia, do Nordeste em geral e do interior do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Mantendo a ancestralidade passada por sua avó, a enfermeira Tânia Cristina, 54, conta como começou seu envolvimento com as ervas: “Minha avó era mineira e filha de escravo, já veio com essa bagagem da época dela para cá. Minha vó me ensinou a conhecer a planta pelo cheiro. Muitas vezes eu vejo uma planta e não sei identificar, mas aí dou uma maceração nas mãos, cheiro e vem logo o nome da planta na mente. Na época em que eu morei com ela não tínhamos muitos remédios de farmácia e utilizávamos pitanga, ervas de São João e amor do campo. Os anos foram se passando e [como] eu também sou candomblecista, aí que entrou mesmo a erva na minha vida. Sempre tive esse dom de mexer com as ervas. Eu sempre gostei muito de planta, porque a minha vó e minha mãe sempre mostraram para a gente o poder delas. Há 25 anos eu fiz enfermagem e aguçou muito mais a minha curiosidade na cura através das plantas. Eu não gosto de arrancar a planta. Às vezes eu acho uma planta na rua, pego e planto aqui na minha casa. Meu filho já falou que qualquer dia desses ele terá que sair para as plantas entrarem. Eu falei: ‘fica à vontade’. Eu faço muito xarope para meus netos, o Arthur, a Nathália e o Maurício. Desde cedo eu cuidei deles. Quando está todo mundo muito nervoso eu vou no meu pé de cidreira e faço um chá. São tantos matinhos que hoje em dia a gente deixa para lá”.
Depois da Providência, o Salgueiro é uma das favelas mais antigas do Rio. Foi lá que surgiu a primeira associação de moradores do município. Em 1934, os então 7.000 moradores do Salgueiro foram ameaçados de remoção, mas liderados pelo sambista Antenor Gargalhada saíram vitoriosos na disputa judicial e muitos de seus descendentes vivem no Salgueiro até hoje.
Janaína Soares, erveira de longa data, relata que através do seu pai ela se encantou pelo meio ambiente: “Meu pai fez parte da primeira associação de moradores da comunidade e eu aprendi muito sobre ervas [com ele]. Meu pai era espírita e ele tinha mais conhecimento das ervas por causa da mãe dele. Na minha infância e na infância dos meus filhos, por necessidade, ao ter febre ou um resfriado, a gente recorria às ervas. Com isso a gente passou a conhecer o que faz bem para nossa saúde. Eu uso [este conhecimento] até hoje. O meu filho do meio tinha bronquite e minha avó não precisava nem mandar, [pois] eu chegava com as ervas e entregava para ela. Na minha infância tudo era mais difícil e os nossos avós usavam muito as ervas. As coisas eram livres de agrotóxicos. Eu acho uma pena as crianças não terem muito o contato para conhecer a natureza. Cabe a cada adulto incentivar as crianças a plantar, colocar a mão na terra, mexer na natureza. Isso chama a atenção deles para que venham a se interessar e conhecer o poder das ervas”.
Inclusivo, o Grupo das Erveiras e Erveiros do Salgueiro tem também homens na sua formação original. O recorte de gênero e a ancestralidade latente são marcas centrais no trabalho das mulheres negras da favela. Fazendo parte da rede do programa municipal Hortas Cariocas, os próximos passos da equipe são levar as técnicas sobre cultivo, colheita e tudo que envolve o meio ambiente para outras favelas, produzir um herbário e voltar, em breve, com reuniões presenciais.
Retomada pós-Vacina com Consciência Ambiental
Sobre o retorno presencial, Janaína Soares disse: “Esse tipo de trabalho que a gente faz com nosso Grupo das Erveiras e Erveiros é uma troca de experiência muito boa, uma forma de ajudar outras pessoas que às vezes precisam de um remédio caseiro. Nunca descartamos os remédios tradicionais. Pelo contrário, a gente incentiva ir ao médico. O grupo nos fez ter amizades novas… A amizade fortaleceu nossa união. Estou doida para poder voltar com os encontros presenciais, [que] é uma troca de saberes muito importante e ainda é um momento de relaxamento, de entrosamento… Eu espero que as pessoas nessa pandemia se interessem mais pelo poder da erva. Na pandemia, eu mesma usei ora-pro-nóbis para fortalecer meu organismo. Acredito que as pessoas no pós-pandemia vão valorizar um pouco mais a natureza. Nosso trabalho é muito importante não só dentro da comunidade, mas também para tentar espalhar esse plantio e conhecimento para outros lugares. É lindo quando a pessoa tem curiosidade de pegar uma plantinha e perguntar o que é. Eu vejo o trabalho das erveiras como uma esperança de não perder os encantos da natureza. Espero passar para outras comunidades. Peço que plantem cada vez mais! Para que no nosso futuro venhamos a nos beneficiar com o plantio. Plantar é excelente para o nosso planeta”.
Seguindo na mesma linha de pensamento, preocupada com a crise climática que assola os continentes, Tânia Cristina teme pela qualidade de vida no planeta para as novas gerações: “Eu tenho consciência que a natureza conspira a nosso favor e também contra a gente quando fazemos mal a ela. Deus deu tudo para a gente de graça e os homens querem usufruir colocando preços e cobrando por plantas e vegetais que deveriam ser de graça e ainda tripudiam em cima das pessoas. A Covid-19 veio para provar que a natureza é quem manda e não o ser humano. Estamos aqui de passagem e destruindo o meio ambiente que devíamos deixar para as outras gerações. [A pandemia é] uma forma da natureza reclamar da nossa falta de atenção com ela. Eu queria muito que as pessoas tivessem mais amor, mais olho no olho, porque sem a natureza a gente não é nada. Não somos nada se não tiver o sol, se não tiver chuva, se não tiver vento. São elementos próprios para respirarmos, ter saúde e avançar na vida”.
Sobre a autora: Beatriz Carvalho, cria de Vilar dos Teles em São João de Meriti, é jornalista, mídia-ativista, feminista e toca o Mulheres de Frente.
Sobre a artista: Anna Paula Rodrigues é designer e ilustradora freelancer, formada em desenho industrial pela UFRJ. Anna Paula—que atua com a questão antirracista quanto a estética e beleza—trabalha como designer gráfica em diversas ONGs do Rio de Janeiro.
Esta matéria faz parte da série antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021—Enraizando o Antirracismo nas Favelas: Desconstruindo Narrativas Sociais sobre Racismo no Rio de Janeiro.