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Essa é a mais recente de uma série de matérias sobre experiências de Termos Territoriais Coletivos (TTC) pelo mundo. Selecionamos alguns casos concretos a partir da sua importância para o contexto no qual estão inseridos e, também, pelo potencial de inspiração para grupos e pessoas em outros locais. Os casos mostram como são variados os TTCs, apesar de terem uma estrutura básica sempre igual: uma organização sem fins lucrativos, composta de moradores, é dona da terra de uma área, enquanto os moradores são donos ou alugam as moradias em si. Nosso objetivo é apresentar o aprendizado acumulado por experiências internacionais com o TTC, com o intuito de pensar, a partir das lições que elas nos fornecem, como alcançar o maior potencial do modelo no Brasil e superar desafios enfrentados em outros contextos. A experiência explorada é o caso do Champlain Housing Trust (CHT), TTC situado na cidade de Burlington, no estado de Vermont, nos Estados Unidos.
Estabelecido em Burlington, Vermont, em 1984, o Champlain Housing Trust (CHT) é uma das experiências pioneiras e mais emblemáticas no estabelecimento de um Termo Territorial Coletivo e hoje é o maior TTC do mundo. Foi formado com o objetivo primordial de fornecer moradias economicamente acessíveis aos habitantes da cidade, de forma perpétua.
Inicialmente denominado Burlington Housing Trust, o projeto começou com o apoio da prefeitura, que, na época, era presidido pelo atualmente senador americano Bernie Sanders. A partir de uma doação de US$200.000 do município, a organização sem fins lucrativos comprou terrenos na cidade para desenvolver empreendimentos habitacionais. Em 2006, o TTC de Burlington se fundiu com uma organização financiadora de produção habitacional, a Lake Champlain Housing Development Corporation, criando oficialmente o Champlain Housing Trust. A fusão levou a uma ampliação considerável da sua área de abrangência.
Apesar de ser bastante dependente de fundos públicos, hoje o TTC de Burlington busca diversificar suas fontes de financiamento, valendo-se de subsídios federais, estaduais e municipais, contribuições dos moradores, bem como investimentos privados e doações de grupos ou indivíduos, o que possibilita a continuidade do modelo. As fontes atuais de receita são 23% de subsídios públicos, 25% de aluguéis, 16% de ganhos nas revendas e 36% de rendimentos, taxas para aluguel comercial e outros.
Atualmente, o CHT possui mais de 2.400 propriedades para aluguel a baixo custo, 600 unidades para aquisição e 115 cooperativas habitacionais. Além disso, conta com uma ampla área destinada para espaços comerciais e escritórios. Essas construções não estão contíguas em uma mesma faixa territorial, mas sim distribuídas por todo o território de Burlington, salpicadas, cobrindo boa parte da área urbana. A enorme escala de atuação do CHT o coloca como o maior TTC do mundo, ofertando 18% das unidades residenciais da cidade de Burlington.
O crescimento em escala não vem desacompanhado de desafios importantes. A garantia da gestão participativa coletiva do território é um dos preceitos fundamentais do modelo TTC e, com uma maior amplitude espacial e de público, surgem novas complexidades para se assegurar o protagonismo dos moradores na governança territorial. É por isso que uma das grandes preocupações do Champlain Housing Trust é trazê-los para o centro da gestão. Estimula-se a participação dos moradores em assembleias comunitárias e reservam-se vagas para moradores no conselho gestor, dentre outros mecanismos de estímulo à participação direta.
De forma generalizada, os TTCs nos Estados Unidos costumam funcionar a partir da aquisição de parcelas de terras ou prédios já construídos em uma determinada região, sendo que tudo que é construído sobre a terra é vendido a proprietários individuais ou alugado, com estes moradores possuindo direito sobre a construção, ficando a terra perpetuamente sob propriedade do TTC.
No caso do CHT não é diferente, mas o tamanho, maturidade e flexibilidade deste TTC possibilitou a introdução de uma multiplicidade de arranjos para aquisição e manutenção da moradia, como, por exemplo, moradias regidas sob regime de cooperativas, unidades para aluguel dentro de prédios comuns e unidades residenciais autônomas. Em boa parte dos seus terrenos, o CHT detém o título da terra e outra entidade—seja ela uma cooperativa, organização não-governamental, incorporadores ou outras entidades habitacionais—detém o título das construções sobre ela, repassados posteriormente para moradia a preços acessíveis. Ainda existem casos, apesar de menos frequentes, em que o CHT detém a propriedade tanto do terreno quanto das construções, o que acontece nas unidades de aluguel e edifícios não residenciais.
