II Seminário Nacional do Termo Territorial Coletivo: Lideranças e Especialistas Refletem sobre Instrumento de Garantia do Direito à Moradia e à Cidade

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Entre os dias 18 e 20 de abril aconteceu o segundo Seminário Nacional do Termo Territorial Coletivo (TTC)*. O evento virtual recebeu 420 inscrições e reuniu pessoas de todos os 26 estados e capital brasileiros, além de participantes de outros sete países. Foram, ao todo, pouco mais de seis horas de discussão e reflexão sobre o direito à moradia no Brasil, com foco no modelo de formalização do Termo Territorial Coletivo. Entre os mais de 240 participantes ao vivo, estavam moradores e lideranças comunitárias, pesquisadores e estudantes do tema, além de representantes de órgãos públicos, movimentos sociais de luta pela moradia e da sociedade civil.

1° Dia do 2° Seminário do Termo Territorial Coletivo

No primeiro dia de evento, os participantes foram apresentados ao Termo Territorial Coletivo e conheceram também algumas experiências já implementadas no contexto internacional. Já no segundo dia, a conversa trouxe convidados para discutir o nó da terra no Brasil e os impactos na moradia, dialogando sobre as possibilidades a partir do Termo Territorial Coletivo. Para o encerramento, foram apresentados alguns elementos fundamentais para a implementação de um TTC no Brasil. Contou-se, ainda, um pouco sobre as experiências das comunidades-piloto do Projeto TTC no Rio de Janeiro.

As boas-vindas aos participantes foram dadas por Theresa Williamson, diretora executiva da Comunidades Catalisadoras (ComCat), que também agradeceu as demais instituições apoiadoras do seminário: Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), Fundo FICA, World Habitat, Center for CLT Innovation, UrbaMonde e BR Cidades.

1º Dia de Seminário: O Direito à Moradia e o Modelo Fundiário do TTC

O cenário da moradia no Brasil foi o tema de abertura das discussões do seminário. Segundo Tarcyla Fidalgo, coordenadora do Projeto TTC, “A questão da moradia, do direito à cidade, não é um problema brasileiro. É um problema mundial”. Uma a cada três pessoas no mundo hoje vivem em assentamentos informais. “A gente tende, muitas vezes, a pensar na irregularidade, na informalidade, como a exceção, algo que deve ser colocado de volta à normalidade, mas, na verdade, essa situação de informalidade é a regra”, indica Tarcyla. 

Tarcyla apresenta que pelo menos 20% da população de qualquer cidade do mundo não tem acesso ao mercado habitacional privado formal.

O mercado privado de construção e venda de habitação não é capaz de resolver a questão da moradia no Brasil e no mundo. Isso porque a parcela da população com menor poder aquisitivo não consegue acessar esse mercado sem intensos incentivos, políticas e programas públicos de financiamento. Para essas pessoas, a saída é contar com políticas públicas, com o apoio da sociedade civil ou, como é mais comum, com sua própria capacidade de construção. Nesse movimento, nasce a diversidade de assentamentos informais do cenário brasileiro: favelas, ocupações urbanas, loteamentos, entre outros.

O déficit habitacional no Brasil gira em torno de 7,78 milhões de unidades habitacionais, de acordo com dados da Fundação Getúlio Vargas de 2017. Já o número de imóveis vazios é um pouco maior: 7,9 milhões, segundo dados da Fundação João Pinheiro, de 2015. Ou seja, o número de imóveis vazios é maior do que o número de habitações necessárias. Isso, segundo Tarcyla, “mostra que o problema da moradia no Brasil é muito mais político, econômico e histórico do que propriamente um problema de moradias disponíveis”. 

Tarcyla apresenta o déficit habiticional brasileiro em números

Nos últimos anos, esse cenário piorou ainda mais por conta das consequências sociais e econômicas da pandemia do coronavírus. Além disso, como lembra Tarcyla, o agravamento do problema habitacional do país também é fruto do desmantelamento de programas sociais, como o Minha Casa, Minha Vida, limitando ainda mais o quadro de possibilidades das famílias de baixa renda. Os assentamentos informais, nesse cenário, despontam como uma saída possível para os grupos mais vulneráveis. 

