Mutirão 50: Ajuda Mútua, Autogestão, Microurbanização Popular e Propriedade Coletiva da Terra na Luta por Moradia em Fortaleza

Foto 1: Entrada Mutirão 50, vista do Galpão. Nesta época, não tinha nenhum carro na favela Conjunto Marechal Rondon (68 hectares 18.000 habitantes). Foto: Yves Cabannes

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Esta matéria foi elaborada com base em uma reunião realizada com Yves Cabannes, atualmente professor emérito da University College London (UCL) e integrante do Projeto Mutirão 50, realizado no fim dos anos 1980, em Fortaleza, capital do estado brasileiro do Ceará, no Nordeste do país. Uma vez transcrita a conversa, a matéria foi complementada com comentários adicionais e informações contidas no documento Do Mutirão 50 ao Residencial Nova Alvorada.

O projeto Mutirão 50 teve início nos anos 1980 com a luta por moradia pelo movimento local dos sem teto na periferia de Fortaleza. Na época, surgia uma nova favela a cada mês, construídas a partir de processos de ocupação de terra.

No final da década, a Unidade de Ação Comunitária (UAC) da Prefeitura de Fortaleza, em parceria com entidades ligadas aos sem teto, cadastrou 550 famílias em uma favela chamada Conjunto Marechal Rondon. A maioria de seus habitantes havia sido removida da Avenida Beira-Mar para a construção de hotéis e apartamentos de luxo durante a ditadura militar. Com muitas famílias vivendo abaixo da linha da pobreza, os removidos passaram a experimentar uma realidade marcada pela fome e por necessidades habitacionais gritantes.

Foto 2: Um terreno de um hectare de difícil intervenção por ser alagável, com três barracos e atravessado por pistas. Foto: Y. Cabannes
Foto 2: Um terreno de um hectare de difícil intervenção por ser alagável, com três barracos e atravessado por pistas. Foto: Yves Cabannes

Sendo assim, em 1988, teve início o Projeto Mutirão 50, fruto de uma parceria entre a Prefeitura de Fortaleza, sob administração do Partido dos Trabalhadores (PT)—que mantinha uma estreita relação com os movimentos dos quais recebia demandas—a UAC, que pertencia à Fundação do Serviço Social da Prefeitura, o movimento local dos sem teto e, em particular, as famílias selecionadas. Além dessas instituições, participou também o Grupo de Pesquisa e Troca Tecnológica (GRET), uma ONG que prestava assessoria técnica para os movimentos sociais.

As fontes de financiamento foram variadas: o terreno público de um hectare foi cedido pela Prefeitura, a infraestrutura (água, saneamento, eletricidade, drenagem e etc.) foi uma contribuição da Prefeitura e do Estado, os materiais de construção foram custeados com recursos internacionais e a construção, em si, foi fruto do aporte das famílias participantes, com um trabalho de, em média, 20 horas semanais.

A ambição do projeto era ir além de um projeto de moradia para produzir “um pedaço de cidade”, ou seja, realizar uma microurbanização que contaria com habitações construídas em regime de ajuda mútua (mutirão), mas também com praças, espaços públicos, lojas, creches para facilitar a vida das mulheres em procura de trabalho, quintais e espaços de agricultura urbana comunitária, além de um micro distrito industrial. Todos estes equipamentos foram construídos pelos próprios moradores, que também ergueram suas casas.

Desenho participativo, com maquetes. Notem os pedreiros na frente, fazendo propostas de desenho, que foram absorvidas ao projeto e, no final, construídas. Foto: O Bonjean
Foto 3: Desenho participativo, com maquetes. Notem os pedreiros na frente, fazendo propostas de desenho, que foram absorvidas ao projeto e, no final, construídas. Foto: O Bonjean

O terreno cedido pela Prefeitura no conjunto Marechal Rondon havia sido um lixão, difícil de ser trabalhado para a construção por ser alagadiço (como se pode ver na foto 2), mas as obras foram iniciadas ali ainda assim. O local foi escolhido por ser próximo de onde as famílias mutirantes moravam. Das 550 famílias cadastradas, 50 foram selecionadas em uma primeira etapa, a partir de critérios sociais, em particular a condição de pobreza e a vontade de se engajar no projeto. Esse esquema de construção comunitária gerou situações complicadas do ponto de vista da organização do trabalho das famílias na autoconstrução, visto que vários dos selecionados eram idosos que moravam sozinhos e famílias numerosas com crianças que, apesar de enfrentarem a fome, queriam brincar na obra, o que as colocava em risco.

