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Articulação suprapartidária busca combater a subrepresentação da população negra no Legislativo na defesa de agenda antirracista.
Diz um provérbio africano—muito conhecido deste lado do Atlântico Negro: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. O ditado serve para analisar a proposta de reconstrução da democracia brasileira lançada pela Coalizão Negra por Direitos, uma articulação suprapartidária que reúne mais de 100 pré-candidaturas ligadas ao movimento negro para as eleições de 2 de outubro de 2022. O Quilombo nos Parlamentos, até o momento, reúne nomes de oito partidos: PT, PSOL, PCdoB, PSB, PDT, UP, PV e Rede Sustentabilidade.
A iniciativa Quilombo nos Parlamentos tem como objetivo eleger a maior bancada negra da história do país no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas dos estados, em oposição à extrema-direita. São 120 lideranças negras comprometidas com a agenda da Coalizão Negra por Direitos, que pretende alterar a correlação de forças e incluir as pautas do movimento negro na agenda política do país.
“Nossa luta é por respeito e por direitos básicos dos quais a maioria da população negra ainda é constantemente privada, como o próprio direito à vida, além do direito à saúde, à educação, à alimentação”, comentou Douglas Belchior, cofundador da Uneafro Brasil, integrante da Coalizão Negra por Direitos, e pré-candidato a deputado federal (PSOL-SP). “São lutas que beneficiarão todos os brasileiros. Não se trata de um Brasil para os negros, mas de um projeto com negros para o Brasil”.
O lançamento do projeto ocorreu na Ocupação 9 de Julho, em São Paulo, em 6 de junho—em uma segunda-feira, dia reservado para culto de Exu para religiões brasileiras de matriz africana, como o candomblé e a umbanda—e contou com a presença virtual do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato à Presidência da República.
“Eu estou na trincheira da luta pela democracia neste país há muitos anos, desde 1970. Mas essa é a primeira vez que me deparo com um encontro como esse, com aqueles que lutam e estão com o povo todos os dias, tomando a decisão coletiva de lançar candidaturas dos mais diferentes partidos políticos para tentar estabelecer dentro do Congresso Nacional um verdadeiro quilombo”, destacou Lula.
Apesar da população negra ser de 54,1%, de acordo com o IBGE, apenas 124 parlamentares se autodeclararam negros (entre pardos e pretos) em um universo de 513 deputados eleitos em 2018, o que corresponde a 24% do Congresso, menos da metade do necessário para refletir a porcentagem negra na população brasileira. Por outro lado, 385 parlamentares, 75% dos representantes, são autodeclarados brancos, 2 amarelos (0,39%) e 1 indígena (0,19%).
“Esse é um movimento que veio para ficar. A partir de agora, não farão mais política sem nós, porque nós [mulheres negras] sempre fizemos política de resistência, construímos e parimos este país”, ressaltou a Socióloga Vilma Reis, pré-candidata a deputada federal (PT-BA). E acrescentou: “Estamos hoje fazendo o que a ancestralidade nos preparou para fazer, porque por mais que te negues a história, eu não te esqueço do nosso compromisso político: ‘Se Palmares não existe mais, faremos Palmares de novo!”.
No total, são 36 pré-candidaturas negras para o Congresso Nacional e 84 pré-candidaturas negras às Assembleias Legislativas de 18 estados do país e à Câmara Distrital apoiadas no projeto suprapartidário encabeçado pela Coalizão. “Nós não queremos narrativa, nós queremos mandato para mudar a forma de fazer política. Para mudar não só a fotografia, mas as ações dentro das câmaras estaduais e a federal desse país”, afirmou Vanda Menezes, ex-Secretária de Estado da Mulher e pré-candidata a deputada estadual (PDT-AL).
Somente no Rio de Janeiro, a Coalizão Negra por Direitos apoia 19 pré-candidaturas, 15 homens e quatro mulheres, sete para deputado federal e doze para deputado estadual. Uma delas é uma proposta de mandato coletivo, formado por três mulheres e um homem, todos ativistas da Baixada Fluminense.
