Aniversário de Marielle Franco É Celebrado com Inauguração de Estátua da Parlamentar e Aula Pública de Mulheres Negras no Buraco do Lume, no Centro do Rio de Janeiro [IMAGENS]

No dia 27 de julho de 2022, aconteceu a inauguração da estátua de Marielle Franco, feita pelo artista Edgar Duvivier, no Buraco do Lume, no Centro, espaço histórico de atuação política da parlamentar do Complexo da Maré, asassinada em 2018 a poucos quilômetros do local. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat
No dia 27 de julho de 2022, aconteceu a inauguração da estátua de Marielle Franco, feita pelo artista Edgar Duvivier, no Buraco do Lume, no Centro, espaço histórico de atuação política da parlamentar do Complexo da Maré, asassinada em 2018 a poucos quilômetros do local. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

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No dia 27 de julho de 2022, data que teria sido seu aniversário de 43 anos, aconteceu a inauguração da estátua da Vereadora Marielle Franco, feita pelo artista Edgar Duvivier, no Buraco do Lume, espaço histórico de atuação da parlamentar no Centro do Rio de Janeiro, a poucos quilômetros de onde foi assassinada em 14 de março de 2018.

Flores como homenagem à vida e ao legado da Parlamentar Marielle Franco, depositadas aos pés de sua estátua, no dia de seu aniversário. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Parte do plano para imortalizar a memória de Marielle, uma estátua de bronze da vereadora, em tamanho real, com 1,75 metros, foi inaugurada na última quarta-feira pelo Instituto Marielle Franco, com o apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro, em uma cerimônia com centenas de pessoas no Buraco do Lume, no Centro. Às 17h, neste tradicional local de vida política local, começou a cerimônia que apresentou à cidade o primeiro monumento à memória da vereadora, nascida e criada no Complexo da Maré. Sua mãe, a advogada Marinete da Silva foi uma das primeiras a falar, seguida de familiares, companheiros de partido, e outras referências de movimentos sociais e do movimento negro.

“Muitas pessoas conheceram a Marielle aqui nesse lugar onde ela fazia prestação de contas… Falando de tudo o que ela contrariava ou apoiava. Hoje poderia estar sendo um aniversário diferente, cortando vários bolos, tendo uma boa festa, mas infelizmente estamos aqui… Existe um antes e depois da minha filha… Ela é um marco. Minha filha não foi assassinada aleatoriamente: ela tinha uma luta… estar hoje aqui é dizer que Marielle vai estar presente sempre e, com esse marco, não vai ser esquecida nunca mais.” — Marinete da Silva

Marinete da Silva relembra sua filha, a Vereadora Marielle Franco junto de sua neta, filha de Marielle, marido, outra filha e nora. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

“O [Buraco do] Lume é um local de resistência… todo meio-dia de sexta-feira ela estava aqui prestando conta do trabalho que fazia. É um lugar muito simbólico porque fez parte também da sua construção de vida. Que bom que a gente chega a 2022 com resistência. Numa sociedade que é extremamente racista, a gente tem uma estátua de Marielle Franco para nos lembrar do mundo que queremos construir… É muito emocionante um momento como esse. Não posso fazer isso sem tentar transbordar a alegria que a memória da Marielle merece, mas também com muita dor pela ausência dela… Afinal, ver uma praça cheia como essa é a mensagem de que a morte de Marielle não foi em vão, como a vida dela também não foi.” — Mônica Benício

Vereadora Mônica Benício (PSOL-RJ), viúva de Marielle, discursa sobre a memória e o legado de sua companheira ao lado de seus sogros, cunhada e enteada, no Buraco do Lume, na inauguração da Estátua de Marielle Franco. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

O pai de Marielle, Antônio Francisco da Silva Neto, fez uma fala curta, mas bastante incisiva. Ele destacou que, em sua opinião, só serão descobertos os mandantes do assassinato de sua filha a partir de uma mudança política, que pode vir através das eleições de 2022.

O público presente trouxe flores para depositar aos pés da estátua de Marielle em sua inauguração, em tributo à sua memória. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

“Agradeço muito a todos que estão presentes aqui. Nós precisamos muito de vocês. Temos a oportunidade de mudar a política do Rio de Janeiro e do Brasil. Eu acredito que, com essa mudança, nós podemos chegar aos mandantes. Nós precisamos que essas pessoas aqui presentes nos ajudem votando.” — Antônio Francisco da Silva Neto

Público comparece na inauguração da estátua de Marielle Franco. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Antônio finalizou sua intervenção relembrando a falta que sente de sua filha que, desde a gravidez, foi muito desejada por sua família. “Há 43 anos, quando Marielle nasceu, para mim foi um momento de muita alegria. Minha primeira filha, esperada com ansiedade pela mãe”, disse o pai de Marielle.

