Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre impactos climáticos e ação afirmativa nas favelas cariocas.
Há muito tempo vem se falando, no mundo inteiro, sobre as mudanças climáticas e o quanto é primordial cuidarmos do meio ambiente para freiar ou, pelo menos, amenizar os impactos de tais mudanças. Porém, com o grande aumento do desmatamento no Brasil—não só na Amazônia, mas também na Mata Atlântica e no Pantanal—tentar conter o impacto deste fenômeno climático nas áreas urbanas e rurais tem sido uma tarefa cada vez mais difícil. Eventos extremos são cada vez mais recorrentes no país.
Moradores cujas casas ficam nos altos dos morros, em encostas ou próximas a rios têm sofrido cada vez mais com os efeitos das mudanças no clima. As fortes chuvas que caem em determinadas épocas do ano causam alagamentos de casas e ruas à beira de rios e valões. Deslizamentos de terra derrubam casas construídas nessas áreas de encosta. Mortes decorrentes desses eventos, infelizmente, são comuns.
Estes fenômenos deixam muitos moradores desalojados e desabrigados, passando a viver em abrigos ou tendo que residir com parentes. Os governos, em geral, fazem o cadastro dessas pessoas para que recebam o aluguel social enquanto não conseguem moradias através de programas de habitação social, como o Minha Casa Minha Vida. Ocorre que nem sempre todos os atingidos são contemplados e, mesmo aqueles que conseguem, relatam que o valor pago é abaixo dos preços dos aluguéis praticados nas favelas.
Sendo assim, muitos optam por retornar ao antigo endereço e reconstruir a antiga moradia. Outros preferem se unir à luta dos “sem teto” e ocupam terrenos baldios abandonados, imóveis públicos ou privados que estejam desocupados ou sem cumprir a função social da propriedade, prevista na Constituição.
Mas, para saber mais sobre como as mudanças climáticas impactam as vidas dos moradores de favela, fui até o Morro do Turano, entre os bairros do Rio Comprido e da Tijuca, na Zona Norte, em uma área da parte alta da favela, especialmente vulnerável às chuvas: o Pedacinho do Céu. Uma vez lá, conversando com os moradores, eles me apontaram uma outra região, vizinha a esta, onde os deslizamentos de terra e as enxurradas de lama e lixo também são comuns: o Tanque, local em que também estive. É importante notar que o Turano é uma favela enorme e há outras localidades na parte alta, como Bicão, Esperança e Caixa D’Água. No entanto, essas duas vizinhanças, foco deste texto, são as mais altas do morro, com muitos barrancos e becos estreitos, onde nem as motos conseguem circular.
Logo no começo dessa parte do morro, há casas de alvenaria, bem estruturadas, com luz elétrica, água encanada, becos e vielas pavimentados. As encostas estão arborizadas e com muros de contenção de concreto, para evitar deslizamentos em dias de chuva. Postes de iluminação pública estão em boas condições.
No entanto, ao fim da subida da parte alta da favela, já não há mais a mesma estrutura que havia na parte baixa. Nestas áreas elevadas, encontramos muitos barracos construídos nas encostas. Algumas construções bem precárias, outras feitas de alvenaria, com boa estrutura. Há também casas de barro e madeira, chamadas de “casas de estuque”.
Em 2019, quando estive nessa área para fazer outro trabalho, vi entre estas moradias, uma casa construída inteiramente de material usado para divisórias de escritório. Ela ficava em uma parte bem alta, em um barranco, para ser mais precisa, com apenas um bico de luz elétrica, assim como outras casas daquele local—quadro recorrente nas partes altas de favelas do Rio.
Ao retornar a esta localidade este ano, vejo que aquela casa de divisórias de escritório não está mais ali. Assim como ela, muitas das outras casas que estavam ali em 2019 também não existem mais. No lugar delas hoje há muito entulho, lixo, restos de encanamento e um matagal, que encobre boa parte do caminho que ainda há ali na parte alta do Turano. Ao longo do trajeto pela parte alta até há postes de iluminação pública, mas em estado precário, bastante corroídos, inclinados e, em alguns casos, escorados pela fiação—se os fios se romperem, o poste cai. O alto do morro, antes habitado por uma quantidade expressiva de pessoas, hoje conta com uns poucos moradores que resistem a esse estado de coisas como podem.
A total ausência do poder público nessa região do morro é nítida. Há barrancos que estão cedendo, descendo aos poucos a cada chuva. Com mais algumas tempestades, comuns no Rio de Janeiro, é bem provável que ele desça por completo, arrastando tudo e todos em seu caminho. Árvores muito altas, em um solo instável e sem a devido cuidado do poder público estão prestes a cair sobre casas e também são a causa de preocupação entre os moradores. A tragédia é anunciada.