Via de regra, remove-se famílias e comunidades para áreas mais afastadas, desvalorizadas e com menos infraestrutura da cidade. O período pré-Olímpico no Rio de Janeiro

No entanto, a coordenadora do Projeto TTC conclui que nem sempre construir e ter uma casa é sinônimo de segurança e permanência no território. Há diversas táticas para a privação do direito à moradia em assentamentos informais, que vão desde a retirada violenta dos moradores até as investidas de forma velada, através do assédio de compradores e do aumento do custo de vida na região. Via de regra, remove-se, direta ou indiretamente, famílias e comunidades para áreas mais afastadas, desvalorizadas e com menos infraestrutura da cidade. O período pré-Olímpico no Rio de Janeiro, marcado por um amplo movimento de remoções por toda a cidade, foi citado por Tarcyla como caso típico dessa tendência. Como destaca Tarcyla, o título de posse da terra nesse caso não garantiu a permanência dos moradores nos territórios.

Com o fim da primeira apresentação, os participantes foram divididos em salas e convidados a refletir sobre “quais são os maiores desafios ao direito à moradia e à cidade no Brasil”? A moradia como mercadoria, a dificuldade em garantir a permanência no território, a especulação imobiliária e dificuldade em acessar os diferentes dispositivos de regularização foram alguns dos desafios apontados pelos participantes do evento nessas salas de discussão.

Após a conversa em pequenos grupos, Tarcyla seguiu apresentando as possibilidades de titulação e formalização disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro. Uma preocupação consensual foi de que a regularização fundiária e a titulação da propriedade não conferem de fato segurança de permanência dos moradores em seus territórios, pois comunidades tituladas foram também removidas e gentrificadas no Rio de Janeiro pré-Olímpico. É exatamente a partir dessa experiência que o TTC surgiu no debate nacional. Esse modelo de propriedade tem como principal objetivo garantir a segurança da posse de populações vulnerabilizadas em seus territórios por um período duradouro. Para tal, há a divisão da propriedade do terreno e das construções. No TTC, o imóvel construído, seu jardim, etc., é de propriedade individual, enquanto a terra abaixo é propriedade coletiva, pertencendo a uma pessoa jurídica formada pela coletividade dos moradores mobilizados. É possível que os proprietários de casas em TTCs vendam, aluguem e transmitam seus imóveis para herdeiros dentro das regras definidas pela própria comunidade.

No TTC, o imóvel construído é de propriedade individual, mas o terreno é propriedade coletiva, pertence a uma pessoa jurídica formada pela coletividade dos moradores mobilizados. Arte: Rebeca Landeiro

No caso de compra e venda de imóveis em TTCs, essas transações não incluem a venda da terra. Ela pertence a toda a comunidade, por meio da sua pessoa jurídica sem fins lucrativos, e não pode ser vendida ou dada em garantia. Isso contribui para manter os preços dos imóveis acessíveis para famílias de baixa renda dentro de um TTC. Enquanto isso, blinda-se a comunidade contra a especulação imobiliária, retirando-se aquela terra do mercado.

“Ao mesmo tempo em que o TTC garante a permanência—que ele formaliza determinado território em nome da comunidade—ele também garante o empoderamento dessa comunidade para autogerir esse território.” — Tarcyla Fidalgo

Atualmente existem TTCs ativos em diversos países no norte e sul global, sempre adaptando-se à realidade de cada país. No entanto, existem características comuns a todos eles: a propriedade coletiva da terra, administrada por uma pessoa jurídica formada e gerida pelos moradores; a propriedade individual da casa, sendo possível ao dono vendê-la de acordo com as regras do estatuto do TTC; a adesão espontânea dos moradores, pois o TTC é um modelo que se baseia do engajamento da comunidade; o controle comunitário, sendo a comunidade responsável por escolher o conselho gestor e tendo, também, voz para decidir diretamente questões coletivas; e, por fim, a acessibilidade econômica, isto é, a manutenção de valores acessíveis dos imóveis de forma perpétua. 