A pedido das famílias e, em particular, das mulheres, o processo de construção não foi iniciado com casas, mas, sim, com um galpão de produção, erguido com materiais disponíveis no local (madeira de carnaúba para a estrutura do teto, coberto com palha e paredes de blocos prensados de solo-cimento). Isso permitiu testar os métodos construtivos e iniciar a produção de blocos e de outros elementos, tais como peitoris, blocos de pedra-cimento para as fundações, tanques de água individuais de ferrocimento e vasos sanitários de cimento e pó de pedra (como se pode ver nas fotos 4 e 7). Este galpão virou um centro de capacitação e aprendizagem para as famílias e permitiu reduzir os custos da obra, além de permitir que os moradores pensassem em casas amplas, com dois quartos, uma sala, um banheiro e um tanque do lado de fora.

Durante o andamento do processo, foi formado o Conselho Popular do Rondon (CONPOR) pelos futuros moradores. O órgão tinha a função de informar os moradores, mobilizar as famílias, organizar o mutirão e mediar a relação com a Prefeitura. Outro papel fundamental foi a elaboração de um regimento interno amplamente discutido, com o apoio da UAC.

Em 1989, antes da sua saída do governo, a Prefeitura aceitou doar o terreno ao CONPOR de forma coletiva, um momento importante na história da luta por habitação no Brasil. Esta propriedade coletiva, depois de amplos debates entre o CONPOR e as famílias, foi dividida em duas formas de propriedades e uso: cada uma das famílias iria assinar um contrato real de uso individual para a casa e o lote, enquanto o restante do terreno seria destinado para uso coletivo.

O micro distrito industrial, as lojas, a creche, as praças e ruas, por sua vez, ficaram de propriedade do CONPOR. A experiência dialoga com o modelo do Termo Territorial Coletivo, originalmente chamado, em inglês, de Community Land Trust, que está sendo introduzido no Brasil desde 2018. O micro distrito também foi inspirado pela primeira cidade-jardim inglesa, Letchworth, ainda em funcionamento nos dias atuais.

No fim do ano de 1990, foram entregues as primeiras 46 casas para as famílias mutirantes. A partir desse momento, o Mutirão 50, a pedido das famílias e do CONPOR, mudou de nome e passou a se chamar Residencial Nova Alvorada, marcando simbolicamente a passagem da habitação em mutirão para um pequeno bairro urbanizado.

É importante notar que a finalização das casas e a instalação dos serviços aconteceram sob uma outra administração municipal, de um partido político opositor ao que começou o projeto: o PSDB, sob o comando de Ciro Gomes. O caráter suprapartidário das diferentes administrações municipais (PT, PSDB e PMDB) pelas quais passou o projeto foi provavelmente uma das maiores vitórias e garantiu a continuidade do Mutirão 50, junto à permanente mobilização e esforço por parte dos mutirantes, dos assessores e técnicos da Prefeitura. Isso foi chave para o sucesso deste inovador projeto habitacional cearense.

Refletindo sobre a Experiência do Mutirão 50 após Décadas de sua Realização

Segundo observou Yves Cabannes, há quatro questões-chave a serem ressaltadas sobre a experiência do Mutirão 50:

1 – Mobilização dos Moradores

A primeira diz respeito à mobilização dos moradores, que apresentou altos e baixos durante o processo de construção das casas. Muitas famílias desistiram durante o processo por conta da demora na finalização do projeto e das transições complicadas entre governos. Além do mais, o movimento evangélico entrou no conjunto com propostas para o território que não envolviam a participação das famílias no mutirão dentro de uma perspectiva de construção de um bem comum. A relação mais direta com a igreja e a proposta de salvação individual se contrapôs a uma melhoria da situação coletiva, o que acabou por desmobilizar muitas famílias. Foi interessante observar, não obstante, que uma família evangélica manteve-se firmemente ativa no mutirão até conseguir sua casa, demonstrando a abertura do CONPOR às diversas opções religiosas dos mutirantes, fossem eles católicos, sincréticos, protestantes, etc.

