Retrospectiva 2022: Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre as Favelas do Rio [EDITORIAL]

Resumo de Um Ano de Reportagens Sobre as Favelas

Caminhada em apoio a Lula na Rocinha. Foto: Bárbara Dias/RioOnWatch
Caminhada em apoio a Lula na Rocinha. Foto: Bárbara Dias/RioOnWatch

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Esta é a contribuição mais recente da nossa série anual de matérias analisando as Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre Favelas do Rio, que faz parte do debate promovido pelo RioOnWatch sobre a narrativa e as representações midiáticas acerca das favelas cariocas.

Introdução à Edição de 2022

O ano de 2022 foi cheio de complexidades, seja no âmbito nacional ou internacional. Após dois anos de uma pandemia que continua com altos números de contaminação, o Brasil entrou o ano lutando contra uma nova variante do coronavírus, a Ômicron, caracterizada por uma altíssima taxa de transmissão. Tal como ocorreu desde o início dessa emergência global, as organizações de favelas foram as principais responsáveis pelo enfrentamento à doença e às suas consequências nesses territórios, algo que não se alterou desde 2020.

2022 foi um ano ímpar, em que, somado ao coronavírus e à negligência estatal, o Brasil também passou por uma intensa polarização política e um processo eleitoral violento e tenso. No entanto, as manchetes internacionais sobre as favelas voltaram à sua “normalidade histórica”. Isso significou, muitas vezes, uma cobertura muito mais enviesada, reativa e, por vezes, problemática e ofensiva sobre esses territórios, ainda que com interessantes reportagens (e outros tipos de conteúdo) que trazem algo de novo sobre a favela e seus moradores.

Inauguração do Memorial aos 28 Mortos na Chacina do Jacarezinho, inaugurado em maio de 2022 e destruído pela Polícia Civil alguns meses depois. Foto: Selma Souza/Voz das Comunidades
Inauguração do Memorial aos 28 Mortos na Chacina do Jacarezinho, inaugurado em maio de 2022 e destruído pela Polícia Civil alguns meses depois. Foto: Selma Souza/Voz das Comunidades

O jornalismo de base comunitária, nesse contexto, manteve seu dever histórico de dar visibilidade a preocupações concretas e cotidianas, como o retorno da fome, a necropolítica, o aumento no preço do gás de cozinha e dos alimentos da cesta básica, assim como questões de médio e longo prazo que facilmente são esquecidas em meio à vida cotidiana, como mudanças climáticas, memória coletiva, ancestralidade e justiça climática.

Tais assuntos, por sua vez, raramente alcançam as páginas da mídia internacional, mesmo que esses veículos estejam cada vez mais atentos sobre como abordar as favelas, seus moradores e suas soluçõese não apenas os problemas.

Dado o impacto da mídia internacional sobre a opinião pública mundial, coberturas enviesadas ou equivocadas, por menores que sejam, se tornam problemáticas. É por isso que, apesar dos avanços, é sempre preciso reforçar a necessidade de uma mudança de paradigma para transformar a realidade e influenciar as políticas públicas, tornando crucial que as informações sobre as favelas sejam pensadas, produzidas e discutidas pelos seus próprios moradores e também por pessoas de fora em diálogo com eles.

Como já foi coberto pelo próprio RioOnWatch, há inúmeros benefícios de se fazer jornalismo a partir de soluções: ele deve ser rigoroso, baseado em evidências que ofereçam esperança à sociedade através da ciência e também sempre respondendo, com ideias inovadoras, a problemas reais. Essa abordagem proativa e positiva, se soma ao papel de cobrança às autoridades, aos que devem resposta ao público através da imprensa livre. O jornalismo deve nos dar esperança, não medo.

Entre a Pandemia e a Volta das Coberturas Tradicionais: As Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre as Favelas em 2022

No início do ano, a revista alemã Spiegel International, publicada em inglês, apresentou um interessante panorama de como as juventudes faveladas estão conquistando seu espaço. Só que, ao invés desse espaço ser no mundo real, trata-se do mundo virtual. Ainda que o acesso à internet nesses territórios seja notoriamente instável e de baixa qualidade, a Agence France Presse (AFP) publicou sobre a cena gamer nas favelas. A reportagem expõe a pouca presença de pessoas negras em ambientes digitais no Brasil.

96% das crianças de favela menores de 15 anos querem se tornar gamers profissionais, de acordo com uma pesquisa de 2021 do Instiuto Data Favela. Foto: Evaristo Sá/AFP
96% das crianças de favela menores de 15 anos querem se tornar gamers profissionais, de acordo com uma pesquisa de 2021 do Instituto Data Favela. Foto: Evaristo Sá/AFP

Infelizmente, percebeu-se a continuidade do uso do termo estigmatizante slum—que se refere à favelas incipientes e precárias cujos moradores buscam reassentamento digno, e não à favelas consolidadas que visam o investimento pleno como as do Brasil de hoje—como em matérias dos sites Impact Alpha, Start Ups e Forbes, algo que o RioOnWatch vem há mais de uma década chamando a atenção.

