Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia, para produzir matérias sobre impactos climáticos e ação afirmativa nas favelas cariocas e de uma parceria com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para produzir matérias que serão utilizadas como recursos pedagógicos em escolas públicas de Niterói.
Cria do Jabour e morador de Bangu, graduado em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rafael Silva Santana Barbosa traz o desejo de mudar sua comunidade na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Neste perfil, que reflete também comparações entre as condições de seus antepassados em relação aos que nomearam seu bairro, iremos conhecer um pouco sobre sua trajetória e o papel da educação na sua vida. Conheça perfis de outros cotistas publicados no RioOnWatch aqui.
Há um descompasso no tempo quando falamos de acesso à educação no Brasil. Intacta, tranquila e confortável, para alguns, a educação é oferecida de bandeja. Podemos comparar a trajetória desses alunos com a dos atletas de alto rendimento, por exemplo. Ambos contam com uma gama de treinadores e preparadores físicos à sua disposição desde muito cedo. São esses os alunos que ilustram as fachadas de propaganda de colégios particulares, com seus pódios e classificações em “primeiro lugar na universidade não sei das contas”, sempre com a raça e classe social muito bem definidas.
Na outra ponta, estão jovens como Rafael Silva Santana Barbosa, de 26 anos, hoje historiador e educador formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), uma das primeiras e mais importantes universidades do país a adotar um sistema de cotas em 2004. Na época, a política reservava vagas para estudantes de escolas públicas, pessoas com deficiência e pessoas autodeclaradas negras.
Engana-se quem pensa que, no Brasil, essa valorização meritocrática de parcelas da população com acesso à educação de qualidade é uma novidade. Nos registros antigos de jornais da virada do século XIX, havia editoriais que explicitavam os aprovados nos vestibulares, nos exames semestrais e em suas formaturas. Sobrenomes esses que hoje podem ser da rua em que você mora, do bairro em que você nasceu e até mesmo do político que governa seu estado.
Rafael é nascido no Jabour e foi criado em Bangu, ambos bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro. O bairro em que nasceu é uma homenagem a Abrahão Jabour, imigrante libanês, nascido em 1884, que obteve grande sucesso financeiro com cultivo e exportação de arroz e café no país, além de inúmeros empreendimentos imobiliários e industrias. Estas conquistas foram em parte frutos das variadas concessões que o governo federal oferecia para imigrantes na época, em sua campanha de embranquecimento da população. Imigrantes europeus, sírio-libaneses e japoneses eram contratados em sistema de parceria no Brasil. Os fazendeiros custeavam a vinda destes imigrantes, enquanto pessoas negras pós-abolição eram colocadas às margens. A proposta era de que além de servirem como trabalhadores, ajudariam a embranquecer a população brasileira em algumas gerações. A intenção era fazer do Brasil um país com a maior quantidade de pessoas brancas possível e, assim, atender a um modelo de civilização sob os moldes europeus.
A vinda da comunidade sírio-libanesa foi um pouco diferente. Enquanto os imigrantes europeus vinham para trabalhar na agricultura, os libaneses encontraram espaço para a criação de indústrias e comércios, que os fizeram enriquecer ao longo das gerações.
No Congresso Nacional hoje, 8% dos parlamentares têm origem libanesa, enquanto 2,9 milhões de brasileiros, aproximadamente 1,5% da população, são dessa ascendência. A população libanês-brasileira é a maior parte (27%) entre os 7% de brasileiros de origem árabe. Essa alta representação e envolvimento político são influenciados pelo êxito econômico e pelos investimentos em educação das famílias árabes no Brasil. Sobrenomes como Temer, Kassab, Maluf, Boulos e Haddad são conhecidos por você?
Descendentes de imigrantes sírio-libaneses, no Brasil, são lidos como brancos e não sofrem racismo, experiência que diverge dramaticamente aos imigrantes árabes na Europa e nos Estados Unidos. Isso acontece por conta dos processos de racialização no Brasil, que reconhece imigrantes do Oriente Médio e quaisquer outros não-negros como brancos. Além disso, os imigrantes sírio-libaneses ao Brasil eram, em geral, cristãos—católicos de ritos orientais, como maronita, melquita, assíria, católica siríaca, siríaca ortodoxa, copta, entre outras—o que aumentou ainda mais a aceitação deles pela sociedade brasileira. Bem sucedidos social e economicamente, ocuparam boa parte da política em nosso país.
Essa representação sírio-libanesa é oposta ao fenômeno da sub-representação negra na política. Enquanto os negros são 54% da população brasileira, compomos somente 17,8% do Congresso Nacional. O período de escravidão no Brasil estrutura até hoje as desigualdades pulsantes vividas por nós, negros. Sem direito à educação e à mobilidade social, o povo negro continua preso em um cativeiro social.
