O TTC Champlain Housing Trust, de Burlington, EUA, e a Construção de Políticas Públicas Habitacionais Comunitárias de Larga Escala

Família Kambere-Meli de imigrantes do Congo, compraram sua casa através do CHT. Foto: Champlain Housing Trust
Família Kambere-Meli de imigrantes do Congo, compraram sua casa através do CHT. Foto: Champlain Housing Trust

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Essa é a mais recente de uma série de matérias sobre experiências de Termos Territoriais Coletivos (TTC) pelo mundo. Selecionamos alguns casos concretos a partir da sua importância para o contexto no qual estão inseridos e, também, pelo potencial de inspiração para grupos e pessoas em outros locais. Os casos mostram como são variados os TTCs, apesar de terem uma estrutura básica sempre igual: uma organização sem fins lucrativos, composta de moradores, é dona da terra de uma área, enquanto os moradores são donos ou alugam as moradias em si. Nosso objetivo é apresentar o aprendizado acumulado por experiências internacionais com o TTC, com o intuito de pensar, a partir das lições que elas nos fornecem, como alcançar o maior potencial do modelo no Brasil e superar desafios enfrentados em outros contextos. A experiência explorada é o caso do Champlain Housing Trust (CHT), TTC situado na cidade de Burlington, no estado de Vermont, nos Estados Unidos.

Estabelecido em Burlington, Vermont, em 1984, o Champlain Housing Trust (CHT) é uma das experiências pioneiras e mais emblemáticas no estabelecimento de um Termo Territorial Coletivo e hoje é o maior TTC do mundo. Foi formado com o objetivo primordial de fornecer moradias economicamente acessíveis aos habitantes da cidade, de forma perpétua. 

Reunião de moradores na construção do Burlington Community Land Trust, precursor do Champlain Housing Trust, na década de 1980. Foto: Champlain Housing Trust
Reunião de moradores na construção do Burlington Community Land Trust, precursor do Champlain Housing Trust, na década de 1980. Foto: Champlain Housing Trust

Inicialmente denominado Burlington Housing Trust, o projeto começou com o apoio da prefeitura, que, na época, era presidido pelo atualmente senador americano Bernie Sanders. A partir de uma doação de US$200.000 do município, a organização sem fins lucrativos comprou terrenos na cidade para desenvolver empreendimentos habitacionais. Em 2006, o TTC de Burlington se fundiu com uma organização financiadora de produção habitacional, a Lake Champlain Housing Development Corporation, criando oficialmente o Champlain Housing Trust. A fusão levou a uma ampliação considerável da sua área de abrangência.

Imagem símbolo do CHT, por Bonnie Acker. Fonte: site da World HabitatApesar de ser bastante dependente de fundos públicos, hoje o TTC de Burlington busca diversificar suas fontes de financiamento, valendo-se de subsídios federais, estaduais e municipais, contribuições dos moradores, bem como investimentos privados e doações de grupos ou indivíduos, o que possibilita a continuidade do modelo. As fontes atuais de receita são 23% de subsídios públicos, 25% de aluguéis, 16% de ganhos nas revendas e 36% de rendimentos, taxas para aluguel comercial e outros.

Atualmente, o CHT possui mais de 2.400 propriedades para aluguel a baixo custo, 600 unidades para aquisição e 115 cooperativas habitacionais. Além disso, conta com uma ampla área destinada para espaços comerciais e escritórios. Essas construções não estão contíguas em uma mesma faixa territorial, mas sim distribuídas por todo o território de Burlington, salpicadas, cobrindo boa parte da área urbana. A enorme escala de atuação do CHT o coloca como o maior TTC do mundo, ofertando 18% das unidades residenciais da cidade de Burlington.

O crescimento em escala não vem desacompanhado de desafios importantes. A garantia da gestão participativa coletiva do território é um dos preceitos fundamentais do modelo TTC e, com uma maior amplitude espacial e de público, surgem novas complexidades para se assegurar o protagonismo dos moradores na governança territorial. É por isso que uma das grandes preocupações do Champlain Housing Trust é trazê-los para o centro da gestão. Estimula-se a participação dos moradores em assembleias comunitárias e reservam-se vagas para moradores no conselho gestor, dentre outros mecanismos de estímulo à participação direta.

Na década de 1990, quando a prefeitura cortou recursos para o TTC, ativistas protestaram. Foto: Champlain Housing Trust
Na década de 1990, quando a prefeitura cortou recursos para o TTC, ativistas protestaram. Foto: Champlain Housing Trust

De forma generalizada, os TTCs nos Estados Unidos costumam funcionar a partir da aquisição de parcelas de terras ou prédios já construídos em uma determinada região, sendo que tudo que é construído sobre a terra é vendido a proprietários individuais ou alugado, com estes moradores possuindo direito sobre a construção, ficando a terra perpetuamente sob propriedade do TTC.

No caso do CHT não é diferente, mas o tamanho, maturidade e flexibilidade deste TTC possibilitou a introdução de uma multiplicidade de arranjos para aquisição e manutenção da moradia, como, por exemplo, moradias regidas sob regime de cooperativas, unidades para aluguel dentro de prédios comuns e unidades residenciais autônomas. Em boa parte dos seus terrenos, o CHT detém o título da terra e outra entidade—seja ela uma cooperativa, organização não-governamental, incorporadores ou outras entidades habitacionais—detém o título das construções sobre ela, repassados posteriormente para moradia a preços acessíveis. Ainda existem casos, apesar de menos frequentes, em que o CHT detém a propriedade tanto do terreno quanto das construções, o que acontece nas unidades de aluguel e edifícios não residenciais.

