Autoestima Acadêmica Não É Modalidade Olímpica, Mas Poderia Ser: A Maratona de Universitários da Maré

Universitários oriundos de favelas têm que lidar com uma série de problemas estruturais, dentre eles a baixa autoestima escolar. Foto: Douglas Lopes/The Intercept Brasil
Universitários oriundos de favelas têm que lidar com uma série de problemas estruturais, dentre eles a baixa autoestima escolar. Foto: Douglas Lopes/The Intercept Brasil

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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre impactos climáticos e ação afirmativa nas favelas cariocas.

Hoje, 11 de agosto, é Dia do Estudante. Porém, enquanto o ingresso de jovens moradores de favelas na universidade rompe uma das várias barreiras das desigualdades sociais, por outro lado revela inúmeras dificuldades, como a falta de tempo para estudar, o alto nível de complexidade nos conteúdos acadêmicos, as próprias expectativas sobre si e o futuro e, ainda, a autoestima de cada um.

O jovem Lucas Feitoza, morador da Vila do Pinheiro, no Conjunto de Favelas da Maré, confessa que enfrentou dificuldades para se manter na universidade e sentiu os efeitos disso em sua autoestima. Com 23 anos, o estudante de jornalismo na Unigranrio diz que “o difícil não é só entrar, é permanecer”, avaliando que as universidades também deveriam levantar esse debate e se preocupar em como fazer que o aluno periférico permaneça e conclua a formação. “Como tornar esse espaço mais acolhedor e não só científico?”, pontua.

Lucas Feitoza na biblioteca Lima Barreto, Nova Holanda, Maré.
Lucas Feitoza na biblioteca Lima Barreto, Nova Holanda, Maré.

A Maré possui 140.000 habitantes mas só 1% desses tem graduação completa, o que dá cerca de 1.400 pessoas, segundo o Censo Populacional da Maré, construído pela organização local Redes da Maré e o Observatório de Favelas. E só 0,032% dos moradores da Maré têm alguma pós-graduação. A pesquisa Satisfação Acadêmica no Ensino Superior Brasileiro aponta que “apesar do crescimento de espaços universitários no Brasil nos anos 2000, essa expansão não foi acompanhada de um projeto integrado com políticas que levassem em consideração a complexidade que o Ensino Superior demanda dos jovens estudantes. Além da ausência de consulta sobre o ponto de vista deles”. 

O artigo As Dificuldades do Ensino e Aprendizagem no Ensino Fundamental I aponta que o fracasso escolar reúne fatores como as desigualdades sociais, o distanciamento cultural da escola com seu entorno, docentes que nem sempre estão preparados e metodologias ineficazes. As dificuldades de aprendizagem podem resultar de problemas como violência doméstica, fatores emocionais, escolas superlotadas, mal estruturadas, turmas multisseriadas, falta de material didático, professores mal preparados e desmotivados”, explica Flavimilton dos Santos Leal no artigo.

Nesse contexto surgem os bloqueios no aprendizado, dificuldades em desempenhar atividades básicas, como: escrever, ler, se expressar, interpretar textos, resolver problemas matemáticos e outros. Essas situações podem ter relação tanto com a autopercepção do aluno, quanto com a abordagem da escola ou do professor ou com o ambiente externo (social, familiar, cultural) no qual  esse aluno está inserido. A dificuldade, caso não seja sanada, pode levar o aluno a duvidar de si mesmo e, por consequência, causar desinteresse e distanciamento da escola e da universidade.

“O fracasso escolar afeta o aprender do sujeito em suas manifestações, sem chegar a aprisionar a inteligência. Muitas vezes surge do choque entre o aprendente e a instituição educativa que funciona de forma segregadora. Para entendê-lo e abordá-lo, devemos apelar para a situação promotora do bloqueio”, completa Flavimilton dos Santos Leal.

Tiago Cícero, de 29 anos, cria da Vila do Pinheiro, na Maré, é grafiteiro e instrutor de Desenho Artístico. Ele deseja ingressar em Belas Artes, mas conta que criou bloqueio emocional relacionado à escrita na quinta série. “Fiz uma redação que toda turma gostou e riu muito, mas na vez do feedback da professora, fui muito criticado sobre minha irreverência e ortografia. Me senti mal e não quis mais escrever depois disso”. Alunos não acumulam despreparos educacionais por serem incapazes, mas quando são desestimulados, e isso reflete ao longo de suas vidas acadêmicas.

Maria do Socorro, de 62 anos, licenciada em Matemática e Física e pós-graduada em Educação Matemática, é atualmente professora de Ensino Médio no CIEP César Pernetta, na Maré. Ela pondera: “Sempre falo para eles [os alunos] sobre a importância dos estudos em nossas vidas. O desinteresse pela escola também diminui o leque de oportunidades profissionais. Investimento em escolas técnicas e de tempo integral poderia ser um caminho. Além de melhoria na remuneração dos professores”.

