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A fome está de volta ao mapa do Brasil. Aproximadamente 33,1 milhões de brasileiros vivem em insegurança alimentar grave. O dado é do 2º Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), divulgado em junho pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).
Na década de 1990, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que 32 milhões de pessoas passavam fome no país, marcando a entrada do Brasil no chamado “Mapa da Fome”. As informações da pesquisa da Rede Penssam, colhidas entre novembro de 2021 e abril de 2022, mostram que o país retornou a patamares de 30 anos atrás, com mais de 33 milhões de pessoas passando fome—isto é, 15,5% da população.
A realidade demarcada pelos números é contada também pelas imagens que circulam nas mídias sociais e na imprensa. Filas formadas por pessoas aguardando a doação de ossos e a venda de ossos e peles em supermercados são as fotografias de um país faminto. No passado, esses produtos costumavam ser usados para ração animal.
A cada dez domicílios, apenas quatro têm pleno acesso a alimentos na quantidade e qualidade adequada. Isto é, apenas 41,3% dos brasileiros vivem em segurança alimentar, o que significa que a maior parte dos brasileiros, ou 58,7%, vivem com algum nível de insegurança alimentar. Esse percentual equivale a cerca de 125 milhões de pessoas.
A insegurança alimentar é uma condição mais ampla do que a fome e não se caracteriza apenas pela redução na quantidade de alimentos ingeridos. Quando uma família precisa substituir alimentos saudáveis por opções menos nutritivas e mais baratas, por exemplo, configura-se uma situação de insegurança alimentar. Essa insegurança pode ser leve, moderada ou grave.
A incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo ou o comprometimento da qualidade da alimentação caracterizam um cenário de insegurança alimentar leve. Quando a quantidade de alimentos disponíveis é insuficiente, configura-se o nível moderado. A insegurança alimentar grave é quando há privação do consumo de alimentos e fome. Cerca de um terço dos domicílios brasileiros (30,7%) convivem com a falta de alimentos, ou seja, vivem sob insegurança alimentar moderada ou grave.
O avanço da fome no Brasil em 2022 não é, no entanto, um resultado exclusivo da pandemia, como destaca Sandra Maria Chaves, professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e vice-coordenadora da Rede Penssan. Em artigo publicado pela Agência Bori e Nexo Políticas Públicas, ela chama atenção para os resultados de outros levantamentos nacionais que ajudam a visualizar a ascensão e a queda da segurança alimentar ao longo dos últimos anos.
Entre 2004 e 2013, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o país viu os índices de insegurança alimentar caírem, gradativamente, registrando mais de 77% da população em situação de segurança alimentar em 2013. Na ocasião, a fome atingia pouco mais de 4%. No ano seguinte, 2014, o Brasil saiu do “Mapa da Fome”.
Após esse período, o dado público mais recente sobre o tema faz parte da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017-2018. Esse levantamento identificou que 36,6% dos lares brasileiros já conviviam com algum tipo de insegurança alimentar–contra 22,9% da PNAD 2013. “Se consideramos a série histórica, portanto, é possível reconhecer que a violação do direito humano à alimentação vinha ganhando contornos dramáticos desde a pesquisa de 2017, agravando-se desde então”, escreveu Sandra Chaves, vice-coordenadora da Rede Penssan.
O agravamento da fome no Brasil foi acentuado pela pandemia do coronavírus, mas é produto de uma soma de fatores e crises anteriores. A análise está no relatório do II Vigisan. Entre os fatores mencionados, estão o aumento do desemprego, a diminuição da renda, a inflação (especialmente sobre os alimentos), o enfraquecimento de programas sociais e o esvaziamento de políticas públicas voltadas à proteção e à promoção da Segurança Alimentar e Nutricional.
A Cara da Fome no Brasil
No Sul do país, 51,8% dos moradores vivem em segurança alimentar, número acima da média nacional (41,3%). Além disso, a região tem o menor índice de insegurança alimentar grave do país: 9,9%. Na outra ponta do Brasil (e do gráfico), o Norte é a região com os piores índices. A cada dez moradores do Norte do país, apenas três vivem em segurança alimentar (28,4%). A fome atinge um quarto dos nortistas (25,7%), percentual muito acima da média nacional de 15,5%.