Uma videorreportagem interessante da Deutsche Welle no início de 2022 combinou a prevalência da tecnologia e da internet nas favelas com a economia. A reportagem seguiu uma série de matérias em outros veículos no fim de 2021 e falou sobre o serviço de entrega de mercadorias focado em favelas, Favela Brasil XPress, no contexto de alta do e-market (lojas virtuais) na pandemia.

Insegurança Pública, Chacinas e o Programa Cidade Integrada

Ainda em janeiro, o Rio foi cenário da inauguração de um novo programa de segurança pública. Oito meses após a Chacina do Jacarezinho, prontamente defendida pelo Governador Cláudio Castro, em 19 de janeiro de 2022, às 5h da manhã, a favela presenciou o início de um novo ciclo de política pública questionável, ao ser instalado o Programa Cidade Integrada no Jacarezinho e Muzema. O medo de novo perambulava pelos becos e vielas do Jacarezinho, sintetizado em toucas ninjas ocultando rostos e policiais com fuzis nas mãos.

Veículos internacionais reagiram à operação e a seus números com análisesgeralmente críticasde especialistas. Agências de notícias estrangeiras, tais como a Associated Press (AP), Reuters e AFP foram os veículos que mais pautaram esses acontecimentos na mídia internacional. Infelizmente, suas coberturas foram essencialmente reativas, com poucas pautas propositivas ou explicativas. 

Traficantes carregando rifles escutam a um culto evangélico do lado de fora de uma igreja, na periferia do Rio. Foto: Alan Lima/The Guardian
Traficantes carregando rifles escutam a um culto evangélico do lado de fora de uma igreja, na periferia do Rio. Foto: Alan Lima/The Guardian

A Insight Crime, por sua vez, mesclou jornalismo com análise crítica, bem como fez Tom Philips no The Guardian, nesta matéria na qual contextualiza o movimento de sincretismo entre a fé cristã e o tráfico de drogas.

As chacinas de 2022 representam uma tendência de retrocesso puro, tendo se repetido algumas vezes ao longo do ano. Algumas semanas depois do Programa Cidade Integrada, uma nova operação culminou em uma chacina que deixou oito mortos na Vila Cruzeiro, como reportado pela Associated Press, alguns destes pelas mãos da Polícia Rodoviária Federal (PRF), algo pouco comum na história das operações nas favelas do Rio e legalmente questionável, já que as favelas do Complexo da Penha estão a quilômetros de distância de estradas federais, sob a jurisdição da PRF.

A mesma Insight Crime, alguns meses depois, fez uma reportagem provocadora perguntando o porquê da PRF, que participou dessa operação, ter começado a matar muito mais pessoas em 2022 do que a sua média histórica. As chacinas ainda se repetiram no Rio em maio conforme noticiado aqui pela AP, na Vila Cruzeiro, e em julho como noticiado aqui pela Reuters, no Complexo do Alemão. No entanto, nenhuma reportagem estrangeira alinhavou o tema para além do óbvio, exceto um artigo do The Washington Post que não poupou as forças policiais brasileiras de serem identificadas como uma das mais letais do mundo.

Uma das poucas matérias que descreveu bem o panorama da violência e da disfunção de direitos fundamentais foi publicada pela AFP, que fez uma instigante reportagem sobre o triste marco de um ano da maior chacina na história da Polícia Militar do Rio de Janeiro, de 28 pessoas no Jacarezinho. A Insight Crime também escreveu sobre o escalonamento da violência nas favelas, deixando evidente que essas ações apenas aumentavam o número de cadáveres, sem nenhum impacto positivo nas condições de segurança da cidade.

A Luta das Favelas por Justiça Climática

Chuvas que atingiram Petrópolis em fevereiro de 2022 foram as mais intensas desde 1932. Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil
Chuvas que atingiram Petrópolis em fevereiro foram as mais intensas desde 1932. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Matérias, por sua vez, que falavam sobre o clima e tangenciavam as favela foram, no geral, interessantes, ainda que a maioria tenha sido reativa.

Uma das poucas que focou diretamente a grande vulnerabilidade desses territórios diante das mudanças climáticas, foi a reportagem do The Washington Post sobre o deslizamento de terra ocorrido em uma favela em Petrópolis, que deixou 240 mortos. Nela, o jornalista Terrence McCoy faz uma cuidadosa análise do problema da falta de moradia que assola o país há mais de cem anos, a ocupação dos morros em todo o país como alternativa viável para uma imensa parcela da população e a posição precária em que seus moradores hoje se encontram. Sem opção de moradia em áreas menos suscetíveis às chuvas e alagamentos cada vez mais ferozes, o jornalista descreve a situação nas favelas de todo o Brasil como uma bomba relógio.  