“Essa pré-candidatura coletiva significa que aqueles que sofrem com a falta de políticas públicas e a precarização das condições de vida na Baixada do Rio de Janeiro, caso eleita, vão poder decidir e participar de uma política para si. Nossa candidatura com apoio da Coalizão Negra aqui no Quilombo nos Parlamentos significa que a Baixada, majoritariamente povoada por uma população preta, será vista de um lugar de potências e não apenas de problemas”, declarou Rose Cipriano, uma das representantes Coletiva Periférica (PSOL-RJ).
Monica Francisco (PSOL-RJ), deputada estadual que tenta a reeleição para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), também é uma das pré-candidatas apoiadas. Ex-assessora da vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março, ela definiu a iniciativa Quilombo nos Parlamentos como um processo revolucionário e estratégico do movimento negro.
“Nós somos parte das sementes plantadas no meio àquelas plantações [escravocratas]. A gente é a concretização de sonhos e parte do processo que ainda vai germinar. Nós vamos ocupar e continuar ocupando o espaço do poder para subverter o poder com outra ética, estética e lógica. Hoje mostramos para a sociedade brasileira que nós temos uma sociedade negra organizada. Não há possibilidade de reverter esse processo. Nós estilhaçamos todas as máscaras e não daremos mais nenhum passo atrás. Nós não retrocederemos até que a maternidade das mulheres negras seja garantida do ventre até à maturidade. Estamos aquilombados construindo um processo revolucionário”, disse Mônica Francisco.
Da Frente Negra à Coalizão Negra por Direitos
Da espada de São Jorge no pé do palco aos discursos que reverenciavam as memórias e ensinamentos de Zumbi dos Palmares, Dandara, Marielle Franco e outros tantos, não faltaram referências à cultura afro-brasileira no evento. O lançamento do projeto Quilombo nos Parlamentos teve a participação de grandes lideranças e referências do movimento, como Milton Barbosa, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU), Carmen Silva, líder do Movimento Sem Teto do Centro de São Paulo e pré-candidata à deputada estadual (PSB-SP), e Sueli Carneiro, filósofa e feminista negra.
“Nós vivenciamos um fato inédito e histórico: o lançamento do conjunto de candidaturas negras de dimensões nacionais que têm a potencialidade, pela primeira vez, de eleger uma bancada negra significativa, construída pela nossa ação política coletiva, sob a liderança da Coalizão Negra por Direitos. É também inédito e histórico que esse quilombo parlamentar seja prestigiado pelo pré-candidato à Presidência da República [Lula] que é líder das intenções de voto e depositário das esperanças das forças progressistas. Que o ambiente democrático, embora com baixa intensidade de sempre, seja restabelecido de forma que as disputas indispensáveis para o avanço das nossas agendas possam acontecer. Sem isso, nós não temos nenhuma chance.” — Sueli Carneiro
Para a Coalizão Negra por Direitos, o atual governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro (PL-RJ), pré-candidato à reeleição, representa o acirramento do genocídio da população negra, de uma política de morte direta ou indireta, com a retirada do direito à vida ou de outros direitos básicos para a população brasileira.
Nos últimos quatro anos, especialmente a partir do começo da pandemia, a Coalizão Negra por Direitos vem lutando a partir de ações, manifestos, pressão no Congresso Nacional e no Poder Judiciário. Tem sido um dos maiores movimentos populares de resistência contra as medidas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro. Inclusive, reivindicou, em carta aberta e em mobilizações em todo o país, que o Governo Federal prorrogasse a política do Auxílio Emergencial até o fim da pandemia do coronavírus, com parcelas de, ao menos, R$600. Além disso, protocolou um pedido de impeachment de Bolsonaro. A trajetória política da organização teve como marco inicial o lançamento do manifesto Enquanto Houver Racismo Não Haverá Democracia, publicado em 2020.