Com a passagem do tempo o CHT veio a se preocupar não só com quem tem uma renda baixa demais para conseguir uma moradia pelo mercado tradicional (o público-alvo típico de um TTC), mas também com quem não consegue moradia de jeito nenhum: pessoas em situação de rua. O CHT comprou nove motéis que hoje oferecem moradia temporária e repleta de serviços de inserção para essa população. Já tiveram vários casos de pessoas que entraram nestes “hotéis” do CHT por estarem vivendo em situação rua e eventualmente conseguiram um emprego e passaram para as moradias alugadas pelo TTC, e um caso de extremo sucesso onde o antigo morador passou pelo hotel, aluguel e eventualmente conseguiu comprar um lar pelo TTC.

O modelo TTC implica na proibição da venda da terra. O CHT portanto se vale predominantemente do modelo de arrendamento (lease) e modalidades de aluguel a baixo custo. Para residências unifamiliares, parcelas de terrenos são transferidas para os usuários através de um contrato de arrendamento entre duas partes: o proprietário do terreno (o CHT) e o arrendatário (o morador). Esses contratos costumam ter duração de 20 anos, mas são renováveis, segundo decisão do morador. A cada novo usuário, um novo contrato é estabelecido.  

Para participar do TTC, o morador deve se enquadrar em uma determinada faixa de renda. O objetivo é evitar que as casas sejam adquiridas por pessoas de alta renda, que poderiam acessar a moradia por meio do mercado tradicional, privilegiando o acesso de populações de baixa renda. Qualquer pessoa que deseje entrar no TTC deve comprovar que não possui outra moradia. Além disso, é preciso participar de cursos preparatórios sobre o modelo TTC e educação financeira.

Moradia multifamiliar no CHT. Fonte: site da World Habitat
Moradia multifamiliar no CHT. Fonte: site da World Habitat

A partir da aprovação da inscrição no TTC, o morador solicitante recebe um adiantamento de fundos federais e estaduais, que ajudam a custear a aquisição da moradia. De início, o morador fica responsável por arcar apenas com os custos da transferência do título. Sendo assim, o programa disponibiliza um subsídio, tornando o valor da unidade mais acessível para o comprador de baixa renda. O CHT também disponibiliza empréstimos de baixo custo para manutenção e melhoria das residências, garantindo sua segurança e sustentabilidade.  

Para manter o custo habitacional acessível, prevenindo processos de valorização imobiliária, o TTC também se vale de uma fórmula de revenda, um teto para a venda das casas. Quando um morador deseja vender sua casa, 25% da valorização fundiária do imóvel referente ao mercado tradicional vai para o proprietário da casa, o resto é retido no próprio imóvel uma vez que a terra não pode ser vendida. 

O modelo do Champlain Housing Trust foi virtuoso no que se propunha a realizar. Atualmente, as casas do CHT são acessíveis para famílias que ganham cerca de 57% da renda média da área, o que demonstra seu potencial na garantia de moradia acessível para famílias de baixa renda. Além de usufruírem de bem-estar e segurança na manutenção da sua moradia, os moradores participam da gestão territorial do TTC se engajando em atividades benéficas à comunidade. Além do mais, a partir do sucesso obtido pela experiência, a própria política habitacional do município foi influenciada e passou a priorizar o TTC como mecanismo de acesso definitivo à moradia.

O modelo também obteve resultados positivos do ponto de vista ambiental. As casas do CHT são compactas, em comparação com a tendência do mercado imobiliário nos Estados Unidos, além de serem muito eficientes energeticamente. Localizadas em densos empreendimentos, no coração de comunidades já existentes e consolidadas, garantem um bom aproveitamento do solo urbano e ajudam a reduzir o uso de automóveis. 

Devido a esses impactos significativos e inovadores no campo da habitação social, o Champlain Housing Trust ganhou diversos prêmios internacionais, dentre eles, o prêmio mundial da World Habitat—organização ligada à ONU que premia iniciativas habitacionais de sucesso—sendo reconhecido mundialmente como modelo na garantia de habitação acessível. Atualmente, para além da gestão de suas terras, o CHT apoia outros projetos habitacionais em bairros onde os níveis de pobreza são mais elevados, destinando recursos e assessoria técnica para a construção de novas unidades, melhorias habitacionais e instalações comunitárias como praças, espaços comuns, etc. Durante a pandemia, parte dos esforços da organização foi destinada a construir abrigos temporários para pessoas em situação de rua, e ampliar a oferta de recursos básicos para pessoas em situações vulneráveis.

O Champlain Housing Trust é uma experiência emblemática de Termo Territorial Coletivo, onde se vê o potencial do TTC na construção de políticas públicas habitacionais e como modelo coletivo de garantia de moradia economicamente acessível e em larga escala. Ao longo das décadas, a mobilização de Burlington inspirou e apoiou inúmeras iniciativas de TTCs em diferentes cidades do mundo. Hoje, o CHT participa ativamente do movimento global dos Termos Territoriais Coletivos, defendendo com firmeza o modelo e contribuindo para sua difusão pelo planeta.


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