Apesar das dificuldades e desistências, a lista de interessados era muito ampla e não foi difícil recompor o número de famílias mutirantes. O mais complicado foi todo o trabalho de capacitação e organização comunitária, que tinha que ser retomado praticamente do zero. A lição duramente aprendida é que é preciso iniciar um processo desse tipo com um número maior de famílias, para garantir que se terá o número adequado ao final.

Para várias famílias, participar da construção em regime de mutirão (como pode ser visto na foto 4) foi também uma oportunidade de ter acesso à comida, dentro de uma situação de fome estrutural. A alimentação durante as obras em mutirão foi uma luta das mulheres, fruto de suas mobilizações e negociações com lojas, provedores de materiais de construção, frigoríficos industriais e da sua preparação dos almoços. Isso mostra o quanto é importante levar em conta as necessidades imediatas dos moradores, ao mesmo tempo em que se tem a construção de um projeto social de longo prazo.

Foto 4: Mulheres e homens mutirantes em pleno trabalho coletivo. Foto: Y. Cabannes
Foto 4: Mulheres e homens mutirantes em pleno trabalho coletivo. Foto: Yves Cabannes

Porém, mesmo diante dessas dificuldades, a organização e a força do CONPOR mantiveram o projeto ativo. As famílias efetivamente participantes foram reorganizadas e outras que estavam na lista de espera entravam e davam continuidade à construção. As casas eram construídas de forma que as famílias não soubessem qual casa estavam construindo—se a deles mesmos ou a de outra pessoa—e, ao final, as casas foram distribuídas seguindo a lógica de que as famílias que trabalharam mais horas no mutirão teriam prioridade na escolha. Todo esse processo, segundo Yves, gerou um grande sentimento de pertencimento e de participação entre os moradores e com seu novo local de moradia.

“As famílias do Mutirão 50 ficaram ali e poucas venderam as casas, diferentemente do que aconteceu em muitos dos mutirões habitacionais depois do fim. Isso aconteceu porque todo o movimento foi um processo de produção social da moradia, o que fez com que as pessoas se sentissem parte: ‘eu fiz ele’. A vontade de ficar e de não vender, apesar da pobreza e das necessidades, foi extraordinária. E isso foi um grande aprendizado. Não é só a força coletiva, é também o processo de construção por ajuda mútua em si que gerou o sentimento de apropriação.”

2 – Participação das Mulheres

Foto 5: Integrantes do Mutirão 50, essencialmente mulheres, no galpão para produção. Foto: Y. Cabannes
Foto 5: Integrantes do Mutirão 50, essencialmente mulheres, no galpão para produção. Foto: Yves Cabannes

Em segundo lugar, Yves relatou que a participação das mulheres nesse processo do Mutirão 50 foi definitiva para sua conclusão. As mulheres eram as mais participativas e, em geral, seu trabalho era mais constante e eficaz (ver fotos 5 e 6). Elas foram as responsáveis por liderar o processo e por adaptar o projeto original de construção de casas, passando a priorizar a construção de equipamentos para a geração de trabalho e renda.

