Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria do RioOnWatch com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para produzir matérias que serão utilizadas como recursos pedagógicos em escolas públicas de Niterói.
Em 1980, o funk começava a fazer sucesso nas comunidades do Rio de Janeiro, em meio à redemocratização, à crise econômica e outras consequências cruéis para as camadas populares. Um vírus até então desconhecido causava uma crise sanitária: o HIV. A epidemia do HIV/AIDS matou milhões mundo afora e atingiu severamente pessoas pobres e em vulnerabilidade social. Esta matéria é dedicada ao movimento funk que lidou com essa e com diversas outras crises sem cobertura midiática, sem apoio de grandes instituições ou de governos.
O funk é um grande exemplo do “nós por nós” das favelas e periferias urbanas do Rio. Em muitas situações de crise, o funk é instrumento social, econômico e humanitário para os territórios. Campanhas de conscientização, bailes de prevenção contra o HIV/AIDS e a tuberculose, ações de combate à dengue e tantas outras mobilizações fundamentais foram encabeçadas pelo movimento funk ao longo dos anos.
Romulo Costa, fundador da Furacão 2000, em um documentário sobre o funk carioca, relembra as distribuições de preservativo, as dinâmicas para erradicar os focos de mosquito da dengue e da forma orgânica com que o funk conscientizou a sua comunidade. Segundo ele, é “por isso que o funk, independente da vertente, passa uma mensagem, porque o funk nasce da necessidade de fortalecer as comunidades”.
Pensamento compartilhado por outro precursor do funk no Rio, o DJ Marlboro, que diz:
“O funk no Brasil tem um papel social capaz de colar a cidade partida, é o movimento do funk que emenda a cidade rachada e partida pelas cicatrizes do racismo e classismo. O funk é uma ong sem pretensão de ser.” — DJ Marlboro
O funk é o movimento cultural periférico que protesta ativamente contra a violência policial, que prega a paz, a educação e o lazer das crianças pobres. Para além da questão musical, o funk ganhou um papel importante ao denunciar a ineficiência das políticas públicas em promover o bem-estar coletivo. Principalmente no que diz respeito à segurança pública, como o funk de Cidinho e Doca, Não me Bate Doutor:
Segundo DJ Marlboro, o sistema educacional no Brasil não funciona para o favelado. Muitas vezes, a única oportunidade alternativa ao tráfico é o funk. A favela produz profissionais, atletas, músicos, dançarinos, mas, sem o investimento necessário, toda a sociedade perde parte dessa potência favelada.
“Tudo que não vira business, morre. Então, hoje em dia a gente vê uma cena de funk muito ditada pela indústria musical, levando muitos MCs a adaptarem seus estilos pela tendência do momento. Mas o funk mesmo sempre vai ser consciente e, mesmo com a comercialização, ainda ajuda muitas famílias na favela.” — DJ Marlboro
A popularidade dos bailes funk nas favelas e periferias atraía, no final da década de 1980, milhões de pessoas que lotavam estádios e galpões Brasil afora. A elite brasileira começou a marginalizar esses espaços de maioria preta e pobre. Inclusive reeditando uma narrativa antiga de criminalização desses espaços, de sua cultura e música. Criminaliza-se o funk hoje como se perseguia o samba no passado. A partir dessa marginalização, o funk foi se tornando cada vez mais consciente. Músicas sobre justiça social, dignidade para o morador de favela e muitos outros temas de protesto tomaram a cena.
O Estado brasileiro, ao invés de investir no funk como uma política pública, contribuiu para a construção de uma imagem atrelada ao crime e à vadiagem. De acordo com o historiador Gabriel Siqueira, o funk é um importante gerador de empregos dentro e fora dos territórios.
“Se um baile funk atrai mais de 2.000 pessoas por noite, ele emprega mais de 200 pessoas que estão trabalhando e movimentando lucros para sua comunidade.” — Gabriel Siqueira
Além da movimentação econômica, também há uma movimentação humanitária forte no funk carioca. É comum encontrar em letras de funk protestos contra a legalização das armas, contra a briga de facção nos bailes e até mesmo pela prevenção de doenças. “Artistas do funk como a Lacraia e o MC Serginho tiveram um papel fundamental na luta contra o HIV/AIDS nas favelas, distribuindo camisinhas e mandando o ‘papo reto’ sobre prevenção”, diz Gabriel.
Os exemplos são muitos, como as campanhas que mobilizam funkeiros por toda a cidade para a doação de sangue. Uma dessas é chamada Funkeiro Sangue Bom, que organiza caravanas para o HEMORIO. O funk desde o início mobilizou os fãs do ritmo para salvar vidas, através da solidariedade. Eventos como o baile do agasalho, o baile do brinquedo, o baile do material escolar, além dos bailes de arrecadação de alimentos e outras iniciativas demonstram o comprometimento do movimento funk com os Direitos Humanos.
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Essa tradição humanitária do funk é um legado para as novas gerações. Muitos MCs e produtores culturais, pessoas que lucram com o gênero musical, investem em suas comunidades suprindo demandas históricas que são negligenciadas pelo Estado. O DJ Rennan da Penha, por exemplo, distribuiu material escolar completo para as crianças do Complexo da Penha e do Alemão. Cantores como Ludmilla e MC Poze do Rodo fazem doações e ajudam milhares de pessoas a partir do sucesso que conquistaram com o funk.
Durante a pandemia do coronavírus, o funk e os movimentos sociais foram essenciais para a sobrevivência de corpos negros e periféricos. Foi através de ações coordenadas que as favelas foram conscientizadas sobre o risco do contágio do coronavírus, em coordenação com associações de moradores e organizações da sociedade civil.
É evidente que o movimento funk tem potencial para ser política pública. É capaz de, com investimento público, incidir culturalmente para o desenvolvimento social e humanitário das favelas e periferias. O funk brasileiro é um ritmo internacionalmente famoso, mas o preconceito e o estigma enraizados no Brasil impedem a institucionalização dele como mecanismo oficial contra a vulnerabilidade social.
Sobre o autor: Emerson Caetano é morador de Nova Iguaçu e ativista pela paz. Fundador do NENRI -Núcleo de Estudantes Negros de Relações Internacionais, Emerson é empreendedor social pela igualdade racial e analista internacional decolonial. Emerson é Fellow das Nações Unidas para a Década do Afrodescendente e possui experiência como palestrante e ativista em mais de 9 países.