Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria do RioOnWatch com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para produzir matérias que serão utilizadas como recursos pedagógicos em escolas públicas de Niterói.
O mundo começa a experimentar, de forma cada vez mais frequente, eventos climáticos extremos. O aumento da temperatura tem modificado o clima, ocasionando chuvas cada vez mais intensas, ao mesmo tempo em que alguns países registram ondas recordes de calor. Essas alterações climáticas são consequências de um modelo de desenvolvimento predatório de consumo e produção. Isso é, as ações humanas são responsáveis por essas mudanças. A constatação é do último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) divulgado em fevereiro de 2022.
Por muito tempo, imaginou-se que as mudanças climáticas seriam uma consequência para o futuro, mas o documento do IPCC aponta que elas são um desafio do presente. Metade da população mundial já vive sob risco climático, segundo o relatório. Esse cenário é ainda mais grave para as populações marginalizadas, como os moradores de favelas e periferias, indígenas e quilombolas. São essas as pessoas que vivem em áreas mais vulneráveis e desinvestidas pelo poder público, com menos recursos para se adaptar às mudanças e aos eventos extremos.
Nas regiões mais vulneráveis, o número de mortes por secas, enchentes e tempestades foi 15 vezes maior na última década do que nas regiões menos vulneráveis. Refletir sobre isso nos conduz à ideia de justiça climática, que surge para reivindicar e visibilizar a importância da defesa, da seguridade e da equidade aos direitos ambientais, ao direito à terra, à água, a um solo produtivo, ao ar limpo e a um ecossistema equilibrado.
Os impactos da crise climática não atingem a todos da mesma maneira. Pessoas e comunidades estruturalmente apartadas do acesso aos serviços e às políticas públicas sofrem mais profundamente com as questões ambiental e climática.
“O que acompanha as mudanças climáticas dentro das previsões são os agravamentos dos eventos extremos. Longos períodos de secas, aumento da temperatura, chuva e estiagem, por exemplo. Sabemos que se a estiagem gerar uma falta de água nas grandes cidades os lugares que vão ficar desabastecidos são as favelas. A Providência já sofre com a falta d’água estruturalmente e historicamente”, explica Lorena Portela, co-coordenadora do projeto Providência Agroecológica. A iniciativa, que faz parte da Rede Favela Sustentável (RFS)*, tem como objetivo a segurança alimentar e a promoção da saúde através da educação, da agroecologia e do saneamento ambiental junto às crianças, jovens e mulheres do Morro da Providência, no Centro do Rio.
Justiça climática, para Lorena, está relacionada a entender quem são as pessoas mais atingidas pelas mudanças no clima e, a partir disso, agir politicamente para mudar essa realidade. Ela argumenta:
“As mudanças climáticas são problemas globais, mas elas afetam de forma desigual as pessoas. Então, a justiça climática é entender que as medidas para enfrentar as mudanças no clima precisam ser pensadas e se tornarem políticas de ações localizadas. No caso das favelas tem toda a questão dos terrenos que podem desabar, tudo isso precisa ser pensado porque já são áreas vulneráveis onde o poder público não chega.”
A forma desigual como a crise no clima afeta as populações é uma perspectiva central para entender a ideia de justiça climática. Também é importante discutir quem são os principais responsáveis por esse problema. As nações mais ricas, por exemplo, são responsáveis pelas maiores quantidades de emissão de gases de efeito estufa, mas sofrem menos as consequências desse agravamento no clima, se comparado com os países menos desenvolvidos. O relatório Desigualdade Mata, publicado pela Oxfam, traz outro dado significativo: 1% das pessoas mais ricas do mundo emitem mais do que o dobro de gás carbônico do que os 50% mais pobres do mundo.
O cenário de injustiça climática é moldado, ainda, pela ausência daqueles que mais sofrem com as consequências dessa crise no debate e nas instâncias de decisão. Nesse sentido, os esforços por se fazerem presentes nos espaços de visibilidade e discussão sobre o clima e o meio ambiente têm obtido bons resultados. Em novembro do ano passado, aconteceu a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26), encontro anual da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC).
Ativistas de todo o mundo participaram e realizaram uma agenda paralela ao encontro, trazendo para o centro do debate os interesses e as urgências das populações periféricas. Lideranças de favelas, representantes de comunidades quilombolas e indígenas e ativistas do movimento negro do Brasil estiveram na COP26, cobrando um compromisso real com a justiça climática e denunciando o racismo ambiental e o acesso desigual aos recursos naturais.