“As mulheres que lideravam o projeto Mutirão 50, falavam que não queriam só casa, também queriam emprego. A questão do emprego foi uma grande preocupação e começou com a produção de tijolos de solo-cimento (ver foto 4), valorizando-se os materiais locais. O galpão (ver foto 1) foi construído na fase inicial e foi fruto do trabalho de mulheres, que mostravam o exemplo e davam a energia. Foi uma grande lição…

No fundo, não se tratava só de gerar emprego, mas de contribuir para um modelo de economia social. Cursos foram oferecidos no primeiro galpão construído, voltados para a capacitação para a produção dos materiais que seriam utilizados na construção das casas. Outras ações geradoras de emprego e que foram facilitadas pela propriedade coletiva da terra foram: o micro distrito industrial (onde existiam várias pequenas empresas), as dez lojinhas sobre a praça e, também, a creche que ofereceu às jovens mulheres não só do mutirão, mas do restante da favela Conjunto Marechal Rondon, uma possibilidade de encontrar um primeiro trabalho. Todos eles funcionavam como espaços de inclusão social e de inclusão econômica.”

Foto 6: Lideranças do Mutirão 50: em primeiro plano, Dona Margarida, futura presidente do CONPOR e Dona Lúcia. A alegria e a risada foram partes integrantes do Mutirão 50. Foto: Y. Cabannes
Foto 6: Lideranças do Mutirão 50. Em primeiro plano, Dona Margarida, futura presidente do CONPOR e Dona Lúcia. A alegria e a risada foram partes integrantes do Mutirão 50. Foto: Yves Cabannes

3 – Geração de Emprego e Renda

O terceiro ponto é exatamente a geração de renda e de emprego. A partir da forte demanda e da observação pelos técnicos da situação em que as famílias se encontravam, a geração de renda virou um objetivo central do Mutirão 50. Como Yves relatou:

“Era a fome o problema central, não só a casa e, por isso, pensávamos que, para cada duas casas, tem que se gerar um emprego. Isto aconteceu muito no programa Comunidades, o que permitiu mudar a escala do Mutirão 50, com o objetivo de construir 1.000 casas em regime de mutirão em Fortaleza e na Região Metropolitana. Estávamos obcecados por gerar emprego para reforçar a autonomia das pessoas, e conseguimos além do esperado. A habitação, além de ser um fim, era um meio para a capacitação profissional. Foi tanto assim que, depois de finalizar as casas, foi formado pelos próprios mutirantes o CONPOR, uma cooperativa de construção civil, a primeira desta natureza na região.”

Foto 7: Vista do galpão. Pode-se observar a extração do barro para a fabricação dos blocos, caixas d' água cilíndricas para as casas de ferro e cimento, e as casas-protótipos, construídas em ajuda mútua, sendo uma delas para o escritório do Projeto Mutirão 50. Foto: Y. Cabannes
Foto 7: Vista do galpão. Pode-se observar a extração do barro para a fabricação dos blocos, caixas d’ água cilíndricas para as casas de ferro e cimento, e as casas-protótipos, construídas em ajuda mútua, sendo uma delas para o escritório do Projeto Mutirão 50. Foto: Yves Cabannes

4 – Questão da Terra

O quarto e último ponto a ser enfatizado trata da questão da terra. Yves reforçou que todo o processo do Mutirão 50 foi resultado de muita mobilização e luta dos moradores, dos movimentos sociais e de instituições parceiras, mas a postura do poder público nesse processo foi, também, de extrema importância. O projeto foi realizado em um terreno municipal que, posteriormente, foi cedido para o CONPOR, ou seja, o poder público doou a terra para a pessoa jurídica formada pelos moradores do local. Assim, a terra passou a ter uma gestão e uso coletivos.

Em 1990, o CONPOR iniciou o processo de conceder a escritura de concessão de direito real de uso dos lotes a cada morador, formando-se, portanto, um arranjo híbrido entre o coletivo, que representava a maior parte do terreno, e o individual, representado pela individualização dos lotes das moradias por meio do contrato de concessão de uso do solo referente às casas. Tudo isso em um arranjo que preza pela gestão coletiva da terra.

Yves também relatou que durante um tempo foi confusa a definição de quem faria, por exemplo, a capinagem das vias, a limpeza das ruas, a coleta do lixo, de quem era a responsabilidade pela iluminação pública etc., já que este arranjo fundiário não tinha precedentes jurídicos no Brasil.

