Uma Leitura da Experiência do Termo Territorial Coletivo Tanzânia-Bondeni, na Cidade de Voi, no Quênia

Termo Territorial Coletivo Tanzânia-Bondeni, na cidade de Voi, no Quênia. Foto do site https://cfuhabitat.hypotheses.org/

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Essa é a mais recente de uma série de matérias sobre experiências de Termos Territoriais Coletivos (TTC) pelo mundo. Selecionamos alguns casos concretos a partir da sua importância para o contexto no qual estão inseridos e, também, pelo potencial de inspiração para grupos e pessoas em outros locais. Os casos mostram como são variados os TTCs, apesar de terem uma estrutura básica sempre igual: uma organização sem fins lucrativos, composta de moradores, é dona da terra de uma área, enquanto os moradores são donos ou alugam as moradias em si. Nosso objetivo é apresentar o aprendizado acumulado por experiências internacionais com o TTC, com o intuito de pensar, a partir das lições que elas nos fornecem, como alcançar o maior potencial do modelo no Brasil e superar desafios enfrentados em outros contextos. A experiência explorada é o caso do Tazania-Bondeni Community Land Trust, TTC situado na cidade de Voi, no Quênia.

A questão fundiária é um problema histórico no Quênia. Nos últimos 30 anos, o país passou por um longo processo de luta por habitação e melhoria dos assentamentos informais, que resultou em uma série de políticas voltadas para a população de baixa renda, inclusive a produção em massa de habitação popular. Porém, verificava-se que, após as melhorias, os moradores vendiam essas propriedades para uma parcela da população de renda mais elevada, levando a mais um ciclo de concentração fundiária e desalinhando dos objetivos do investimento público.

Como forma de contornar esse ciclo vicioso, um grupo se juntou na cidade de Voi para estudar a viabilidade do Termo Territorial Coletivo como alternativa fundiária para assentamentos informais da região. O Tanzania-Bondeni Community Land Trust foi criado no início da década de 1990, tornando-se a primeira experiência com o modelo TTC estabelecida no continente africano, composto por 530 residências. Possui uma localização privilegiada no Quênia, por estar situado próximo à principal rodovia que vai do porto de Mombaça à capital Nairóbi. Por conta disso, o interesse na terra é grande, tornando-a cada vez mais valorizada.

TTC Tanzânia-Bondeni, no Quênia

Os idealizadores do projeto adotaram cinco princípios centrais para nortear a atuação deste TTC:

  1. Participação dos moradores na gestão territorial;
  2. Proibição de proprietários ausentes;
  3. Proibição da venda da terra;
  4. Controle comunitário sobre o território; e
  5. Direitos individuais sobre as casas e construções.

A participação dos moradores foi uma das preocupações fundamentais na experiência queniana, resultante de um entendimento compartilhado de que apenas a partir de uma mobilização comunitária constante seria possível criar uma solução duradoura.

Uma prática comum é a cobrança de aluguéis abusivos em assentamentos informais no país, o que levou à preocupação do projeto em garantir que todos os proprietários sejam efetivamente moradores da comunidade, vetando assim a existência de proprietários ausentes. A proibição da venda da terra é uma característica básica do TTC e foi um dos motivos principais pela escolha do modelo tendo em vista os riscos de concentração fundiária e gentrificação naquele contexto.

Outra diretriz da experiência foi o controle comunitário da terra, o que garante a autonomia na elaboração das regras de funcionamento e que os interesses da comunidade sejam, de fato, atendidos. Por fim, pode-se dizer que o direito individual sobre a unidade habitacional foi um dos atrativos do modelo TTC que levou à sua adoção em Voi. Os moradores aderiram pois o modelo fundiário permitia um grau de autonomia sobre a gestão da própria moradia, sendo garantido o direito de vendê-la, promover melhorias, deixar para os filhos, entre outros usos.

Escritório de administração do TTC Tanzânia-Bondeni do Quênia

O grande diferencial da experiência foi o fato de ter sido desenvolvido e implementado por um grupo de atores distintos: o Conselho Municipal de Voi em parceria ao Ministério do Governo Local (MGL), responsáveis por fornecer orientação política e realizar as negociações com outras agências, e o Projeto de Desenvolvimento de Pequenas Cidades (cuja sigla, em inglês, é STDP) da ONG alemã GIZ (Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit), em português Agência para Cooperação Internacional—uma agência de assistência técnica a programas locais de desenvolvimento—responsável por fornecer investimentos diretos, além do apoio técnico.

Para obter acesso a um financiamento inicial, os moradores formaram cooperativas habitacionais sob a direção da Associação Nacional de Sindicatos Cooperativos do Quênia (NACHU). Posteriormente, o projeto seguiu a partir da mesma estratégia base que os demais modelos de TTC: lutar pela aquisição da terra por meio de uma organização sem fins lucrativos e depois separar a propriedade da terra e das construções. Se tratando de terrenos públicos, foi necessária uma ampla negociação com o governo do Quênia, o que acabou prolongando o processo.