Uma casa hoje destroçada, na mesma residência em 2019, havia outros moradores, uma senhora com sua filha grávida. A moradia já era bem precária e não havia luz. Ela cozinhava do lado de fora, no quintal, num fogão improvisado feito com tijolos, grelha de geladeira e carvão. A filha grávida, com a qual conversei em 2019, dizia não ver perigo em morar ali, que já estava acostumada e que quando chovia molhava quase tudo, mas que dava para dormir onde não caía água da chuva. Atualmente, a casa encontra-se ainda mais degradada.
Contudo, hoje um homem, João*, vive lá e também diz não ver nenhum perigo em morar ali. Conta não temer um possível desabamento da encosta. “Quando chove muito, molha tudo, alaga meu quintal, minha casa, aí vou para algum lugar até acabar a chuva, depois volto para minha casa”, ele explica. Enquanto ele estende uma colcha que acabara de lavar em uma cerca de madeira, continua: “Não tenho medo não, aqui… ninguém me perturba e eu não perturbo ninguém. Não tenho para onde ir, então, fico aqui em paz, aqui é a minha casa.”
Enquanto conversamos, miquinhos passeiam pelas árvores e pela fiação de um lado para o outro. João interrompe sua resposta para falar com os animais e me alertar para eu ter cuidado para não pularem em cima de mim ou fazerem xixi, pois, apesar de serem calmos, eles não estão acostumados comigo. Logo me afasto de onde eles passam, indo mais para frente da casa. Ali vejo os restos do fogão improvisado onde a antiga moradora, na época grávida, cozinhava em 2019.
Peço para fazer algumas fotos, João diz que é bom fazer uma reportagem ali para mostrar a realidade do local e conta: “Eu estou muito bem aqui, não penso em sair não. Aqui é o melhor lugar para se viver, é tranquilo. Trabalho fazendo meus carretos [serviço de carregamento e entrega de compras e material de obra para os moradores que moram na parte alta], também catando minhas garrafas PETs, porque eu trabalho com reciclagem. Tem os bichinhos aí que me fazem companhia. E quando chove dou meu jeito.”
Me despeço do João, desço o caminho e ando mais um pouco pela parte alta do Turano. No percurso, encontro uma senhora, Elisabete*, que mora na área onde há um muro de contenção na encosta, em uma casa de alvenaria, bem estruturada. Faço a ela a mesma pergunta que fiz para o João, à qual ela responde: “Aqui eu não tenho problemas com a chuva. Aqui é tranquilo. Agora, lá pra cima sim, ali é perigoso. Mas, depois da chuva forte, de 2010, que teve os deslizamentos, muita gente saiu dali e foi embora. Uma amiga minha, que morava lá, foi embora para Minas Gerais. A casa dela caiu.”
Elisabete completa dizendo que, depois de 2010, não teve mais notícias de deslizamentos naquela parte do Morro do Turano. Segundo ela, na época a prefeitura removeu muita gente de lá e as reassentou em outros lugares.
Descendo mais um pouco, em direção a um beco que fica bem abaixo da casa de Elisabete, encontro Geraldo*, mais um morador do Pedacinho do Céu. Está em frente a sua casa quando pergunto a ele sobre os impactos das chuvas naquela parte do morro. “Aqui é tranquilo, depois de 2010, não se ouve mais histórias de deslizamentos e desabamentos. Que eu saiba, não. Agora, lá pra cima sim, é brabo, ali é bem perigoso. Ali quando a água desce, traz a terra toda. Mas, não tenho mais notícias de casas que caíram, só a lama mesmo que desce.”
Geraldo diz ser cria do Pedacinho do Céu e relata que, em 2010, por conta do grande deslizamento que teve naquela área, a prefeitura removeu os moradores para outros bairros, como Triagem, Manguinhos, Bangu e Campo Grande, através do programa Minha Casa, Minha Vida. Uma das impactadas nesse processo foi sua mãe, que saiu de sua casa no alto do Turano e foi morar em Campo Grande, na Zona Oeste, em um apartamento construído pelo governo: “Onde minha mãe morava não era área de risco, mas a prefeitura achou por bem tirar todo mundo dali. Então, ela e o restante do pessoal aceitaram a indenização que eles deram e foram para outro lugar. Eu não quis ir, preferi ficar aqui. Na minha casa não entra água, esse beco aqui é tranquilo. É bem seguro aqui.”