Apresentar a discussão sobre o clima e o meio ambiente às comunidades e indivíduos que estão na periferia e engajá-los a se apropriar das discussões têm sido um trabalho conduzido por diversas iniciativas nas favelas da região metropolitana do Rio. Uma delas é o Projeto Inclusão, localizado em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. O projeto está trabalhando o conceito de justiça climática especialmente com crianças e adolescentes, orientando-os a usar os recursos de forma mais cuidadosa, como explica Élida Nascimento. A coordenadora do Projeto Inclusão conta:
“Estamos realizando ações de conscientização sobre a sustentabilidade no planeta para crianças, jovens e adultos através de um laboratório vivo, com hortas, educação ambiental e alimentação saudável. Também procuramos realizar o plantio de árvores pela comunidade.”
A cultura do consumo, no entanto, é vista por Élida como um grande desafio ao trabalho de educação ambiental. “Tem sido muito difícil, porque a mídia comercial a todo momento influencia o consumo exacerbado, o que gera muitas consequências à natureza”, observa a mobilizadora.
Justiça Climática na Voz das Lideranças Integrantes da Rede Favela Sustentável
Historicamente, áreas desinvestidas, como favelas, para se desenvolver na ausência do Estado, atuam a partir de soluções com base em seus ativos, ou seja, por meio dos talentos da comunidade e do potencial das pessoas e projetos do próprio território. Apesar do contexto desigual, que atravessa também a esfera ambiental, as favelas e periferias produzem bons exemplos para toda a cidade.
Os integrantes da Rede Favela Sustentável, moradores de favelas e periferias do Rio, são preocupadas com o futuro sustentável de suas comunidades e com a redução dos impactos causados pelas mudanças climáticas sobre seus territórios. A maioria dos projetos da Rede são voltados para o cuidado, gestão e desenvolvimento sustentável, que visam a proteção, a conservação e a regeneração da natureza. São iniciativas que trabalham a educação ambiental, o manejo de áreas verdes, o uso de energias renováveis e o saneamento básico, por exemplo.
Núbia Corrêa, coordenadora da Comissão de Meio Ambiente de Jacarepaguá, integra a Rede Favela Sustentável há cerca de três anos. Ela é fundadora do projeto Plantas do Quintal, que trabalha com produção de plantas ornamentais, plantas alimentícias não-convencionais (PANCs) e plantas medicinais a partir da gestão de resíduos domésticos para o cultivo, que resulta em geração de renda.
Na visão de Núbia, há uma estreita relação entre as mudanças no clima e a política. “Nesse momento é mais fácil falar da injustiça climática. Não tem como separar a [in] justiça ambiental da política. As mudanças climáticas ocorrem justamente pela brutal ação do homem contra a natureza com conivência da omissão do poder público. Queimadas, desmatamentos, plantios de soja onde deveria haver florestas nativas… Tudo isso afeta mais a quem? Com certeza não os engravatados em seus carros de luxo”, opina.
O trabalho coletivo e a multiplicação de boas práticas são o caminho vislumbrado por Núbia para mitigar e enfrentar as consequências da crise climática: “O que é preciso para tentar, de alguma forma, reverter esse quadro? União, se colocar no lugar do outro, saber que suas atitudes geram consequências inevitáveis, como essa tragédia [a crise climática] há anos anunciada pela ciência e negligenciada pelo poder público. Tem muita gente já fazendo coisas muito boas, mas infelizmente nem tudo chega a todos. Quero ser mais um grãozinho nesse marzão”, conta Núbia.
A preocupação e ação em torno do meio ambiente e do clima são comuns a muitas iniciativas e lideranças que fazem parte da Rede Favela Sustentável. Bruno Almeida, de Santa Cruz, Zona Oeste, é mais um “grãozinho nesse marzão”. Ele é historiador e atua no Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH), iniciativa que integra o Eixo Cultura e Memória Local da RFS. Na compreensão de Bruno, “a justiça climática remete a uma ideia de que vivemos uma injustiça com o clima, uma injustiça produzida por nosso modo de vida e que prejudica nós mesmos, especialmente aos pretos, periféricos. Prejudica todos os seres vivos do planeta que, assim como nós, também dependem de um planeta saudável para continuar existindo como uma espécie”. Ele continua: “sem um olhar apurado do poder público os mais pobres ainda vão continuar à margem e afetados pelo racismo ambiental”.
Racismo ambiental e justiça climática são ideias próximas, mas com significados diferentes. De forma simplificada, podemos entender que o racismo ambiental está relacionado ao perfil das pessoas que sofrem com a falta de acesso aos recursos naturais, com as consequências das políticas e com ações negligentes com relação ao meio ambiente.
