‘Pacificado’ Dá Ênfase Sensível às Relações Humanas, mas Repete Clichê sobre o Tráfico de Drogas como Centro da Vida na Favela

Cassia Nascimento, atriz de Pacificados, trama em que os conflitos humanos são os protagonistas. Um acerto na escolha da condução da narrativa graças à parceria com Wellington Magalhães. Reprodução Reagent Media

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De cara, o filme Pacificado já chama atenção pelo nome. É difícil para quem viveu o processo da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), a partir de 2008, nas favelas do Rio de Janeiro, não criar esse paralelo. Em parte, essa parece ser mesmo a intenção do diretor americano Paxton Winters, que morou por mais de uma década no Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, e traz como pano fundo exatamente esse momento.

Mas, por outro lado, quem espera ver cenas de violência policial como em Tropa de Elite, de 2007, se engana. Mais uma vez a favela é mostrada pela ótica de como a dinâmica do tráfico de drogas, que acaba se tornando o eixo central de toda uma série de relações de afeto, interliga os moradores. Todos os personagens retratados possuem ligação direta ou indireta com o tráfico armado. Nesse ponto, o filme estrelado pelo ator Bukassa Kabengele (Jaca) fica mais próximo de Cidade de Deus, de 2002. No entanto, é importante que fique entendido: a favela não é fruto do tráfico, mas das relações entre pessoas negras, pessoas marginalizadas que criaram um sistema que vai além do sentido de sobrevivência. 

Porém, nesta trama, os conflitos humanos são os protagonistas. Esse é o ponto que faz Pacificado acertar na escolha da condução da narrativa. A violência urbana, o uso abusivo de drogas, a disputa pelo poder e a reconexão de laços familiares são retratados de maneira sensível. Essa sensibilidade cinematográfica ocorre por conta da amizade entre Paxton e Wellington Magalhães, morador da comunidade, e co-escritor deste roteiro junto a Paxton e o roteirista Joseph Carter.

Tati (Cássia Nascimento) e seu pai que conhece aos 14 anos, depois dele deixar a prisão. Ele era o chefe do tráfico em 'Pacificado'. Reprodução Regent Media

Após 14 anos na prisão, o ex-chefe do tráfico, Jaca (Bukassa Kabengele), retorna à comunidade e quando chega lá encontra como ‘frente’ Nelson, seu antigo subordinado. Há logo um clima de tensão entre eles. O novo chefe teme perder o poder para o antigo dono. Jaca é recebido de forma saudosista pelos moradores, que logo voltam a pedir a mediação dele para conflitos entre vizinhos. Quando era dono do morro—parte que  não é retratada no filme—Jaca era conhecido pela forma pacífica de resolver contendas.

Em paralelo, o ex-detento descobre que é pai de Tati (Cássia Nascimento), uma adolescente, filha dele com sua ex-mulher Andrea (Débora Nascimento), que acaba se perdendo e sendo presa por causa do uso abusivo de cocaína. Essa descoberta dá um novo rumo às decisões de Jaca. Aqui, o título do filme parece se transformar num adjetivo do personagem de Kabengele.

Ainda dentro desse núcleo, vivendo debaixo do mesmo teto, estão Dudu (Raphael Logam, duas vezes indicado ao Prêmio Emmy de Melhor Ator, em 2019 e 2020), irmão caçula de Jaca, e a avó deles Dona Preta (Lea Garcia, atriz veterana, multipremiada, indicada a Cannes, vencedora no Festival de Gramado e parte do elenco de Orfeu Negro, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1960), também chamada de avó por Tati. Pacificado, o ex-traficante tenta em vão tirar o caçula da vida do crime e da dependência em crack.

Outro ponto importante a ser destacado é que a estreia de Pacificado foi prejudicada pela pandemia do coronavírus. Inclusive, existe uma cena, gravada no bairro da Lapa, que um “Fora Temer” na parede acaba por receber certo destaque na composição. Apesar desse anacronismo, o sentido da frase ainda tem importante apelo para mudanças no rumo da política brasileira.

O filme ganhou destaque ao receber no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián, em setembro de 2019, os prêmios de melhor filme, melhor ator para Bukassa Kabengele e melhor fotografia para Laura Merians. De fato, a composição das cenas, as sequências e as escolhas de cenários criam um elo muito interessante. Além destes, no mês seguinte, ganhou como melhor filme de ficção brasileiro, durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, no voto do público, e melhor atriz para a estreante Cássia Nascimento, cria do Morro dos Prazeres. Paxton ficou com o prêmio de melhor diretor no Festival Internacional do Novo Cinema Latino-americano de Havana.

Sobre o autor: Rafael Lopes é um jornalista negro e mestre em Comunicação Social pela UFRJ. É pesquisador da obra do jornalista e escritor Lima Barreto.

Assista o Trailer do filme Pacificado:


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