Após essa apresentação, houve outro momento de divisão dos participantes em salas menores para discutirem “Quais são as possibilidades do TTC no contexto brasileiro? Ele poderia ajudar nas lutas pelos direitos à moradia e à cidade”? Dentre os principais desafios apontados estão conseguir mobilizar a comunidade e o receio diante de um modelo inovador no Brasil.

Contudo, apesar de inédito no Brasil, Tarcyla ressalta que, para ser aplicado, o TTC não necessita da aprovação de novas leis. Já é possível construí-lo a partir do ordenamento jurídico existente no Brasil. Esse potencial está sendo reconhecido com a inclusão do TTC no Plano Diretor de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, e com a discussão para ser incluído no Plano Direito da cidade do Rio de Janeiro.

Durante essa dinâmica de grupos, foram aventados muitos fatores positivos do TTC. O caráter inovador do arranjo foi uma das características mais citadas. Afinal, ele abre novas frentes e caminhos na luta pelo direito à moradia e à cidade, sempre a partir da organização coletiva das comunidades. Foi bastante mencionada também a potência do TTC contra a especulação imobiliária, fenômeno que ele ataca diretamente ao impedir a venda da terra e sua consequente transformação em ativo imobiliário. Da mesma forma, foi consenso o entendimento de que o Termo Territorial Coletivo pode ser usado de forma complementar a outros instrumentos, como as ZEIS, ReUrb e direito de superfície, por exemplo. Além disso, observou-se que o instrumento, de maneira indireta, pode facilitar e estimular a regularização fundiária, assegurando a permanência dos moradores após o processo de titulação de suas propriedades.

Na última apresentação da noite, conduzida por Felipe Litsek, assistente do Projeto TTC, foram abordadas experiências do modelo pelo mundo. Foco especial foi dado à experiência de Porto Rico, do Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña, primeiro TTC em área de favela da América Latina. Ele mencionou que essa é a experiência que serviu de inspiração para o desenvolvimento do Projeto TTC nas favelas cariocas. Também deixou evidente como esse arranjo fundiário é bem difundido pelo mundo, especialmente nos Estados Unidos, onde o TTC começou a partir da luta do movimento pelos direitos civis e hoje conta com mais de 280 TTCs, e no Reino Unido, onde há mais de 300.

“O TTC não é só sobre moradia acessível, mas é também sobre garantir formas para que a própria comunidade tome os rumos de seu desenvolvimento.” — Felipe Litsek

Assista ao Primeiro Dia do Seminário Nacional do TTC Aqui:


2º Dia de Seminário: ‘O Nó da Terra no Brasil e os Impactos na Moradia: As Possibilidades a partir do Termo Territorial Coletivo’

No segundo dia do seminário, lideranças comunitárias e acadêmicos discutiram e responderam questionamentos do público sobre o tema “O Nó da Terra no Brasil e os Impactos na Moradia: As Possibilidades a partir do Termo Territorial Coletivo”. Sob moderação de Tarcyla Fidalgo, cinco painelistas debateram o tema: Marcelo Leão do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU); Jurema da Silva Constâncio da União Nacional por Moradia Popular (UNMP); Simone Gatti do Fundo FICA e do BR Cidades; Maria da Penha, ativista por moradia da Vila Autódromo e co-fundadora do Museu das Remoções; e Orlando Santos Junior do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU).

Marcelo Leão do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU)Marcelo Leão, advogado, membro do IBDU e mestrando em urbanismo, história e arquitetura da cidade, pela Universidade Federal de Santa Catarina, saudou a potência dos movimentos sociais no acesso à moradia. Para ele, só há avanços graças à mobilização comunitária. “A gente avançou no plano das garantias… no campo das lutas com a atuação dos movimentos populares e comunitários… o poder transformador dos movimentos sociais pelo direito à permanência”. De acordo com o advogado, a visão da terra como mercadoria é um dos grandes obstáculos a serem enfrentados pelos movimentos sociais na garantia do direito à cidade.