Famíia de Marielle Franco abre as atividades do dia. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Anielle Franco, diretora do Instituto Marielle Franco, em seguida, deu prosseguimento à cerimônia declarando que assumiu o compromisso público com a memória de sua irmã desde o momento que soube de seu assassinato. Ela relembrou “o apoio fundamental que mulheres negras têm dado às ações em nome do legado de Marielle, como Marcelle Decothé, Lúcia Xavier e Jurema Werneck, entre tantas outras”.

Mulheres colocam flores na estátua de Marielle Franco. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Dando início à aula pública sobre memória, lecionada por mulheres negras, Anielle passou a palavra para Ndeye Fatou Ndiaye, inspiradora ativista negra de 17 anos.

“A memória é a semente para novos futuros… não é só história ou as epistemologias que vieram antes. É vivência. É o que a gente tem a aprender com as vivências das que vieram antes de nós: da minha mãe, da minha avô… A gente não percebe que está fazendo história até voltar e olhar para trás… Estar aqui hoje é fazer história.” — Ndeye Fatou Ndiaye

Aula pública sobre memória realizada na inauguração da estátua de Marielle, com Eliana Alves Cruz, Thula Pires e Anielle Franco, da esquerda para a direita. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Em seguida, a professora de Direito da PUC-Rio e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA), Thula Pires, começou sua fala, dizendo: “sou mãe da Dandara, mulher de axé, ekedi de Oxóssi, filha de Oyá e estou profundamente emocionada de estar aqui, numa praça pública, em função de uma mulher como Marielle. É muito emocionante estar sentada ao lado dessas mulheres e de frente para Marielle, representada aqui um pouquinho [pela estátua]”. E, antes de ponderar sobre memória, convidou à luta: “Que essa energia de revolta com esse mundo que insiste em vilipendiar nossa existência seja uma energia também capaz de produzir uma transformação profunda, estrutural”. E então refletiu:

“Através da memória reinvindicamos justiça… É uma oportunidade de avançarmos nas reparações que as comunidades negras no Brasil tanto precisam… Estamos aqui dizendo em alto e bom som que não vamos admitir que os processos históricos de interrupção de mulheres negras nesse país continuem… Na palavra memória, entre o ‘mem-‘ e o ‘-a’, tem a palavra ‘orí‘ que, em uma percepção amefricana, pode significar ‘cabeça’, física ou interior, aquela que guia, referencia, orienta, reúne intelecto, memória e pensamento, articulando presente, passado e futuro, podendo assumir o sentido político de consciência negra. Não é apenas a cabeça concreta acima do pescoço, mas a cabeça espiritual, que representa o ‘eu’ mais profundo. Orí é a sede daquilo que somos, pois é na cabeça que se localizam os olhos que nos permitem ver, o cérebro que nos permite lembrar, guardar na memória aquilo que vivemos, e a boca que nos permite falar, dizer o que acontece, contar histórias, conversar e que nos alimentemos. É a cabeça que nos ORÍ-enta. Essa ORÍ-entação pela cabeça, pelo ‘eu’, só ocorre por meio da COMUM-nidade. É nessa COMUM-nidade que a ORÍ-entação pode ser entendida também como deslocamento, como força-caminhar. Assim, sendo essa noção de ser ORÍ-entada ligada também ao espaço, podemos pensar que ser ORÍ-entado implica na construção de um novo espaço, de um novo mundo, de uma nova realidade. Ou, como nos ensina Beatriz Nascimento, implica a criação ou recriação de uma nação, o que, para as tradições religiosas de matriz africana no Brasil, remontam a um território mítico, histórico, pessoal, simbólico e material. Uma nação que envolve uma noção de pertencimento. Ser de uma nação é ser uma nação. É ser coletivo, é ser solidária, enfrentar os conflitos no coletivo e coletivamente criar espaços para o acolhimento e para os afetos. E é através da mem-ORÍ-a, que sobrevive nos caminhos tortuosos do apagamento, que pretendemos pensar o legado de Marielle, das sementes que insistem em brotar.” — Thula Pires

Centenas participam da aula pública sobre memória realizada na inauguração da estátua de Marielle Franco. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Eliana Alves Cruz, escritora e amiga de Marielle, foi a última a lecionar na aula pública sobre memória antes do fim da cerimônia. A partir de um ponto de vista pessoal, ela destacou a importância de mais atos como essa inauguração, mais esforços no sentido de documentar a história de negros e indígenas brasileiros.