Com a passagem do tempo o CHT veio a se preocupar não só com quem tem uma renda baixa demais para conseguir uma moradia pelo mercado tradicional (o público-alvo típico de um TTC), mas também com quem não consegue moradia de jeito nenhum: pessoas em situação de rua. O CHT comprou nove motéis que hoje oferecem moradia temporária e repleta de serviços de inserção para essa população. Já tiveram vários casos de pessoas que entraram nestes “hotéis” do CHT por estarem vivendo em situação rua e eventualmente conseguiram um emprego e passaram para as moradias alugadas pelo TTC, e um caso de extremo sucesso onde o antigo morador passou pelo hotel, aluguel e eventualmente conseguiu comprar um lar pelo TTC.
O modelo TTC implica na proibição da venda da terra. O CHT portanto se vale predominantemente do modelo de arrendamento (lease) e modalidades de aluguel a baixo custo. Para residências unifamiliares, parcelas de terrenos são transferidas para os usuários através de um contrato de arrendamento entre duas partes: o proprietário do terreno (o CHT) e o arrendatário (o morador). Esses contratos costumam ter duração de 20 anos, mas são renováveis, segundo decisão do morador. A cada novo usuário, um novo contrato é estabelecido.
Para participar do TTC, o morador deve se enquadrar em uma determinada faixa de renda. O objetivo é evitar que as casas sejam adquiridas por pessoas de alta renda, que poderiam acessar a moradia por meio do mercado tradicional, privilegiando o acesso de populações de baixa renda. Qualquer pessoa que deseje entrar no TTC deve comprovar que não possui outra moradia. Além disso, é preciso participar de cursos preparatórios sobre o modelo TTC e educação financeira.
A partir da aprovação da inscrição no TTC, o morador solicitante recebe um adiantamento de fundos federais e estaduais, que ajudam a custear a aquisição da moradia. De início, o morador fica responsável por arcar apenas com os custos da transferência do título. Sendo assim, o programa disponibiliza um subsídio, tornando o valor da unidade mais acessível para o comprador de baixa renda. O CHT também disponibiliza empréstimos de baixo custo para manutenção e melhoria das residências, garantindo sua segurança e sustentabilidade.
Para manter o custo habitacional acessível, prevenindo processos de valorização imobiliária, o TTC também se vale de uma fórmula de revenda, um teto para a venda das casas. Quando um morador deseja vender sua casa, 25% da valorização fundiária do imóvel referente ao mercado tradicional vai para o proprietário da casa, o resto é retido no próprio imóvel uma vez que a terra não pode ser vendida.
O modelo do Champlain Housing Trust foi virtuoso no que se propunha a realizar. Atualmente, as casas do CHT são acessíveis para famílias que ganham cerca de 57% da renda média da área, o que demonstra seu potencial na garantia de moradia acessível para famílias de baixa renda. Além de usufruírem de bem-estar e segurança na manutenção da sua moradia, os moradores participam da gestão territorial do TTC se engajando em atividades benéficas à comunidade. Além do mais, a partir do sucesso obtido pela experiência, a própria política habitacional do município foi influenciada e passou a priorizar o TTC como mecanismo de acesso definitivo à moradia.
O modelo também obteve resultados positivos do ponto de vista ambiental. As casas do CHT são compactas, em comparação com a tendência do mercado imobiliário nos Estados Unidos, além de serem muito eficientes energeticamente. Localizadas em densos empreendimentos, no coração de comunidades já existentes e consolidadas, garantem um bom aproveitamento do solo urbano e ajudam a reduzir o uso de automóveis.
Devido a esses impactos significativos e inovadores no campo da habitação social, o Champlain Housing Trust ganhou diversos prêmios internacionais, dentre eles, o prêmio mundial da World Habitat—organização ligada à ONU que premia iniciativas habitacionais de sucesso—sendo reconhecido mundialmente como modelo na garantia de habitação acessível. Atualmente, para além da gestão de suas terras, o CHT apoia outros projetos habitacionais em bairros onde os níveis de pobreza são mais elevados, destinando recursos e assessoria técnica para a construção de novas unidades, melhorias habitacionais e instalações comunitárias como praças, espaços comuns, etc. Durante a pandemia, parte dos esforços da organização foi destinada a construir abrigos temporários para pessoas em situação de rua, e ampliar a oferta de recursos básicos para pessoas em situações vulneráveis.
O Champlain Housing Trust é uma experiência emblemática de Termo Territorial Coletivo, onde se vê o potencial do TTC na construção de políticas públicas habitacionais e como modelo coletivo de garantia de moradia economicamente acessível e em larga escala. Ao longo das décadas, a mobilização de Burlington inspirou e apoiou inúmeras iniciativas de TTCs em diferentes cidades do mundo. Hoje, o CHT participa ativamente do movimento global dos Termos Territoriais Coletivos, defendendo com firmeza o modelo e contribuindo para sua difusão pelo planeta.