Jurema da Silva Constâncio da União Nacional por Moradia Popular (UNMP)Também na opinião de Jurema da Silva Constâncio, coordenadora da UNMP, agente social, moradora e fundadora da Cooperativa Shangri-lá, uma iniciativa bem-sucedida de autogestão de moradia em Jacarepaguá, mobilização é a base da garantia do direito de permanência e a única coisa capaz de desfazer o nó da terra.

“Sou moradora de Jacarepaguá, um dos metros quadrados mais caros do Rio, de uma cooperativa dentro de uma favela, uma propriedade coletiva… O que me faz ficar no movimento de moradia é exatamente isso: pouca gente com muito e muita gente com nada… quanto mais gente na rua, sem casa, parece que é melhor [para a especulação imobiliária]. Nossa proposta no ambiente urbano e rural é que todo mundo tem que ter direito à moradia. Quando falamos do direito à moradia não estamos falando de quatro paredes, mas de muito mais: de direito à cidade, à educação, à saúde.” — Jurema da Silva Constâncio

Simone Gatti do Fundo FICA e do BR CidadesSimone Gatti, arquiteta-urbanista, doutora e pós-doutora pela USP, presidente do Fundo Fica, concordou que, sem mobilização comunitária, a gentrificação e a especulação encontram caminho livre para se expandirem. O Fundo Fica, por exemplo, é uma iniciativa da sociedade civil que tem como missão tirar imóveis do mercado especulativo e alugar a preços populares. Ela destaca que, mesmo com engajamento coletivo, nada toma o lugar das políticas públicas, que continuam sendo necessárias no combate ao déficit habitacional. É importante ter a sociedade civil organizada engajada, inclusive para influir no debate público sobre a negação do direito à moradia.

Pesquisadora de políticas de aluguel e do direito à permanência, Simone disse que esse é um momento crucial para o debate do TTC, principalmente considerando o empobrecimento das nossas cidades. Nesse quadro, a população precisaria cada vez mais de políticas habitacionais e o TTC pode ser uma alternativa. Ela aponta o caráter coletivo da propriedade como uma potência essencial desse tipo de arranjo. Para a pesquisadora, esse é um modelo fundiário com o poder de realmente garantir o acesso à propriedade às classes mais economicamente vulneráveis. Simone conta que viu, em Nova York, como esse modelo é promissor.

Maria da Penha, ativista por moradia da Vila Autódromo e co-fundadora do Museu das RemoçõesEm seguida, Maria da Penha Macena, moradora e ativista do movimento de moradia na Vila Autódromo e do Museu das Remoções, exemplo vivo da perseverança na luta pela permanência no território, ponderou sobre o nó da terra no Brasil e contou um pouco de sua visão sobre o TTC. 

“Quero lembrar que esse nó na terra é bem antigo, desde a invasão dos portugueses. Em pleno século XXI, apesar dos avanços, estamos bem longe de desatar esses nós. Tem muita terra, ter irmãos morando na rua é muito cruel, moradia é um direito fundamental e é para todos. A gente tem que lutar muito até ele chegar e o TTC traz muita esperança da gente ter segurança na nossa terra. Fui a NYC, conheci o TTC de lá, acho que é uma ferramenta que pode ajudar muito. Leva tempo, mas a gente não pode desistir. É nosso direito, a permanência nos nossos territórios.” — Maria da Penha Macena

Orlando Santos Junior do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPURUFRJ) e do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU)Orlando Santos Junior, professor do IPPUR-UFRJ e pesquisador do Observatório das Metrópoles, crê que a raiz do problema da despossessão das classes populares, de uma cidade segregada como o Rio de Janeiro, está na mercantilização da terra. E, durante sua fala, traça as causas e consequências desse processo que chamou de perverso.

