Esta matéria é a terceira de uma série de três cobrindo as rodas de conversa do projeto A Cor da Mobilidade. Também faz parte da série antirracista do RioOnWatch que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021—Enraizando o Antirracismo nas Favelas: Desconstruindo Narrativas Sociais sobre Racismo no Rio de Janeiro.
“Pedalar como resistência: como o racismo afeta a mobilidade por bicicleta“, esse foi o tema da terceira e última roda de conversa realizada, no dia 27 de outubro, pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), em parceria com a Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade) e com o Pedal na Quebrada. Neste último encontro, os participantes refletiram sobre os principais desafios que restringem os deslocamentos por bicicleta da população negra, periférica e de baixa renda.
As três rodas de conversa fazem parte do projeto A Cor da Mobilidade, que tem como objetivo visibilizar os efeitos do racismo no deslocamento da população negra e periférica pelas cidades. No primeiro encontro, foi abordada a estreita relação entre o racismo e a organização dos sistemas de mobilidade urbana. No segundo, a discussão foi sobre a qualidade do transporte público e suas consequências no acesso a serviços e oportunidades.
Em todas as três rodas, os participantes eram pessoas negras que estudam e participam de movimentos e coletivos atuantes no tema da mobilidade em diferentes cidades pelo Brasil. A rotineira ausência de pessoas negras, pardas, periféricas e de baixa renda nos espaços de debate e nas instâncias de decisão foi apontada, ao longo dos encontros, como um dos principais empecilhos para a identificação das reais demandas da população que utiliza e necessita dos sistemas de transporte. Isso também afeta a mobilidade por bicicleta, como discutiram os participantes da última roda de conversa.
Participaram do debate Carlos Greenbike, fundador da Associação Pedala Queimados, e Jamile Santana, cofundadora da Rede de Mobilização Coletiva Afro Ciclo. Carlos começou sua atuação na cidade de Queimados, na Baixada Fluminense, e já viajou a vários países levando o nome e a luta do Pedala Queimados. O projeto objetiva promover a bicicleta como ferramenta de transformação social, com foco na geração de trabalho e renda, promoção da cidadania e redução da desigualdade.
Antes de cofundar o projeto Afro Ciclo, Jamile esteve na criação de outra iniciativa chamada Preta, vem de bike, que ensinava e incentivava o uso da bicicleta para o deslocamento de mulheres negras. A partir dessa experiência, surgiu o desejo e a necessidade de olhar para esse assunto fazendo um recorte racial e de gênero, perspectiva que Jamile levou para dentro da universidade e virou pesquisa. Em 2020, nasceu o Afro Ciclo, projeto que busca a transformação social de comunidades periféricas, rurais e quilombolas segregadas do centro das cidades no Recôncavo Baiano, região interiorana da Bahia.
A facilitadora do último encontro foi Jo Pereira, diretora geral da Ciclocidade. Ela iniciou a conversa fazendo uma provocação aos presentes: “Quais deslocamentos por bicicleta você gostaria de fazer para ampliar o seu direito à cidade?” Ir ao trabalho, acessar parques e aparelhos culturais, além de unidades de saúde foram as principais respostas. Ela chama atenção às diferentes experiências durante esse deslocamento, em especial para a juventude negra, grupo que mais sofre violência nos espaços públicos.
Partindo da estrutura racista em torno da mobilidade, Jo pergunta: “O que torna visível essa mobilidade antirracista?” Na visão de Carlos, do Pedala Queimados, a insistência e persistência de coletivos e ativistas é o principal elemento na luta por uma mobilidade antirracista. O trabalho do coletivo possibilitou, ao longo dos anos, que ele e outras pessoas participassem de eventos e discussões sobre o tema no Brasil e no exterior. Em várias dessas viagens, como ele conta, ocorreram situações diversas onde o racismo ficou explícito.
Carlos lembra um episódio ocorrido em 2019, quando participou de uma conferência internacional na cidade de Dublin, na Irlanda. “Quando acaba o evento, eu, uma galera de São Paulo e algumas pessoas de outros países vamos em um pub. Toda aquela galera branca entra no pub e eu sou impedido pelo segurança de entrar. Eles saem, conversam com o segurança, chamam o gerente e, ainda assim, não deixam eu entrar. Tivemos que sair todo mundo para outro local, porque ali não foi permitido, porque eu sou negro”, lembra Carlos, que completa: “O que faz essa mobilidade, esse deslocamento antirracista é a nossa insistência, a nossa persistência e, com o passar do tempo, a gente vai furando esses espaços”.
Jo complementa: “Quando a gente está com um vocabulário mais apurado, quando a gente está em lugares que a gente constrói para estar também, ainda assim, a gente é questionada”, apontou.
Já Jamile aponta a existência da mobilidade racista como outro caminho de visibilidade—e necessidade—do deslocamento antirracista. “Se cria uma cidade que é totalmente segregacionista, onde se nega direitos de locomoção para a população preta, que ocupa a maioria desses lugares que estão à margem dos recursos”, observa. Um bom exemplo disso são os horários de pico que demarcam um horário de entrada e outro de saída do trabalho e, por consequência, delimita o período de circulação de determinadas pessoas nas áreas centrais das cidades.
Assim como Carlos, Jamile também destaca a ausência de pessoas negras nos espaços de discussão, inclusive nos encontros mobilizados pela sociedade civil. Ela lembra de uma das primeiras conferências que participou sobre o tema em 2016, onde quase todos os participantes eram brancos: “Eu contava nos dedos de uma mão as pessoas negras que estavam naquele espaço”.