“Sentada aqui, de frente para Marielle, me lembro da última vez que eu estive com ela. Foi num salão de cabeleireiro. Eu e ela, uma sentada do lado da outra, olhando no espelho, olhando nosso orí. O desaparecimento dela significou muito para o país, para o Rio e para minha família em particular. Por que estou aqui? Sou uma escritora que começou na literatura com um romance que mapeou a história da minha própria família, da África até o Brasil, um recorte 170 anos de história, e que vem até os nossos dias. É o romance Água de Barrela, depois escrevi O Crime do Cais do Valongo, Nada Digo de Ti que em Ti Não Veja, e, mais atualmente, Solitária. Então, eu sou uma escritora, alguém que essencialmente conta história. Alguém que precisa beber na fonte da memória, que precisa entender o que vai dentro de cada pessoa. Então, observo. Se não fossem as pegadas de quem veio antes, nós jamais estaríamos aqui. Nós somos frutos dessa corrente longa. E uma estátua é muito importante porque é documento. Por que que eu consegui mapear a história da minha família? Porque eu encontrei documentos, havia materialidade. A fala é bacana, a gente lembra, a gente se afeta pelo que uma pessoa diz, mas é preciso deixar o vestígio. É preciso documentar. É preciso lutar para ter nossa história escrita e registrada. Nós estamos aqui hoje nessa praça fazendo o caminho contrário à árvore do esquecimento… Estamos subvertendo o tempo. Estamos lembrando! É preciso lembrar!… Ancestralidade não é apenas falar do passado, mas do presente e do futuro! Uma pessoa como Marielle, que exercia a política da forma mais alegre que eu já havia visto até aquele momento… Como ela usava o mandato de forma feliz!… As pessoas [antes dela] tentavam me convencer de que elas fariam alguma coisa de útil para minha vida, uma visão completamente utilitária, muito egoísta sobre o que é estar em comunidade. A comunidade é mais que eu, eu um dia vou passar, mas a comunidade fica. Preciso pensar em quem vem depois, quando eu já não estiver aqui. Isso é fazer política da forma correta, pensar numa coletividade… Pensar nas pessoas como parte de uma enorme família, que é o que sinto aqui hoje.” — Eliana Alves Cruz

Ela fez questão de destacar também o caráter absolutamente cotidiano da História.

“Essa minha imagem no salão conversando com Marielle, falando de coisas absolutamente corriqueiras e que, por serem corriqueiras, são absolutamente profundas, transforma em letras a memória. Porque a História não se faz só do Grito do Ipiranga. A História se faz assim, nas ruas, principalmente nas coisas miúdas da vida.” — Eliana Alves Cruz

Público ouve com atenção às mensagens passadas na aula pública sobre memória proferida pela professora Thula Pires e pela escritora Eliana Alves Cruz na inauguração da estátua de Marielle Franco. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Ao fechar sua fala, a escritora diz que entende o assassinato de Marielle como uma tentativa extrema de apagamento. Diz que reafirmar a memória de Marielle é uma ação fundamental contra esse apagamento e que faz a vida se impor. E conclui pondo em xeque o mito de que o brasileiro não tem memória. Segundo ela:

“O Brasil não é um país sem memória. O Brasil lembra. A questão é a memória seletiva do Brasil. O Brasil quer esquecer determinadas coisas e lembrar de outras… E nós não iremos esquecer!”

Os presentes formam um círculo para ouvir as ministrantes desta aula pública sobre memória realizada na inauguração da estátua de Marielle Franco. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Neste país marcado pelo esquecimento seletivo e pelo apagamento dos não-brancos, justamente no Lume, um lugar tão marcado historicamente pela voz de Marielle, o Instituto Marielle Franco teve uma ideia tecnológica para aproximar o público ainda mais da memória e legado da parlamentar. Além da estátua, foram espalhadas pelos postes da praça folhas com QR Codes que redirecionam aqueles que apontam o celular para discursos históricos da parlamentar na Câmara dos Vereadores, recurso chamado de “A Voz de Marielle“.

Colagens 'A Voz de Marielle' são afixadas nos postes da praça do Buraco do Lume. Através de um QR Code, é possível escutar discursos históricos proferidos pela parlamentar. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Esse olhar para o passado para a construção de um futuro melhor é uma tecnologia ancestral de culturas negras na diáspora empregada para adquirir conhecimento e sabedoria, através de uma busca da herança dos antepassados. Como um Adinkra das populações Akan, originárias de Gana, em África, a estátua de Marielle é Sankofa, um símbolo Akan que exprime a ideia de “San (voltar, retornar)”, “Ko (ir)”, “Fa (olhar, buscar, pegar)”. É preciso “retornar para buscar” o que Marielle deixou como legado.

“Afinal, não é só o que se deixa, mas é o que se leva adiante.” — Mônica Benício

Família de Marielle Franco posa ao lado de sua estátua no final da cerimônia de inauguração do monumento, realizada no dia em que a vereadora completaria 43 anos. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Antes, o dia 27 de julho era cheio dos sons das gargalhadas abertas de Marielle. Em contraste, hoje, esse é um dia onde os gritos de #JustiçaPorMarielleFranco e #MariellePresente embalam a saudade da família e amigos. A trilha da celebração da vida de Marielle não é mais seu sorriso. É a sua memória que ressoa na luta de milhões.

Público compareceu em peso e ficou até o final da inauguração da estátua de Marielle Franco. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat

Não basta eleger mulheres negras, é preciso protegê-las, garantir que permaneçam vivas e que exerçam os mandatos para os quais foram eleitas.

Estátua de Marielle Franco é iluminada pela primeira vez para o público no Buraco do Lume. Foto: Alexandre Cerqueira/ComCat


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