“A cidade brasileira contemporânea é resultado de dois mecanismos complementares: a livre mercantilização da terra e a perversa política de tolerância com todas as formas de apropriação privada do solo urbano por parte das elites. Isso ocorre paralelamente ao processo de despossessão das classes populares das possibilidades de acessar moradia digna em áreas bem estruturadas. O resultado desses dois mecanismos é uma cidade segregada, com a concentração do solo urbano bem estruturado nas mãos das elites. As classes populares são jogadas para áreas precárias e desprezadas pelo mercado, como as favelas e as áreas periféricas da cidade.” — Orlando Santo Junior

Para o professor, a questão do nó na terra e a dinâmica de crescimento e transformação das nossas cidades podem ser sintetizadas em duas questões: a democrática e a distributiva. A questão democrática se traduz no desafio de construir uma cidadania ativa, rompendo esse sistema de interesses de elite que governa a cidade. Já a questão distributiva se refere à quebra do controle excludente do acesso à riqueza, à renda, ao uso do solo urbano, garantindo ou negando o acesso de todos à cidade como riqueza social.

Segundo Orlando, é nesse contexto que o TTC emerge como instrumento de um planejamento politizado do acesso à terra, que ataca diretamente essas duas questões citadas acima. A gestão coletiva dos territórios feita pelos moradores organizados propõe uma democracia participativa de base. Já do ponto de vista distributivo, o arranjo garante o acesso à moradia e ao solo urbano ao desmercantilizar a terra e impedir os processos de gentrificação, especulação e remoções. Portanto, ele se contrapõe ao processo sociopolítico de apropriação privada da cidade, contribuindo para solucionar a questão do nó da terra.

Após as falas dos painelistas, Tarcyla pediu para que todos refletissem sobre o papel da regularização e titulação fundiária, sobre o momento pós-titulação, sobre como garantir o uso do território para moradia, o acesso à terra às camadas populares e o direito à permanência em terras já tituladas. Para Simone, por exemplo, a titulação não é final do processo. Em alguns casos, a titulação pode inclusive colocar os mais economicamente vulneráveis à mercê do mercado especulativo. Já para Dona Penha, a terra deveria ser compartilhada e não vendida.

Somando ao debate, Orlando disse que o que garante a segurança da posse é um conjunto de fatores políticos, sociais, econômicos e institucionais, além da mobilização comunitária contínua. Portanto, a regularização fundiária isoladamente não assegura o direito de permanência. Às vezes protegem a propriedade, às vezes, não. A regularização certamente altera, em alguma medida, os termos da troca entre a população e os agentes públicos ou do mercado. Mas também pode ser uma armadilha, que, sem outros fatores de permanência, transforma a terra e a moradia em ativo financeiro, em mercadoria facilmente apropriável pelo grande capital.

Após os painelistas, a palavra foi aberta à platéia do evento para comentários e perguntas. Duas falas muito impactantes foram de Iara Oliveira, ativista histórica da Cidade de Deus, fundadora do Alfazendo, e de Alessandro Barros, ativista do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), da cidade de Marituba, no estado do Pará, região Norte do Brasil.

Iara relembrou a construção da Linha Amarela, via expressa que cortou sua comunidade na década de 1990. Segundo ela, este foi um período dramático de remoções, mas, graças aos moradores terem a titulação de suas casas, a comunidade pôde negociar os preços de seus imóveis com o poder público. Isso garantiu aos moradores melhores compensações por parte do governo.

Já Alessandro Barros trouxe uma ponderação sobre outro instrumento de acesso à terra discutido e utilizado em sua região do Pará, a usucapião coletiva, e o comparou ao TTC. Para ele, a usucapião coletiva, que algumas comunidades de pequenos municípios de sua área discutem com os movimentos de moradia, demora anos, por vezes até décadas, para ser concedida pelo poder judiciário. Isso acontece graças à dificuldade e à morosidade na produção de documentação que comprove a posse para a regularização dessas áreas. Ele citou o caso de uma comunidade na cidade de Vigia de Nazaré, no Pará, onde há 380 famílias que moram lá e que há 15 anos não conseguem resolver essas questões jurídicas que dêem a elas alguma segurança jurídica e a propriedade sobre seu território.

