A vigésima Semana Nacional de Museus entre 16-22 de maio de 2022, traz o tema: O Poder dos Museus. Publicamos hoje essa matéria noticiando uma atividade reveladora deste poder realizada por alguns dos museus comunitários das favelas do Rio de Janeiro, uma atividade preparatória para a Conferência Popular pelo Direito à Cidade que será realizada entre 3-5 de junho.
Como parte das atividades preparatórias para a Conferência Popular pelo Direito à Cidade, reuniram-se no dia 09 de abril, na Vila Autódromo, líderes comunitários, aliados técnicos e agentes públicos para debater o tema “Favelas e Periferias: Memórias como Instrumentos de Luta pelo Direito à Moradia Digna e à Cidade”. A organização do evento foi realizada por membros da Comissão de Moradores da Comunidade Indiana Tijuca, Comunidade Trapicheiros, Cooperativa Esperança, Museu de Favela (MUF), Museu das Remoções, Museu do Horto, Pastoral de Favelas, Rede Favela Sustentável e SOS Vargens. Dentre as participações, destacam-se as falas de Maria da Penha Macena da Vila Autódromo e do Museu das Remoções; Neide Mattos da Cooperativa Esperança; Marcello Deodoro, membro da Comissão de Moradores da Comunidade Indiana; Ailton Lopes, segundo secretário da Comunidade Trapicheiros; Maria Emília, integrante da associação de moradores do Horto e co-fundadora do Museu do Horto; e Márcia Souza, do Fórum Cidade Favela e Patrimônio e fundadora do Museu de Favela.
Maria da Penha abriu o evento com uma fala contundente sobre a necessidade de se exigir respeito aos moradores periféricos e favelados: “Todos nós temos direito à cidade. Quem constrói essa cidade somos nós, mas muitas das vezes nós somos violentados dentro dessa cidade. E hoje esse encontro é para isso, para a gente falar um pouco dessa falta de respeito… Se o povo descobrisse a força que tem, nós teríamos um país com uma potência muito grande”.
Apresentação em Roda Inicia Discussão sobre Memória, Museus e Remoções
Depois da abertura, o evento seguiu com uma troca de experiências entre os representantes comunitários sobre a história de suas comunidades, os principais desafios enfrentados e quais soluções têm encontrado para contornar essas situações. Sobre os museus comunitários e o Museu das Remoções, Maria da Penha acrescenta: “os museus comunitários, que são criados a duras penas, não têm direito a nada. Todo museu de território fomos nós que construímos com nossas próprias histórias. E nós não temos vozes, não temos capital. O Museu das Remoções, por exemplo, é voluntário. É muito bacana o nosso trabalho, fico muito feliz de fazer parte desse museu… Porque a gente quer entender o dia que vai conseguir, de verdade, que essa cidade nos represente, nos respeite, que é o fundamental”.
Acerca da Cooperativa Esperança, Neide explica a luta que foi reivindicar o direito à moradia, os anos participando de reuniões e no canteiro de obra construindo casas em sua comunidade: “Nós somos um grupo há 22 anos, que começou a se reunir no meio da rua, moradores que precisavam de casas. E, a partir daí, junto com a União Nacional por Moradia Popular, a gente começou a reivindicar terra, a reivindicar recursos… A gente conseguiu construir 70 casas… [A Cooperativa Esperança] é um projeto lindo na sua essência e na sua parte física”.
Neide também destaca o papel primordial das mulheres na construção da cooperativa: “Tudo isso com a mão de obra, a maior parte de mulheres; o grupo é formado, a maior parte, por mulheres. Nós mulheres temos a gana, a necessidade de ter o nosso lar, o nosso canto. Então, quando tem uma briga com mulheres, meu amigo, sai de baixo, porque a mulher pode muito”.
Na sequência, Marcelo apresenta a comunidade Indiana: “É uma comunidade pequena, com aproximadamente 600 casas… Em 2010, com a entrada da UPP nas comunidades, ela se sentiu ameaçada… Em 2012, nós tivemos que lutar para não sermos dizimados, para não sermos removidos. Daí a criação da Comissão dos Moradores da Indiana, que, junto com a Pastoral de Favelas, o Conselho Popular, todos os movimentos sociais e o NUTH [Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro], se mobilizaram para lutar para que nós não fôssemos removidos. E nesse ano agora de 2022, estamos fazendo 10 anos de resistência”.