De Norte a Sul, o levantamento demonstrou que a fome é mais presente no campo do que nas cidades. Cerca de 35,5% dos domicílios rurais convivem com a insegurança alimentar moderada ou grave. Porém, quando é considerado apenas as famílias nas zonas urbanas, esse índice cai para 29,9%. “Entre os domicílios rurais, o segmento da agricultura familiar sofreu o impacto da crise econômica, mas foi especialmente afetado pelo desmonte das políticas públicas voltadas para o pequeno produtor do campo”, indica trecho do II Vigisan
Além da geografia, outro fator determinante para a segurança alimentar nos lares brasileiros é o perfil da pessoa de referência, isto é, do responsável financeiro pela família. Os números mostram que a fome é majoritariamente feminina e negra. Enquanto 35,9% dos domicílios chefiados por mulheres estão em segurança alimentar, entre os lares chefiados por homens esse número salta para 46,4%. Do mesmo modo, a insegurança alimentar severa (moderada e grave) atinge 36,7% dos domicílios chefiados por mulheres, contra 25,1% dos homens.
A diferença é ainda maior quando observada a cor de pele da pessoa de referência das famílias. Como indica o relatório, “o racismo no Brasil está presente em diferentes formas e em diferentes contextos, e não deixa de se expressar ao ser analisada a garantia (ou a falta dela) ao direito humano a uma alimentação suficiente e de qualidade”. A segurança alimentar está presente em 35% dos lares chefiados por pretos e pardos e em 53,2% dos lares chefiados por brancos. Já as formas mais severas de insegurança alimentar estão presentes em 35,8% das famílias pretas ou pardas, contra 20,9% das famílias brancas.
A segurança alimentar está relacionada com o acesso à renda. Logo, a escolaridade e a ocupação no mercado de trabalho vão impactar diretamente no acesso à alimentação. O relatório demonstrou que a insegurança alimentar cai, gradativamente, diante do aumento dos anos de estudo. No Brasil, o acesso à educação ainda é estruturalmente desigual entre brancos e negros. A evasão escolar, por exemplo, afeta mais crianças e adolescentes pretos e pardos. Pessoas brancas têm, em média, mais anos de estudo, e são maioria no ensino superior–considerando instituições públicas e privadas–, segundo dados da PNAD 2018.
No mercado de trabalho a desigualdade entre brancos e negros e entre homens e mulheres também é gritante. Quase 12 milhões de brasileiros estavam desempregados no primeiro trimestre deste ano, segundo dados da PNAD Contínua. O índice de desemprego estava em 11,1%, mas, quando observado o desemprego apenas entre as mulheres, esse número salta para 13,7%, contra 9,1% entre os homens. A disparidade também se repete quando observado a cor da pele dos desempregados. Entre os brancos o desemprego ficou em 8,9%, contra 13,3% entre pretos. As diferenças entre homens e mulheres, brancos e negros manifestam-se também na ocupação de cargos de liderança e na média salarial, por exemplo.
A Indignidade e a Violação
Sentimentos como vergonha, tristeza e constrangimento para conseguir alimentos foram relatados por 8,2% das pessoas ouvidas no II Vigisan. Isso significa que quase 16 milhões de brasileiros precisam adotar estratégias que os agridem social ou emocionalmente para conseguir comida.
Como reforça Sandra Chaves, a alimentação adequada é um direito humano previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esse direito é também reconhecido na Constituição Federal Brasileira, que em 2010, após pressão popular, incluiu uma emenda que trata a alimentação como um direito social de todo cidadão.
A professora lembra, ainda, que a fome e a insegurança alimentar são violações que produzem outras violações, como a violação à liberdade de escolha e ao exercício da cultura por meio dos hábitos alimentares. Em casos mais extremos, como registrado no relatório, constitui também uma violação à dignidade humana.
A falta do alimento é o indicativo mais palpável da situação de insegurança alimentar, porém não é o único. A redução, substituição e até exclusão de determinados itens da dieta também são indicativos que merecem atenção. O II Vigisan indica que boa parte dos brasileiros reduziu ou até parou de comprar alimentos básicos, como feijão, arroz, carne, vegetais e frutas. O aumento nos preços desses itens agrava a fome e piora a qualidade dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.
Em um ano, o preço médio da cesta básica aumentou 20,4%, indo de R$529,87 em maio de 2021 para R$665,81 em maio de 2022, diferença de, aproximadamente, R$136. O dado é do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), que monitora mensalmente o valor dos alimentos em diversas capitais do país desde 2005.
Além da insegurança alimentar, aproximadamente um a cada dez brasileiros convivem com a insegurança hídrica, isto é, enfrentam algum nível de restrição no acesso à água. O dado também consta no levantamento do II Vigisan. Considerando os domicílios com insegurança hídrica, 42% também conviviam com a insegurança alimentar nos níveis mais severos, moderada ou grave. Isso significa que além de conviver com a fome, muitos brasileiros enfrentam também a sede.