Apontar essa ausência de diversidade e ocupar esses espaços são, segundo Jamile, mecanismos de enfrentamento à estrutura racista da mobilidade. Ela menciona, ainda, as ações voltadas a ensinar as pessoas negras e periféricas a pedalar, a instalação de bicicletários e a realização de campanhas de diálogo com a população e de fortalecimento da autoestima dos territórios. “É cada vez mais a gente denunciar esses espaços e reivindicar o nosso lugar de direito”, resume Jamile, que observa: “2020, 2021 foram anos que eu consegui ver um movimento muito maior de mesas falando sobre mobilidade antirracista, mobilidade racista, mobilidade nas periferias, colocando mais os movimentos negros e as pessoas negras em pauta”.
Dando sequência, Jo Pereira compartilhou uma experiência que vivenciou em 2019. Na ocasião, ela havia sido convidada a palestrar em um grande evento sobre mobilidade. “Eu fui testada em todas as instâncias, quanto à capacidade, quanto ao penteado que eu iria para o evento, que roupa que eu iria para o evento, o que eu ia apresentar no evento… Dentro da apresentação que eu fiz, eu comecei com Maria Carolina de Jesus e a pessoa da comunicação falou ‘mas quem é essa mulher?’ Eu naquele dia estava muito ferida, mas eu fui lá e falei quem era essa mulher, quem somos nós”, contou Jo sobre o racismo sofrido. Ela lembra que a luta contra o racismo é uma luta coletiva e, principalmente, que não é responsabilidade apenas das pessoas negras.
“Pedalar para nós que estamos dentro dos coletivos e instituições passa a ser também um lugar de incidência política”, avalia Jo. “A maior parte das pessoas que pedalam neste país são as pessoas negras e das periferias, mas não são essas pessoas que estão no pensar das políticas públicas, no pensar da mobilidade urbana”, lembra ela. A partir disso, ela perguntou sobre os desafios enfrentados pelos coletivos para garantir a continuidade da luta e do próprio grupo.
Para Jamile, o fortalecimento das pautas e do próprio coletivo passa por reconhecer seus iguais. Isto é, dialogar e reunir com movimentos e pessoas que tenham propósitos semelhantes. Articular agendas e propostas em conjunto, na sua visão, é um ato de construir coletivamente, assim como buscar fortalecer o coletivo por meio da própria comunidade. “Nesse lugar de ensinar crianças a pedalar, eu vejo que têm vários movimentos pretos de mobilidade, vários cicloativistas que estão atuando nisso… Ensinar crianças, ensinar mulheres, isso é um movimento comum”, defende Jamile.
Ela resume: “Quanto mais a gente se une e percebe o nosso inimigo comum, que é esse desenvolvimento predatório, e a gente compreende as nossas estratégias de resiliência e de revolução frente a isso, mais a gente se fortalece”.
A proposta inicial do Pedala Queimados era pensar a mobilidade na cidade de Queimados, mas como contou Carlos não dava para ficar alheio à realidade do município. O território entrou na pauta nacional pelo viés da segurança pública: em 2018, Queimados foi considerada a cidade mais violenta do país pelo Atlas da Violência, pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No ano seguinte, a mesma pesquisa continuava apontando o município como um dos cinco mais violentos do país.
O acesso à educação e ao trabalho são outros problemas enfrentados pela população, que, em sua maioria, acaba encontrando emprego bem longe de casa: “nós somos o segundo maior tempo de deslocamento casa-trabalho [do país], somos uma cidade dormitório onde as pessoas em sua maioria levam três horas para chegar na capital, três horas pra ir e três horas para voltar”, conta Carlos, citando dados de 2010, levantados no último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Nesse cenário, o projeto passou a tentar envolver especialmente os jovens em suas atividades, com foco na capacitação e geração de renda desse grupo. O grande problema em continuar esse trabalho, segundo Carlos, é a falta de apoio. “Eu, particularmente, me dedico 100% ao Pedala Queimados e a pedalar, mas quando eu olho para o lado eu não tenho ninguém que se comprometa 100% também, porque a gente não tem renda. Como eu garanto a demanda da sociedade se a nossa [demanda] não está assistida?”, questiona.
Para Carlos, a solução dessa questão passa pela geração de trabalho e renda, especialmente para aqueles que fazem o coletivo acontecer de modo a garantir uma base mais sólida. “O que a gente precisa muito—as instituições, os coletivos—[é que] as empresas, os editais, olhem para esse território, olhem para esses coletivos que estão no território fazendo”, argumentou. Carlos explicou que, por vezes, instituições externas ao território recebem recursos para realizar trabalho que coletivos locais poderiam desempenhar ou que já realizam, porém sem apoio financeiro. “Todo mundo fala que o que a gente faz é super maneiro, mas no final do mês não dá pra fechar a conta”, resume. Garantir a participação das pessoas negras e periféricas nos espaços de discussão e decisão sobre o tema é o primeiro passo para levantar demandas reais que atendam e garantam o acesso dessas pessoas à mobilidade urbana e, em especial, à mobilidade por bicicleta.
Assista à Roda de Conversa “Pedalar como resistência: como o racismo afeta a mobilidade por bicicleta” Aqui:
Esta matéria é a terceira de uma série de três cobrindo as rodas de conversa do projeto A Cor da Mobilidade. Também faz parte da série antirracista do RioOnWatch que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021—Enraizando o Antirracismo nas Favelas: Desconstruindo Narrativas Sociais sobre Racismo no Rio de Janeiro.
Sobre a autora: Jaqueline Suarez é jornalista e mestre em Mídia e Cotidiano pela UFF, cria do morro do Fallet, em Santa Teresa, Zona Central do Rio. É também comunicadora popular e vídeo-documentarista
Sobre o artista: David Amen é cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, jornalista, grafiteiro e ilustrador.