Ailton também apresentou sua comunidade, Trapicheiros: “É uma comunidade centenária… A partir de 2010, também passamos pela mesma questão, dois anos antes da Indiana, de começar o enfrentamento da prefeitura querer derrubar as casas das pessoas… E em 2015-2016 foi construído um condomínio onde eles devastaram uma área totalmente verde… Numa audiência pública eles disseram que nós éramos uma poluição visual. A gente resistiu. Em 2018 montamos a nossa associação de moradores. Nós também conseguimos conquistar em 2019 a nossa AEIS, a Área de Especial Interesse Social. E agora, no finalzinho de 2021, nós recebemos, as 56 famílias que são parte da comunidade, através do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ), o nosso Termo de Reconhecimento de Posse”.
Ailton faz também uma reflexão sobre o que é ser considerado um invasor: “Nós temos uma família que já está na quarta geração. Como é que nós podemos ser invasores numa quarta geração? A tia da minha esposa tem 84 anos, ela chegou na comunidade com seis. Então, como é que você tem um invasor com mais de 70 anos [no território]?”
Em seguida, Emília apresentou o Museu do Horto e compartilhou suas considerações sobre o papel dos moradores das favelas na construção da cidade “nós somos descuidados, nós somos discriminados pela elite, pela burguesia que esquece, que esquece não, que desconhece que essa cidade só existe porque tem a nossa contribuição pesada para sua construção, para sua existência”.
Por fim, Márcia, do Museu de Favelas, um museu a céu aberto no Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, trouxe um pouco da história da formação do museu, que se deu a partir do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC): “A gente foi notando que a favela necessitava de muito mais coisas do que só uma melhoria de água, esgoto ou de uma melhor circulação no território. A gente começou a pensar na nossa memória; a gente queria que aquela favela fosse reconhecida e a gente entendeu que o que chamava atenção no PPG era o turismo. Como que a gente ia fazer com que o turismo trouxesse políticas públicas para dentro da favela? Aí que veio a grande sacada, a museologia social, que fala do ecomuseu. O museu não é o que está dentro, mas o que está no entorno, o que está fora, o que está dentro, então, a favela toda virou um museu… O acervo sendo as pessoas, o que articula a memória. Todo mundo tem como e deve criar o seu museu no seu território. Todo lugar deve ter o seu museu porque a memória, com o tempo ela fala. Somos cidade, somos patrimônio e memórias não se removem”.
Em seguida, Márcia finalizou sua participação relembrando a atmosfera terrível em uma comunidade ameaçada de remoção. Ela contou como isso afetou os moradores das favelas do complexo em que mora. “Lá no Cantagalo também teve remoção, muitas pessoas perderam suas casas. Eu sou nascida e criada lá no Cantagalo e eu tive pessoas que morreram de tristeza porque viram o seu castelo ir ao chão. Então, esse foi um dos motivos que eu me envolvi no Museu de Favela. Até hoje a gente sofre com saudade de pessoas que saíram infelizes. Até hoje as pessoas quando escutam alguma intervenção do governo, a primeira coisa que passa na cabeça das pessoas é: vou ser removido, vou perder meu castelo?”
As Dinâmicas de Grupo Trouxeram Propostas a Serem Encaminhadas à Reunião Nacional da Conferência Popular pelo Direito à Cidade
A segunda parte do encontro foi reservada para uma dinâmica de grupo em que problemas sorteados deveriam ser solucionados através do debate e de propostas de curto, médio ou longo prazo. O objetivo era que essas propostas fossem encaminhadas para a reunião nacional da Conferência Popular pelo Direito à Cidade, que acontece em junho, em São Paulo. Outros resultados são construir laços mais próximos entre os ativistas, melhorar os mecanismos deliberativos coletivos e diretos, estimular a mobilização de territórios na luta pela permanência e para concretizar propostas comunitárias frente aos governos.
Foram formados dois grupos, que receberam as seguintes questões:
- Tendo como princípio a memória como instrumento de luta por moradia digna e direito pela cidade, quais instrumentos legais vocês vêem para garantir tanto a museologia social quanto a moradia digna como direitos? Seria possível desenvolver alguma proposta de lei nesse sentido?
- Como financiar os museus comunitários? Como aprender a necessidade de formação de guias comunitários que atuam tanto dentro da comunidade quanto fora dela, construindo um olhar da cidade a partir das comunidades e das favelas?
- Como criar instrumentos de efetiva participação popular nos muros das intervenções nos territórios, na formulação, realização e fiscalização dessas ações a partir da autogestão, cultura local, conhecimento do território pelos moradores e estimulando a geração de renda?