Por isso, a ação Quilombo nos Parlamentos já é vista como histórica e se equipara ao lançamento da Frente Negra Brasileira (FNB), em 1931, que foi uma das primeiras organizações a exigir igualdade de direitos e participação dos negros na sociedade brasileira. Assim como a Frente, a Coalizão Negra por Direitos apoia no campo da atuação política o lançamento de candidaturas políticas negras. A FNB foi dissolvida em 1937 pelo então Presidente Getúlio Vargas, no período do Estado Novo.
“O que nós estamos fazendo hoje é a continuidade de um longo processo político do movimento negro. Estamos com diferentes ativistas negros e negras que fizeram partidos, construíram pontes. Nós do movimento negro sempre fizemos parte da esquerda, pois nós a construímos. Nós empurramos a esquerda brasileira para a esquerda. Nós, as mulheres negras! E mais uma vez, o movimento negro brasileiro se apresenta neste processo de coalizão de diferentes maneiras e com estratégias para ampliar a abrangência de políticos negros e negras no Parlamento do Brasil”, enfatizou Mônica Oliveira, da coordenação da Rede das Mulheres Negras de Pernambuco, da Articulação Negra de Pernambuco e da Coalizão Negra por Direitos.
Bianca Santana, jornalista e integrante da Uneafro Brasil, colabora na articulação de 250 organizações do movimento negro e ressaltou o quanto “fazer política entre duas pessoas não é fácil, muito mais entre 250 grupos”. Porém, esse esforço é a tradução do compromisso de mulheres negras e homens negros com o povo brasileiro. “É um investimento de homens e mulheres que trabalharam das 8h às 18h de domingo para mobilizar, organizar e apoiar as candidaturas negras que estão a serviço do movimento negro e das transformações urgentes que a gente precisa fazer nesse país”.
Segundo Sueli Carneiro, a Coalizão Negra por Direitos é a força política que hoje representa “um fator de radicalização democrática” no Brasil, uma vez que “tem colocado a questão racial no centro da agenda política no país” e tem “a coragem de continuar e lutar por essa luta [antirracista] que é a mais justa das lutas da humanidade”.
O quilombo não é apenas mais um termo. Como conceituou a historiadora Beatriz Nascimento, ele representa a história de um sistema social alternativo, autônomo, de resistência dos negros, que se constituiu como um instrumento eficaz de enfrentamento da ordem social. Por guardar padrões comunitários de organização social e produção de resistência da população negra brasileira, pode-se traçar um paralelo, uma continuidade histórica entre os sistemas sociais organizados dos negros quilombolas ao longo dos séculos e a população negra periférica no Brasil atual.
É nesta perspectiva que se deve compreender o projeto Quilombo nos Parlamentos da Coalizão Negra por Direitos, que pretende aumentar a representatividade negra no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas estaduais a partir das eleições de 2022.
Violência Política
Eleger sim, mas, sobretudo, proteger. Esse foi o apelo da jornalista Anielle Franco, diretora do Instituto Marielle Franco, irmã da vereadora assassinada, para as mais de 100 pré-candidaturas negras de todo o país presentes no evento. “Eu sou porque nós somos só funciona se nós estivermos vivos, não mortos”, destacou.