Alguns exemplos cotidianos podem facilitar o entendimento dessa ideia. Quais são os locais da cidade com os menores índices de saneamento básico? Onde ficam os lixões e aterros sanitários que concentram os resíduos recolhidos na cidade? Quem são as pessoas mais afetadas pela falta de água? Qual a cor, a classe social e o endereço dessas pessoas? Se esses problemas se concentram em locais periféricos, como por exemplo as favelas e a Baixada Fluminense, elas configuram episódios de racismo ambiental, porque prejudicam populações específicas, sobretudo pessoas negras, maioria nesses territórios.
Na medida em que os recursos naturais são negligenciados e ultrapassamos a capacidade do planeta em absorver os impactos gerados, ampliamos o cenário de crise ambiental e entramos, também, em uma emergência climática. Para Hanna Cavalcanti, ambientalista do coletivo Planta na Rua, localizado na favela do Cantagalo na Zona Sul, e ativo por toda a cidade, essa relação se tornou bastante explícita com a chegada da pandemia do coronavírus. Ela argumenta que “a pandemia tenha contribuído para acelerar esse processo de mudança [de consciência] em alguma medida…, pelo menos para uma parte das pessoas que entendeu o recado de tudo que está acontecendo”. A iniciativa faz parte do Eixo de Soberania Alimentar da RFS.
Justiça Climática no Contexto Fluminense
Cidades costeiras, como o Rio de Janeiro, estão particularmente ameaçadas pelas mudanças climáticas. Com o planeta mais quente, as geleiras derretem e eleva-se o nível do mar, que avança sobre as cidades. No Estado do Rio, a cidade de Atafona, no litoral norte, é um grande exemplo dessas consequências. É a cidade brasileira mais afetada pela erosão e pelo avanço do mar, fenômeno que já destruiu centenas de casas. A elevação do mar, no entanto, é apenas uma das diversas consequências da crise do clima.
Ondas de calor, secas extremas, enchentes, perda de produtividade humana e agrícola, extinção de espécies e deslocamentos humanos forçados fazem parte dos apontamentos do 6º Relatório do IPCC. Segundo o relatório, algumas consequências já são irreversíveis. Portanto, reduzir as emissões para frear os impactos mais severos e se adaptar a essa nova realidade são ações urgentes. Políticas públicas e projetos sociais podem ser fundamentais para isso.
Um exemplo que emerge do contexto fluminense é a política estadual de apoio à agricultura urbana (Lei 8366/2019), que busca apoiar, incentivar e proteger áreas de agricultura urbana, garantindo a segurança alimentar e nutricional da população carioca em bases sustentáveis. Além do impacto na segurança alimentar, também é objetivo da lei estimular a economia solidária, produzindo renda para associações e cooperativas, e, também, incentivar a criação de áreas verdes, no intuito de controlar a poluição e a erosão, protegendo a fauna e a flora.
“Chegamos [também] a apoiar vereadores que colocaram propostas, com difícil aprovação, de até reduzir o valor do IPTU de quem, comprovadamente, reflorestar as áreas verdes em volta de sua casa, na rua, em praças e coisas do gênero… Ou seja, há vários caminhos relacionados à pequena agricultura urbana, periférica, comunitária ou em matas. Existem conhecimentos tecnológicos que podem ao mesmo tempo remunerar a população, atrair pássaros, diminuir o calor e frear as mortes por desabamentos. Então temos aí um campo vasto e promissor”, conta o Deputado Estadual Carlos Minc.
Sabemos, portanto, que no Rio muita política boa não é de fato realizada. Com isso, nossa realidade até hoje foi de depender de soluções que emergem da sociedade civil. Exemplo disso é o projeto Providência Agroecológica, liderado por três mulheres: Elisângela Almeida, Lorena Portela e Alessandra Roque. O coletivo surgiu em 2015, após Elisângela participar de um curso de formação de lideranças por meio da Agência Redes para Juventude. Assim, nasceu primeiro a Horta Inteligente, projeto de educação ambiental voltado para crianças, aliando o cultivo de alimentos com a restauração de áreas degradadas no Morro da Providência. Algum tempo depois, Elisângela encontrou Lorena e Alessandra, que hoje se reúnem na iniciativa Providência Agrocológica.