- Os mutirões e a autogestão são práticas transformadoras de luta por moradia e de permanência no território. Como podemos complementar essas ações? Vocês conhecem instrumentos que atuem nesse sentido?
O resultado desse trabalho foi apresentado para o coletivo, com o uso de cartazes e falas. O primeiro grupo fez as seguintes ponderações, representado por Sandra Maria de Souza, moradora da Vila Autódromo e membro do Museu das Remoções:
“Muitas favelas já conseguem ver na museologia social um instrumento de preservação de memória e da luta de moradia. Como é fundamental essa questão da memória!… O próprio Museu das Remoções nasce dessa luta pela moradia, que é uma luta de todas as favelas… O cotidiano da favela é esse: lutar pelo reconhecimento dos seus direitos por moradia, de ocupar e habitar aqueles territórios. E aí a gente compreende como a memória é um instrumento potente dentro dessa luta. Porque, é através da preservação da memória, que a gente impede o apagamento da história.
Refletimos também como surgem nesses grupos a necessidade de organizar essas memórias, uma vez que os museus tradicionais não fazem esse trabalho de preservar essas memórias. Então esses grupos sociais favelados, quilombolas, populações indígenas, que não têm essa preservação feita e que não têm voz nesses espaços tradicionais se organizam, começam a organizar suas próprias memórias e percebem a potência dessa memória como instrumento de luta.
Os museus tradicionais… conseguem captação de recursos todos os anos, verbas imensas, porque eles já são institucionalizados, já são registrados. Só que… o formato da museologia social é muito diferente: a gente têm toda uma construção de memória, só que quando a gente vai tentar fazer o registro disso… a gente se depara com uma série de barreiras porque justamente já existe um formato estabelecido [para os museus tradicionais], no qual a gente não consegue se encaixar. Então, a gente precisa de uma lei que modifique esse formato, que adapte, que permita o registro, a institucionalização da museologia social mas num formato diferente.
A partir do momento que a gente consegue institucionalizar esses espaços… e passa a poder competir nos editais, captar verbas como as tradicionais fazem, a gente vai ter condições financeiras de remunerar nossos profissionais, não só os guias de turismo mas outros profissionais que participam dessa construção e que fazem isso normalmente de forma voluntária. A nossa proposta é que… essa lei seja feita através do plano diretor da cidade, para que ele reconheça a museologia social, que está tão a frente no Rio de Janeiro nesse momento.”
Por último na dinâmica, o segundo grupo, representado por Nathalia Macena, moradora da Vila Autódromo e integrante do Museu das Remoções, expôs uma discussão muito importante sobre conscientização e engajamento comunitário nas favelas:
“O morador é peça fundamental. Porque o morador não vai às reuniões, não participa das ações da comunidade? Muitos não vão devido à luta pela sobrevivência, à dificuldade das mulheres, mães de família. O que fazer nas comunidades para os moradores participarem mais das ações coletivas? Como criar formas, ações para atrair os jovens nas favelas? O nosso debate girou muito em torno disso: o que a gente pode fazer para atrair os nossos, os nossos vizinhos, as nossas vizinhas e os jovens, que serão o nosso futuro.
Hoje nós estamos aqui e amanhã serão outras pessoas: como fazer com que esse movimento se perpetue? Como conscientizar? Mobilizar através da arte, da cultura, que foi o que aconteceu aqui na época das remoções. A gente precisa atrair os jovens, a gente não vê os jovens. As mídias sociais e digitais surgiram como estratégias também. Criar espaços de cuidado, para sensibilizar e acolher as mulheres, principalmente nas frentes de luta. Então, devemos realizar ações conectadas com o esporte e a cultura.
A mudança só acontece a partir da conscientização. Se a gente não se conscientizar que é importante lutar pelos nossos direitos, a gente não vai mudar, a gente vai estar sempre no mesmo lugar. Perguntar para o jovem se as políticas públicas atendem ele. Tem coleta de lixo? Tem água potável? Quando chove tem enchente?
[É necessário] levar esses debates para eles se sentirem pertencentes. Eles também têm aquele sentimento de pertencimento ao local. Isso é muito importante: quando você se sente pertencente à sua comunidade você começa a entender a importância daquele espaço para você. É sobre buscar nossa ancestralidade, nossas raízes, nossas referências para que a gente, tendo essa conscientização, se veja reconhecido, representado… A gente precisa saber da nossa origem, de onde a gente vem, para que a gente possa lutar pelos nossos direitos.”