Com a voz embargada, Anielle relembrou uma troca de mensagens com a irmã realizada horas antes do assassinato da parlamentar, o que levou as quase 1.000 pessoas que lotaram a quadra da Ocupação 9 de Julho às lágrimas. Foi um pronunciamento histórico por revelar a dor da família, mas também a sobrevivência a partir da virada de chave do luto à luta. Contou com olhos marejados, sob forte emoção, Anielle Franco:
“Naquele dia 14 de março, a Mari mandou uma mensagem falando para a gente não esquecer nossa força. E aí, quando ela manda isso, ela envia junto uma foto que a gente tirou no dia de Ogum, Dia de São Jorge, no ano anterior [23 de abril de 2017]. Então, ao mesmo tempo que eu me viro para você Douglas Belchior, Vilma Reis e todo mundo que está aqui presente, que eu enquanto diretora à frente do Instituto Marielle Franco, apoio e incentivo diversas candidaturas negras… Me dá um nó na garganta… porque foi eu que vi minha irmã ainda com a cabeça aberta naquele dia…”
E fez um apelo às mais de 100 pré-candidaturas presentes na plenária Quilombo nos Parlamentos:
“Eu quero dizer aos meus mais velhos e mais novos e aos meus iguais, com muita emoção, que mesmo no dia que vocês não estejam mais aqui, mesmo quando vocês estiverem cansados, a gente vai estar aqui com vocês. Porque eles nos tiraram tudo, nos tiraram o medo, tudo… então, a gente vai com medo mesmo. Mas eu espero que a gente se fortaleça. É como eu falei no final de 2020 e repito hoje: quem cuida das mulheres negras eleitas? Porque eu vi minha irmã com a cabeça aberta, cinco tiros, e eu não desejo isso a ninguém. Então, eu desejo sim um quilombo nos parlamentos e que muitas mulheres e homens negros se elejam, mas não podemos deixar de cuidar dos nossos e das nossas. Porque eu entendo todas as homenagens para Mari, mas eu quero celebrar as mulheres negras enquanto elas estão vivas.”
Segundo o relatório Violência Política Eleitoral no Brasil, publicado pela Terra de Direitos e Justiça Global, que mapeou 327 casos ilustrativos de violência política, foram registrados 125 assassinatos e atentados, 85 ameaças, 33 agressões, 59 ofensas, 21 invasões e quatro casos de prisão ou tentativa de detenção de agentes políticos no Brasil, entre 1 de janeiro de 2016 a 1 de setembro de 2020.
Pesquisa realizada pelo Instituto Marielle Franco, Violência Política de Gênero e Raça no Brasil, em 2021, aponta que “eleitas ou não, mulheres negras seguem desprotegidas”. O relatório revela que, se o assassinato da vereadora trouxe uma repercussão que produziu um aumento histórico de candidaturas de mulheres negras no país como resposta política, trouxe também as ameaças, violências, risco de morte. Em suma, a violência política de gênero é um impeditivo para “a permanência segura dessas mulheres nos espaços de poder”.
Mais um Aniversário sem Marielle Franco
No dia do aniversário de Marielle Franco, 27 de julho, dois dias depois do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, o Instituto Marielle Franco vai inaugurar a escultura de bronze da vereadora na Praça Mário Lago, conhecida como Buraco do Lume, no Centro do Rio de Janeiro, das 17h às 20h.
O local é um tradicional ponto de encontro de políticos do PSOL—partido de Marielle Franco—com a população da cidade. Lá, a vereadora discursou por diversas vezes, sempre de cima de um caixote, tanto durante a campanha, antes de ser eleita com mais de 46.000 votos, quanto posteriormente, já à frente de seu primeiro e único mandato, quando também usava o local para prestar contas de sua atuação legislativa.
A ideia de erguer a estátua em tamanho real (1,75 metros) foi da família da vereadora, com o objetivo de defender sua memória e espalhar seu legado, regar suas sementes e lutar por justiça. Uma forma de celebrar e erguer uma homenagem “a quem dedicou sua vida para defender um mundo mais justo e para lutar pelos direitos de todas as pessoas”. A obra é do artista Edgard Duvivier, escultor de outras estátuas na cidade do Rio de Janeiro e em diversas partes do mundo.
A vereadora foi assassinada em 14 de março de 2018, quando foi vítima de execução na Rua Joaquim Palhares, entre o bairro do Estácio e da Tijuca. Ela voltava de uma atividade política junto com o seu motorista Anderson Gomes, que também morreu no atentado. O crime segue sendo investigado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Sobre a autora: Tatiana Lima é jornalista e comunicadora popular de coração. Feminista negra, integrante do Grupo de Pesquisa Pesquisadores Em Movimento do Complexo do Alemão, atua como repórter especial no RioOnWatch. Cria de favela, negra de pele clara, mora no asfalto periférico do subúrbio do Rio e é doutoranda em comunicação pela UFF.