Uma das maiores dificuldades práticas enfrentadas foi a especificidade da legislação queniana, que impedia arranjos fundiários compatíveis com a estrutura do Termo Territorial Coletivo no que tange à separação da propriedade da terra e das construções e à proibição na venda da terra. A burocracia envolvida na alteração dessa estrutura legislativa levou os residentes a se organizarem e se registrarem como uma organização privada, firmando contratos fiduciários com as diretrizes de gestão e manutenção do TTC. Posteriormente, a comunidade já organizada conseguiu uma cessão da propriedade da área pública para o TTC que, por sua vez, passou a emitir títulos individuais para as famílias integrantes da organização que fora criada. Este arranjo jurídico faz do Tanzania-Bondeni CLT provavelmente o primeiro Termo Territorial Coletivo do mundo estabelecido em terras públicas, sem que a propriedade fosse formalizada em nome de uma organização sem fins lucrativos.

Paisagem do TTC Tanzânia-Bondeni no Quênia

Os custos das transações envolvendo a formação do modelo foram significativamente reduzidos por uma série de medidas como doações de terras, para além das parcelas objeto de arrendamento, disponibilização de recursos por moradores da cidade e também com recursos oferecidos pela Agência Alemã GIZ. Com isso, os custos residuais puderam ser pagos pelos moradores no prazo de dois anos. Ainda que os moradores tenham tido gastos iniciais, estes foram menores do que os custos exigidos pelos antigos projetos governamentais de moradia, e ainda menores quando comparados ao preço do aluguel na área no mercado tradicional.

“Se decidirmos optar por escrituras individuais, algumas pessoas vão passar a vendê-las. E o que vai acontecer com as crianças? Onde vão morar?” — Mama Fatima, moradora da Tanzania-Bondeni

O TTC de Tanzania-Bondemi se estruturou no sentido de promover o reconhecimento da posse da terra e moradia economicamente acessível, mas também fomentou outras áreas importantes para a concretização da habitação adequada. Foram feitos investimentos em infraestrutura, como canalização de água municipal, criação de estradas e drenagem de águas pluviais e canais. Também foi realizado um investimento voltado a desenvolver a habitação a baixo custo a partir de planos básicos de casas e da aderência à tecnologia apropriada, a partir do auxílio do Instituto de Pesquisa de Habitação e Construção da Universidade de Nairóbi (HABRI).

O modelo queniano foi de suma importância para o contexto local uma vez que foi capaz de ajudar centenas de pessoas de baixa renda a terem acesso legal à terra urbana, luta histórica na região. A instauração do TTC também auxiliou na provisão de serviços fundamentais para o território, como acesso à água, energia elétrica e rede de saneamento, bem como no sentido do empoderamento das famílias que lá habitavam, estimulando a participação destas durante todo o processo. Além disso, o TTC conseguiu evitar a expulsão de moradores originários do local pela especulação imobiliária, fenômeno comum em assentamentos informais recém regularizados no país, causado pelo aumento no valor da terra e pressão para venda dos imóveis.

“Estou convencido… de que isso pode ser replicado em qualquer lugar.” — Gideon Muindi, ex-atendente no Conselho Municipal de Voi

Por sua vez, a experiência também enfrentou desafios especialmente relacionados com a manutenção da mobilização comunitária. Ao longo dos anos, o processo de mobilização foi enfraquecendo, ao mesmo tempo em que cresciam conflitos em torno da gestão do TTC, muitos deles ligados aos baixos índices de pagamento das taxas de administração. Essa mobilização enfraquecida, em conjunto com a desconfiança de parte dos moradores em relação aos gestores, enfraqueceu o arranjo constituído que, apesar disso, continua vigente em Tanzania-Bondeni.

Casa parte do TTC Tazânia-Bondeni no Quênia.

A experiência do Quênia com o Termo Territorial Coletivo é emblemática e traz importantes aprendizados para defensores da implementação do modelo em diferentes localidades. Foi o primeiro caso de um TTC no contexto do Sul Global e em assentos informais, e uma mudança significativa na forma em que o modelo vinha sendo aplicado no mundo, pois ele passa a ser adotado em conjunto com medidas de regularização fundiária. A experiência demonstra o potencial do TTC na garantia da permanência de comunidades em seus espaços, fortalecendo a segurança da posse no cenário pós-regularização e, principalmente, nos ensina a importância da mobilização comunitária. Sem uma mobilização forte e contínua, o modelo do TTC não alcançará seu pleno potencial, e enfrentará graves problemas na gestão territorial e no atendimento aos interesses coletivos.

Assista ao Vídeo Produzido pela ONU Habitat sobre o TTC Tanzânia-Bondeni Aqui:


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