Estratégias, Distâncias e o Sonho de se Formar na Universidade
“Era comum eu voltar para casa mais cedo, não ter aula e ficar na escola sem fazer nada, por causa da ausência de professores.” — Rafael Silva Santana Barbosa
Relatos como esse de Rafael são intrínsecos ao nosso dia-a-dia, são costumeiros e banais. É o burburinho dos “horários vagos” que toma os corredores das escolas públicas nas favelas e periferias do Brasil. É o frenesi da inocência dos adolescentes. Uma ausência comemorada na hora, mas que anos depois faz muita falta. Não ter aula de uma disciplina é um dos grandes fatores para o processo de evasão escolar. No caso de Rafael foi um dificultador para absorver os conhecimentos de determinadas matérias na graduação que requeriam como base o ensino básico. O jovem queria ter essas aulas, mas elas não chegaram completas e nem no momento certo.
“Eu só tive história no meu ensino médio, no fundamental eu não tive. Quando eu fui fazer história na faculdade, isso me prejudicou muito. Pois, tinha muitas coisas básicas que eu não sabia. Mas como os professores me fizeram gostar, no ensino superior fui rompendo com essas barreiras.” — Rafael Silva Santana Barbosa
Uma política pública de mobilidade socioeconômica como as cotas não pode e nem deve anular outras ações por parte do Estado. A educação básica também precisa ter seus pontos de atenção e manejo. Há, no senso comum, um argumento vazio de que se melhorasse a qualidade do ensino fundamental, não haveria necessidade das políticas de ações afirmativas. Entretanto, mesmo que ambas as políticas tivessem desenvolvimento pleno no país, ainda seria pouco para solucionar o déficit no cenário educacional do país. Reflexo de mais de três séculos de escravização de africanos e afro-brasileiros, esse acesso desigual demonstra a estrutura racista da sociedade brasileira.
Contando com o esforço e o apoio dos pais, Rafael e o irmão fizeram um curso de pré-vestibular particular. Os pais se sacrificaram e ainda assim, o valor dos cheques só foi suficiente para custear o início do curso. O jovem nos conta que, mesmo após abandonar o pré-vestibular, a dívida se estendeu e só foi paga quando os dois já tinham entrado na faculdade. Em 2014, com poucos meses de estudo, Rafael conseguiu uma nota regular e adentrou no meio acadêmico através das cotas. Foi aprovado numa terceira chamada de classificação, para estudar na Universidade Federal Fluminense (UFF), no campus de Campos dos Goytacazes, cidade do Norte Fluminense.
Vale dizer que Rafael só teve noção da possibilidade de cursar a universidade através das ações afirmativas porque seus professores do pré-vestibular evidenciaram isso para os alunos. Nas escolas em que Rafael estudou, o tema sequer foi abordado. Com isso, iniciava-se ali a sua jornada. Mais de 300 quilômetros de distância separavam sua casa em Bangu e o sonho de cursar a graduação em História. O sentimento de entregar algo para sua comunidade fez com que ele se lançasse, de peito aberto, rumo ao desconhecido. Na UFF do Campos de Goytacazes, Rafael estudou por um semestre até conseguir a transferência interna para a UFF de Niterói. No entanto, mesmo mais perto, seu novo campus ainda ficava a mais de 60 quilômetros de casa. Isso dava algo em torno de três horas e meia no transporte público só de ida, todos os dias para frequentar as aulas, sem contar os valores gastos com alimentação e com o transporte intermunicipal—os transportes mais caros da região metropolitana. Essa batalha durou até 2017, quando Rafael conseguiu realizar a transferência externa para a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, mais próxima de casa, onde terminou sua graduação em 2021.
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Rafael é um entusiasta da educação e acredita que pode fazer a diferença na vida das pessoas especialmente nos espaços periféricos. Ele atuou no setor educativo da UERJ por três anos, além de ser mediador em exposições culturais e voluntário de pesquisa no Club de Regatas Vasco da Gama e no Museu Afro Digital. Hoje, o historiador dá aulas e tenta mobilizar projetos culturais que estão parados na região em que mora, a Zona Oeste. O objetivo é que as pessoas desse espaço não só ocupem as universidades, mas que se sintam genuinamente parte delas.
“Me formar foi uma alegria e um alívio muito grande pois foram quase oito anos numa graduação. Sinto que fui muito bem recebido lá na UERJ.” — Rafael Silva Santana Barbosa
Sobre o autor: Cleyton Santanna é jornalista e roteirista, formado pela UFRRJ e pela CriaAtivo Film School. Em seu canal no YouTube, discorre sobre curiosidades, ancestralidade e cultura afro-brasileira. Em 2017, produziu dois documentários, “Entre Negros” e “Tudo Vai Ficar Bem”, e em 2018, foi premiado como roteirista, com o curta-metragem “Vandinho”, pela Creative Economy Network. Atualmente, atua como comunicador no Museu do Amanhã e é o apresentador do podcast Influência Negra.