“Então, trazer esse debate do TTC, pode ser uma solução viável tanto para organização, quanto para a segurança sobre a terra. Transformar a terra em um bem coletivo é o que mais me sensibiliza. Porque, aqui no Pará… na área metropolitana nosso principal problema é a especulação imobiliária muito presente, mas fora da região metropolitana nós temos o interesse das comunidades de estabelecer moradia, de deixar como herança para seus filhos e netos. Mas qual instrumento pode ser usado para dar a eles uma segurança legal? Tanto sobre a moradia, quanto sobre a terra?” — Alessandro Barros

Após Alessandro Barros, finalizou-se a segunda noite de discussões. Felipe Litsek convidou todos os presentes para as sessões do dia seguinte, sobre como implementar um TTC no Brasil de acordo com o ordenamento jurídico vigente.

Assista ao Segundo Dia do Seminário Nacional do TTC Aqui:


3º Dia de Seminário: Como Colocar um TTC em Prática no Brasil?

3° Dia do 2° Seminário do Termo Territorial Coletivo

No terceiro dia de evento os participantes conheceram o conjunto de elementos e processos necessários para a implementação de um Termo Territorial Coletivo no contexto brasileiro. Os presentes foram convidados a refletir e participar de uma enquete sobre “qual a importância do TTC no cenário brasileiro?” Grande parte dos presentes respondeu ter grande ou média importância, com 78% e 18% respectivamente.

Resultado da enquete 'Qual a importância do TTC no cenário brasileiro'

Tarcyla lembrou que o Termo Territorial Coletivo é uma adaptação à realidade e à legislação brasileira de um modelo já consagrado no mundo: o Community Land Trust, modelo que surge no âmbito do movimento negro norte-americano na década de 1960. “Naquele momento os Estados Unidos passava por uma questão muito complicada e várias comunidades negras, situadas em áreas rurais, estavam sendo expulsas. Ao mesmo tempo, as pessoas não tinham dinheiro individualmente para conseguirem acessar à terra. Então, começaram a pensar em uma forma de propriedade coletiva e poderem garantir sua permanência”, contou Tarcyla.

Para realizar esse modelo aqui no Brasil, existem quatro pilares, que devem ser construídos concomitantemente, sem que seja necessário aguardar a finalização de uma para começar outra. Todos dependam de uma mobilização comunitária anterior em torno do TTC:

  1. Regularização fundiária e titulação;
  2. Criação de uma pessoa jurídica;
  3. Separação entre a casa, propriedade individual do morador, e a terra, propriedade coletiva do TTC; e
  4. Elaboração de um Regramento interno pela comunidade com as regras a serem aplicadas na gestão do TTC.

Tarcyla apresenta o circuito para implementação do TTC. Arte: Rebeca Landeiro

Todas essas etapas para a instituição de um TTC ocorrem concomitantemente e sempre com o constante protagonismo da comunidade. A regularização da titularidade da propriedade é o primeiro pilar. Só se pode formalizar um TTC quando a propriedade dos moradores é reconhecida. “As situações de informalidade não permitem que um TTC comece… você vai avançando na mobilização comunitária enquanto o processo de regularização vai correndo”, informa Tarcyla. 

O segundo pilar é a criação de uma pessoa jurídica, uma organização da sociedade civil destinada a administrar a terra do TTC coletivamente. Essa pessoa jurídica pode assumir diversos formatos, como uma associação ou uma cooperativa, por exemplo, e atuará na gestão do território por meio de um conselho gestor composto por moradores. O conselho gestor, no entanto, não substitui a participação direta dos moradores. Pelo contrário, esse grupo que administra o TTC deve sempre viabilizar formas de participação direta dos moradores.