“A primeira reação do poder público foi dizer que a terra, por ser de propriedade privada, apesar de coletiva, se aproximava de um condomínio e, portanto, a Prefeitura não poderia intervir dentro da urbanização. Ao final, depois de muita mobilização e negociação, ficou decidido que os serviços públicos iam ser prestados pela Prefeitura. Nunca tínhamos pensado nisso, já que a prioridade era construir casas, terminar a urbanização e resolver a questão do terreno. Na verdade, o serviço público tem que ser público: das redes elétricas, de água e de saneamento até o medidor individual, e isso era negociação. Para fazer isso tínhamos que saber negociar passo a passo, por exemplo, para conseguir reduzir a largura das vias internas e assim possibilitar um quintal mais amplo para cada casa como existe nas cidades jardins… O poder público colaborou muito no fim das contas.”

O trabalho continuou após a construção das primeiras 46 casas, fruto da constante mobilização de alguns dos moradores e das lideranças do CONPOR. Aos poucos foram feitas mais seis casas, outros galpões no pequeno distrito industrial, uma creche e as lojinhas que passaram a formar um pequeno centro comercial. O aluguel desses espaços deveria alimentar parcialmente uma Caixa de Poupança Comunitária, gerenciada pelo Departamento Comunitário de Habitação criado pelo CONPOR:

“Outra fonte de ingresso para a Caixa de Poupança Comunitária era, em tese, os repasses financeiros mensais das famílias durante seis anos, que representavam 10% do valor dos materiais de construção utilizados nas suas casas. No entanto, isso nunca funcionou muito bem. O conjunto de famílias precisava antes se sustentar economicamente, o que levou à necessidade de gerar cada vez mais empregos.”

Na visão de Yves, o Mutirão 50 rendeu ótimos frutos e foi uma experiência muito bem-sucedida, tanto pela apropriação das pessoas, quanto pela autogestão. Os aportes externos foram realmente baixos diante do que foi feito no terreno do Marechal Rondon. Anos depois, a experiência ganhou o prémio da ONU de melhores práticas em 1996, entregue na Conferência Habitat II, em Istambul, na Turquia. Mais detalhes sobre a iniciativa foram apresentados em uma publicação sobre práticas bem-sucedidas em habitação no Brasil.

Foto 8: Reunião dos mutirantes com a responsável da Unidade de Ação Comunitária da Prefeitura, apoiadora do processo. As decisões importantes se tomavam por voto proclamados sempre após debates coletivos. Foto: Y. Cabannes
Foto 8: Reunião dos mutirantes com a responsável da Unidade de Ação Comunitária da Prefeitura, apoiadora do processo. As decisões importantes se tomavam por voto proclamados sempre após debates coletivos. Foto: Yves Cabannes

Passados cerca de 30 anos, muita coisa mudou no Residencial Nova Alvorada. A gestão coletiva funcionou bem durante vários anos, mas depois passou a enfrentar desafios decorrentes da dificuldade de manutenção da mobilização e de disputas políticas. A creche, por exemplo, era administrada pela Prefeitura de Fortaleza, mas o terreno era do Marechal Rondon. No entanto, durante muitos anos, não estava claro quem tinha domínio político sobre o território e, nos limites da cidade de Fortaleza, o Residencial Nova Alvorada passou para a Prefeitura de Caucaia. Essa mudança de prefeitura acabou deixando a creche sem administração e recursos e, portanto, sem funcionar.

Outra mudança significativa foi que os primeiros galpões e o micro distrito industrial, bem como as lojinhas, foram ocupados por famílias sem teto, refletindo a incapacidade do poder público de acompanhar a falta gritante de habitação nas áreas mais pobres do Ceará e da Grande Fortaleza. Yves comentou:

“A mudança provavelmente mais importante foi que o CONPOR foi desativado e a comunidade perdeu muita da sua força. São várias as razões possíveis para explicar esta situação, que mereceria uma pesquisa mais profunda. Na nossa visão, o problema não foi apenas a desmobilização de algumas das famílias, mas sim a transformação do residencial que tinham construído ou o cansaço depois de tantos anos de luta. A falta de acompanhamento da UAC quando o Conjunto Marechal Rondon passou para a administração da Prefeitura de Caucaia e o apoio do GRET e logo do Cearah Periferia (outra ONG local parceira do GRET), que ficou muito pontual, podem ajudar a entender melhor. Outro aspecto está relacionado com a questão da terra. O CONPOR não conseguiu pagar o IPTU sobre a parte coletiva, e o registro dos lotes individuais das famílias com contrato real de uso nunca foi plenamente registrado em cartório por falta de recursos. Infelizmente, a questão da dívida fiscal contribuiu para desativar o CONPOR.”