As mobilizadoras trabalham voluntariamente e, com muito esforço, conseguiram construir uma sede para o projeto. No espaço existem mais de 500 espécies de hortaliças e plantas medicinais. A iniciativa oferece atividades diárias de plantio, oficinas para crianças e alimentação. “O que a gente faz dentro do Morro da Providência passa pela justiça climática”, explica Lorena. “Nosso trabalho de reflorestamento, de plantio de alimentos e de educação ecológica estão ligados ao fortalecimento de práticas em saúde baseados nos conhecimentos tradicionais com o uso de plantas medicinais. Entendemos que a gente contribui para a resiliência, autonomia e fortalecimento do território e, também, para a resistência aos efeitos adversos das mudanças no clima. Conseguimos conforto térmico quando temos um ambiente reflorestado e ecologicamente equilibrado. Conseguimos acessar alguns alimentos sem ficar dependendo de safras muito longas ou externas ou dependendo da variabilidade dos preços dos alimentos que acontecem em qualquer momento de crise”, conclui ela.
A produção de energia limpa e renovável é outro caminho proposto por iniciativas localizadas em favelas do Rio. A Revolusolar, primeira cooperativa solar do Brasil, atua na Babilônia e no Chapéu Mangueira, comunidades da Zona Sul, desde 2016. O projeto de energia solar trabalha com o treinamento de mão de obra local, geração de renda e educação ambiental. O sistema de geração compartilhada beneficia 34 famílias, tendo elas as contas de luz com redução de 30% no valor mensal e ainda com a vantagem de todas estarem consumindo uma energia limpa.
Para Eduardo Ávila, Diretor Executivo da Revolusolar aliado ao Eixo Justiça Energética da RFS, as ideias de justiça climática e justiça energética dialogam com a noção de democracia. “A justiça climática e justiça energética têm a ver com democratizar não só as respostas para mitigação da crise climática, mas também as oportunidades de desenvolvimento sustentável que surgem dela, como as energias renováveis, por exemplo”, argumenta.
Aproximar a produção da energia do ponto onde a mesma é consumida gera uma economia não apenas financeira, mas sobretudo de recursos. Para Eduardo, a presença das placas solares e desse processo no cotidiano das comunidades cumpre, ainda, um papel de conscientização ambiental. “Nós enxergamos as placas solares como mecanismo de educação ambiental, engajamento comunitário na temática de sustentabilidade, na medida que traz, o que antes era algo tão distante dos consumidores finais, para perto”, explica ele, que continua: “A placa solar permite que a gente veja a energia sendo gerada e participe do sistema. Isso contribui para que possamos entender o que está por trás e consequentemente dar a direção para resolver o problema das pessoas e das comunidades, democratizando realmente [o acesso à energia]”.
O Rio de Janeiro é uma das maiores capitais do país e, assim como quase todos os grandes centros urbanos, também teve sua formação e estruturação fundamentadas no capitalismo e no colonialismo. Uma das consequências mais concretas desse processo é a hierarquia nas relações entre espécies, gênero, classe e raça, acarretando uma situação de vulnerabilidade à natureza e a certos indivíduos e comunidades. Isso se apresenta de diversas formas, inclusive por meio da negligência de agentes sociais e do poder público no uso dos recursos naturais, na ocupação dos territórios e na estruturação das cidades.
É a periferia e as pessoas que nela vivem que mais pagam essa conta. A nível global, os países do sul, como o Brasil, estão na periferia do sistema político e financeiro internacional. Em comparação com as nações mais ricas, são os países em desenvolvimento da América Latina, África e Ásia os que mais sofrerão com as consequências das mudanças no clima. Sobre isso, Jane Matos, conhecida como Janinha, argumenta: “A mudança climática é injusta porque os que mais causam o aquecimento global são os que sofrem menos com as consequências e as transformações”.
Para Janinha, os países mais ricos, com suas grandes indústrias, são os que mais colaboram para as emissões de gases do efeito estufa, mas não se pode eximir as demais nações dessa conta. “No Brasil também é assim pois não respeitam a natureza e causam, dessa forma, várias tragédias para o povo e para o mundo”, finaliza ela. Janinha mora em Queimados, na Baixada Fluminense, e atua no pré-vestibular popular da Educafro.
A justiça climática está no centro da agenda e do debate proposto pela Rede Favela Sustentável, que, este ano, está promovendo uma série de atividades e eventos sobre o tema. Ainda que, à primeira vista, o termo possa parecer distante da realidade das comunidades, as consequências concretas da falta de justiça climática e ambiental são vivenciadas cotidianamente. O primeiro passo para buscar justiça no clima é por meio da participação e das vozes de pessoas e comunidades mais atingidas pelas mudanças climáticas.
*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são projetos da organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras.
Sobre a autora: Beatriz Carvalho, cria de Vilar dos Teles em São João de Meriti, é jornalista, mídia-ativista, feminista, toca o Mulheres de Frente.