O terceiro pilar para a implementação é a separação entre a casa, propriedade individual do morador, e a terra, propriedade coletiva do TTC. A formalização dessa divisão é possibilitada pelo direito de superfície. “O direito de superfície tem o mesmo status jurídico que o direito à propriedade”, explica a coordenadora do Projeto TTC. 

O quarto pilar para o desenvolvimento de um TTC é o regramento interno, a ser determinado pelos próprios moradores. “Esse regramento, desde que ele observe toda a legislação que incide sobre aquele território, tem ampla liberdade de definir as regras que a comunidade entender como as mais convenientes. Quem tem que definir qual o melhor tipo de desenvolvimento para o território são os moradores”, destaca Tarcyla.

Tarcyla explica a estrutura geral do TTC. Arte: Rebeca Landeiro

O Termo Territorial Coletivo no Brasil teve início durante uma série de oficinas realizadas em 2018 com representantes do TTC de Porto Rico. “Logo depois dessas oficinas, a gente formou um grupo de trabalho que foi crescendo e hoje conta com mais de 200 pessoas”, comentou Tarcyla. Esse grupo conta com moradores e lideranças de favela, ativistas de movimentos sociais, pesquisadores, técnicos de órgãos públicos e instituições da sociedade civil. “Uma vez que a gente tinha esse grupo formado, nós começamos a pensar nas comunidades-piloto”. Inicialmente foram escolhidas duas comunidades-piloto, a favela dos Trapicheiros, na Tijuca, Zona Norte do Rio, e o Conjunto Esperança, na área de Jacarepaguá, na Zona Oeste

Comunidades participantes do projeto piloto do TTC no Rio de Janeiro.

Recentemente, a Vila Autódromo, na Barra da Tijuca, também foi incluída no plano de trabalho do Projeto TTC no Rio de Janeiro. A comunidade passou por um intenso processo de remoção no período pré-Olímpico e hoje resiste com apenas 20 famílias ao lado do Parque Olímpico, em uma área de grande interesse imobiliário. Há ainda a intenção de incluir uma quarta comunidade no projeto, a Cooperativa Shangri-lá de Jacarepaguá. Em todas essas experiências, como destaca Tarcyla, diversas atividades e conversas são propostas com a comunidade, levando-a a refletir sobre os pontos positivos e negativos de um modelo como o TTC para a sua realidade. 

Além do trabalho com as quatro comunidades-piloto, Tarcyla conta que, durante a pandemia, a equipe do projeto foi levada a pensar e agir visando difundir o arranjo nacionalmente. Nesse período, a equipe também participou de diversas audiências públicas na Câmara dos Vereadores do Rio: “estamos tendo várias interações com o poder público para garantir o TTC como instrumento de política urbana”. Ela finaliza explicando sobre a inclusão do TTC no Plano Diretor do Rio de Janeiro. “Estar em um plano diretor traz uma legitimidade, um reconhecimento que fortalece o instrumento”. 

Após a apresentação, os participantes foram divididos em salas e convidados a refletir sobre os desafios e potencialidades na implantação do TTC no Brasil. Entre os pontos positivos, foi destacada a possibilidade de complementaridade entre o TTC e outros instrumentos de regularização que já existem. Também foram mencionados o caráter democratizador do acesso à terra, conferindo mais autonomia às comunidades. Manter a mobilização comunitária, a gestão de conflitos internos e a possível cooptação do coletivo foram mencionados como os maiores desafios do instrumento.

Conjugando potencialidades e desafios, 75% dos presentes afirmaram acreditar ser possível implementar o TTC no Brasil. Outros 15% afirmaram achar muito provável e, para 9%, seria difícil. “A gente acredita muito que o TTC é um modelo que precisa ser pelo menos conhecido. A gente precisa difundir a informação sobre ele, garantir que as pessoas conheçam e que possam decidir por si só se vão investir nesse modelo”, finalizou Tarcyla.

Assista ao Terceiro Dia do Seminário Nacional do TTC Aqui:

*Tanto o RioOnWatch quanto o Termo Territorial Coletivo (TTC) são iniciativas da organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).


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