Geraldo está reformando sua casa e diz que, se ele tivesse condições, sairia do morro, mas só se fosse para morar em um bairro mais estruturado. No final da conversa, ele recomenda que eu visite outra localidade da parte alta da comunidade, chamada Tanque. Segundo ele, lá os impactos causados pelas chuvas são maiores. De acordo com ele, lá é uma “verdadeira área de risco” e, quando chove forte, desce muita lama e muito lixo.
Seguindo o conselho do Geraldo, vou até essa parte da favela. Antes de chegar ao Tanque, ainda no Pedacinho do Céu, encontro uma moradora chamada Creuza*. Ela mora em uma casa de alvenaria com seus filhos. A residência não tem emboço por fora e tem rachaduras nas paredes. Atrás desse terreno, há um enorme barranco, com muitas pedras e árvores inclinadas, além de muito lixo. Pergunto como ela faz em dias de chuva forte.
“Desde que moro aqui ainda não teve nada não, mas aqui é muito perigoso. Melhorou um pouco depois que tiraram algumas árvores que estavam caindo. Mas, quando chove forte, vou para a casa da minha mãe ou da minha sogra. Procuro logo um lugar mais seguro para ficar com as crianças. Vou te dizer que aqui é difícil. Ainda mais aqui em casa que pinga um pouco, molha tudo”, diz Creuza.
Enquanto conversamos, seu vizinho nos interrompe, ressaltando o perigo que grandes pedras no topo da parte alta, que podem rolar com chuvas fortes, representa. Há muitas casas no caminho que elas percorreriam, o que causaria danos materiais além de mortes. O vizinho declara morar mais abaixo da casa de Creuza e que, quando chove, entra água em sua casa e nas de seus vizinhos. No entanto, ele reafirma que sua única preocupação é com as pedras que têm o potencial de esmagar a vizinhança.
Creuza relata que toda a lama que desce quando chove encobre o caminho, ficando impossível de transitar por ali. Quando isso acontece, os próprios moradores se reúnem para retirar a terra e desobstruir o local. Ela afirma que muitos moradores das partes mais altas do Turano, como o Pedacinho do Céu e o Tanque, foram embora e abandonaram suas casas por conta do perigo do lugar. E completa dizendo que, se pudesse, também iria: “Se eu pudesse ir, também iria embora, mas, infelizmente ainda não posso. Então, vivo aqui com meus filhos e rezo para não acontecer nada. Mas não vai acontecer nada não. Fé em Deus.”
Me despido da moça e sigo caminhando até o Tanque. Ainda no caminho, já quase no meu destino, avisto uma das pedras que amedrontam os moradores: uma enorme pedra escorada por uma fina coluna de concreto. Abaixo dela, um terreno baldio com muito lixo e casas ao redor.
Duas moradoras passam na hora em que chego. Peço para conversar com elas, que me falam que um dos maiores problemas em dias de chuva é a grande quantidade de lixo que desce. Segundo elas, em suas casas não entra água, mas o caminho fica coberto de lixo e lama. Uma delas conta que a Defesa Civil e a Prefeitura retiraram algumas pessoas e disseram que iriam interditar toda a área, o que nunca se materializou.
Ao andar por toda aquela área e conversar com os moradores, é bastante perceptível o quanto a ausência do poder público é gritante, o quanto os governos são omissos e responsáveis por esse panorama perverso. As pessoas não moram na parte alta dos morros porque querem. As falas dos moradores ouvidos são marcantes ao afirmarem que não têm para onde ir e que, se tivessem condições, iriam para um lugar melhor, com mais segurança. Em dias de chuva, independente do volume de água que caia do céu, toda pessoa quer se abrigar dentro de sua própria casa e não ter que sair às pressas para procurar um lugar para ficar, por causa de inundações, enxurradas de lixo ou deslizamentos.
As políticas públicas para conter os impactos causados nas favelas pelas mudanças no clima são urgentes, sob pena de termos cada vez mais tragédias acontecendo, com números crescentes de pessoas desabrigadas e milhões de vidas ameaçadas pela negligência estatal e racismo ambiental. Enquanto não houver justiça climática, infelizmente, vidas negras e faveladas vão continuar sendo perdidas.
Sobre a autora: Carla Regina Aguiar dos Santos é jornalista comunitária, cria do Morro do Turano, que sempre prioriza o cotidiano das favelas em seu trabalho, mostrando além do que se vê nas mídias tradicionais. Já contribuiu para a Agência de Notícias das Favelas (ANF), A Pública, portal Eu, Rio! e Terra. Recebeu os prêmios: ANF de Jornalismo, na categoria cultura, e o Neuza Maria de Jornalismo.
*Pseudônimos foram utilizados para preservar a privacidade dos moradores.