Além dessas questões, há a prova do Enem, principal porta de entrada para as universidades e também onde começa a prova de resistência universitária. O exame, usado para avaliar o Ensino Médio no país, cobra conteúdo pouco familiar à grade curricular de uma escola pública e suas inúmeras limitações além de impor ao estudante que vem da favela uma maratona mental: estudar muito, vindo de uma educação desmotivadora e ainda por cima, em um “prazo olímpico”.

Para quem é de periferia uma das maneiras para se preparar para o Enem é através dos pré-vestibulares comunitários, como o preparatório do UniFavela, o CPV da Redes da MaréCPV do Ceasm, todos na Maré, o Pré-Vestibular Marielle Franco, na Providência, entre tantos outros. Lucas conta que fez quatro vezes a prova do Enem durante o Ensino Médio. “Na quarta vez já me senti mais preparado”.

Gisele Reinaldo, de 35 anos, psicanalista em formação pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise e pela Universidad Nacional del Saber da Espanha diz que o acolhimento emocional no ambiente acadêmico é fundamental para desconstruir o preconceito sobre as emoções, pois as inteligências passam por elas: “É nosso cérebro emocional que aprende. Negligenciar isso reflete no nosso desempenho e em quem nos tornamos”.

Essa disparidade revela uma barreira dramática, porém determinante no baixo índice de moradores de favela na universidade: a baixa autoestima escolar gerada pelo sistema de Educação Básica

Não há como falar em bom desempenho acadêmico, sem a construção de um sistema que estimule a autoestima escolar no ensino básico e no superior. Lucas revela que se comparava aos outros e percebia que cada um tinha um ritmo. “Não estou atrasado, mas no meu tempo. Isso me ajudou a diminuir a comparação e a não me culpar. E isso melhorou minha autoestima. Cada um tem sua trajetória. Se eu respeito a dos outros, porque não respeitar a minha?”

Gisele, por sua vez, afirma que, para construir um ambiente de estima, é preciso começar incentivando isso nos alunos através do diálogo. “É necessário desaprender o velho pensamento para aprender a aprender. Deve-se aplicar a autoestima em todos os níveis, respeitar a visão de mundo do aluno, seu conhecimento prévio e ouvi-lo, a partir de novos estímulos”.

Segundo ela, a academia ainda é distante porque os professores em sua formação podem não ter tido uma educação socioemocional. “É uma consciência muito recente. Nas universidades, o raciocínio ainda é muito hierárquico, com pouca comunicação entre alunos e professores”.

Com professores que se sintam incentivados, grade estimulante ao protagonismo e ao crescimento intelectual dos alunos, horizontalidade na comunicação escola-aluno e acompanhamento próximo dos casos mais desafiadores será possível tornar o ingresso dos estudantes periféricos menos traumático em relação às responsabilidades demandadas pelo ritmo universitário. 

Lucas propôs que, para a universidade se tornar mais inclusiva, deveriam existir grupos de apoio e troca com colegas da mesma realidade: “Poderia ser um caminho para auxiliar os favelados a se adaptarem ao ritmo frenético da academia”.

Danielle Figueiredo, de 27 ano, da favela Rubens Vaz, na Maré, estuda História pela UERJ e fala que quem tem o desejo de estar na universidade não deve se pressionar: “Há muita pressão em seguir um cronograma social e, às vezes, as pessoas ficam mudando de curso por terem entrado muito cedo. É importante estar lá para ter uma qualificação profissional, para diminuir as desigualdades, porque é um espaço público e porque é benéfico à nossa evolução pessoal”.

Danielle Figueiredo na biblioteca Lima Barreto, Nova Holanda, Maré.
Danielle Figueiredo na biblioteca Lima Barreto, Nova Holanda, Maré.

Mesmo diante de tantos desafios, os estudantes compartilham alguns pontos positivos desse processo. A faculdade despertou em Danielle a vontade de ser professora. A partir disso, a universitária fundou o Pré-Vestibular UniFavela. “Meu projeto do coração”, revelou emocionada.

Já Lucas percebeu a habilidade em liderança e comunicação: “Melhorou minha performance no ambiente de trabalho, tanto no relacionamento com os colegas, como no desempenho da minha função”.

Diferente de uma maratona onde apenas um é o vencedor, trabalhar a autoestima é uma vitória coletiva, e quem acaba ganhando é a sociedade como um todo. Tanto Danielle quanto Lucas estarão muito em breve na linha de chegada dessa corrida, e incentivam quem pretende seguir essa trajetória. “[É preciso] tentar diariamente, mesmo diante do cansaço e das adversidades… Entrar já é uma grande vitória e se manter nesse esforço diário é mais ainda”, afirmou Lucas. 

Para Daniele, o estudante que mora na favela não deve desistir. Ela disse: “Fique firme no seu objetivo. Terão adversidades mas continue. Haverá pessoas e circunstâncias ruins, mas outras muito boas também, que você poderá levar para vida toda. Na sala de aula é onde as ideias nascem”, aconselhou a futura historiadora.

Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é estudante de jornalismo na Unicarioca e parte do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. Tem dois blogs: AhManda Notícias, onde aborda todo tipo de conteúdo, e Hip Hop Docs, voltado ao público do Breaking no Brasil. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau e atualmente mora na Nova Holanda.


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