Dona Margarida, como é conhecida uma das lideranças locais mais ativas da época, e que ainda mora no Conjunto resumiu: “só o que possuem é uma concessão de direito real de uso da casa, mas não tem nada legalizado quanto à questão da terra”. Apesar de tudo, o relato da experiência do Mutirão 50 reforça a importância da luta, do engajamento contínuo da comunidade em todo o processo, desde a construção das casas, até a participação em políticas urbanas, e da realização de soluções inventivas sustentáveis que buscam a segurança da posse e o desenvolvimento comunitário. É fundamental que se busque a aproximação de jovens e de novos moradores dos princípios e da luta pela moradia adequada, para que os resultados sejam duradouros.

Foto 9: Vista do conjunto quase terminado. Foto tirada de um ultraleve. No centro, está a creche e, logo em frente a ela, as lojas e a praça. O galpão e o micro distrito não são visíveis. A construção destes equipamentos só foi possível por ser um terreno de propriedade coletiva, a decisão de sua autoconstrução foi da comunidade. À direita, as últimas seis casas ainda estavam em construção. Foto: Y. Cabannes
Foto 9: Vista do conjunto quase terminado. Foto tirada de um ultraleve. No centro está a creche e, logo em frente a ela, as lojas e a praça. O galpão e o micro distrito não são visíveis. A construção destes equipamentos só foi possível por ser um terreno de propriedade coletiva, a decisão de sua autoconstrução foi da comunidade. À direita, as últimas seis casas ainda estavam em construção. Foto: Yves Cabannes

Além disso, o Mutirão 50 continua sendo um projeto pioneiro e de referência na história da luta pela terra no Brasil, por ser administrado pelo movimento dos sem teto local, a partir do CONPOR. Um terreno foi cedido para um coletivo, em regime de propriedade coletiva, que permitia não só contribuir para resolver a questão da habitação, mas, ao mesmo tempo, gerenciar de forma coletiva a terra urbana com creche, lojas, espaços de produção, etc. Importante lembrar que a postura radical tomada pela então Prefeita Maria Luísa Fontenele (PT-CE) foi decisiva para ceder o terreno ao coletivo. Atitude similar a de Bernie Sanders, em Burlington, Vermont, mais ou menos no mesmo período, quando facilitou, com doação de recursos públicos, a criação do que se tornou o maior Community Land Trust urbano dos Estados Unidos, hoje conhecido como o Champlain Housing Trust.

Por fim, a experiência do Mutirão 50, com os seus avanços e os seus limites, pode trazer reflexões para a luta atual pelos Termos Territoriais Coletivos no Brasil. Ela demonstra a viabilidade de um arranjo fundiário com a terra sob gestão coletiva, a partir de uma pessoa jurídica composta pelos moradores, e a divisão da propriedade do solo (coletiva) e da habitação (individuais).

A titularidade individual com os contratos de direito real de uso se assemelha ao TTC. A diferença é que, no Mutirão 50, a maioria do terreno ficou de propriedade indivisível e coletiva nas mãos do CONPOR para facilitar outras construções, como o micro distrito industrial, creche, etc., enquanto os terrenos vinculados às moradias ficaram com os moradores através da concessão de uso. A vivência do Mutirão 50 nos comprova que é possível ter um desenvolvimento comunitário forte quando há uma estrutura jurídica formal e a mobilização contínua dos moradores, e demonstra que, apesar do processo coletivista muitas vezes ser lento e desafiador, é fundamental para o fortalecimento da comunidade e o alcance dos objetivos dos moradores.


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