No caso de Petrópolis, o Plano Municipal de Redução de Risco, entregue em 2017—elaborado sob os ecos da tragédia de 2011—já havia identificado mais de 27.000 casas edificadas em áreas de risco alto ou muito alto para deslizamentos de terra e enchentes. Neste sentido, o Financial Times, através de seu editor Bryan Harris, delineou a questão focando em como a corrupção de ontem impacta no hoje e no amanhã em locais como favelas, que, em geral, são zonas de impacto, muito sensíveis às mudanças climáticas.

Uma das ocasiões em que veículos internacionais deram ampla cobertura para um acontecimento em favela de forma propositiva, focando nas soluções geradas nesses territórios, foi na inauguração do biossistema para tratamento do esgoto da pequena comunidade do Vale Encantado, no Alto da Boa Vista. Rosie Thornton, no Latin America Bureau (LAB) e David Biller no AP descreveram a iniciativa tomada pela comunidade como um passo em direção à sustentabilidade ambiental. A CGTN America, TV Chinesa em língua inglesa, também publicou sobre o Vale Encantado como a favela com o esgoto mais limpo do Rio de Janeiro. Lucrecia Franco, da CGTN, fez uma cobertura em vídeo na qual entrevista e acompanha os moradores responsáveis pelo projeto. 

Horta Urbana Comunitária de Manguinhos, a maior da América Latina. Foto: Reprodução
Horta Urbana Comunitária de Manguinhos, a maior da América Latina. Foto: Reprodução

Um exemplo de como abordagens estereotipadas contrastam com perspectivas que respeitam a voz local são duas matérias de 2022 sobre a Horta Comunitária de Manguinhos, que é considerada a maior da América Latina. A reportagem sobre o tema na AFP inicia o texto criando uma imagem da horta contrastando com a de jovens com armas, em meio a uma slum danificada pelo tráfico de drogas. Ou seja, reforça estereótipos negativos com relação à favela, fazendo uma análise que além de desproporcional é desnecessária para falar sobre a maior horta da América Latina. A simples escolha desse caminho narrativo é bastante problemática, segundo o que vêm defendendo os movimentos de favela.

Por sua vez, na France24, a repórter Olivia Bizot abordou o mesmo assunto iniciando seu texto falando de quantas pessoas a horta alimenta e fazendo menção, de forma respeitosa, à violência. Ela também contextualizou o tema a partir de moradores e especialistas locais, inclusive citando a Rede Favela Sustentável (RFS)*.

Adversidades, Eleições 2022 e Copa do Mundo

Descontando veículos comunitários e de nicho como o próprio RioOnWatch, poucos falaram sobre a intercessão entre favelas e eleições. Nos relatos de comunicadores comunitários residentes em diferentes favelas do Rio havia um forte medo de sofrer ameaças e represálias—até mesmo com risco de morte—o que revela como a democracia brasileira ainda é seletiva e não garante a liberdade de expressão a todos.

Lula usa boné com sigla CPX, abreviação de 'Complexo do Alemão'. Na foto, da esquerda para a direita, estão a Deputada Estadual Dani Monteiro (PSOL-RJ), Camila Moradia, liderança da favela da Skol, no CPX do Alemão, na luta pela moradia, Lula e Rene Silva, fundador do Voz das Comunidades. Foto: Domingos Peixoto/ Agência O Globo
Lula usa boné com sigla CPX, abreviação de ‘Complexo do Alemão’. Na foto, da esquerda para a direita, estão a Deputada Estadual Dani Monteiro (PSOL-RJ), Camila Moradia, liderança da favela da Skol, no Complexo do Alemão, Lula e Rene Silva, fundador do Voz das Comunidades. Foto: Domingos Peixoto/Agência O Globo

Um dos que tentaram algo para além do senso comum foi o repórter Tom Phillips, do The Guardian, que montou uma pauta bastante sensível, junto ao repórter fotográfico Alan Lima, sobre as visões dos criminosos sobre as eleições. Tom também montou uma importante matéria sobre a presença cada vez maior das milícias na política do Rio de Janeiro.

Além das eleições, o esporte e a cultura também foram nichos nos quais a favela se fez presente na mídia internacional. A Copa do Mundo viu algumas matérias darem destaque para as favelas e seus moradores, como a do Al Jazeera sobre a equipe Pérola Negra, de uma favela paulistana, e outra sobre a técnica de futebol Jéssica, do Complexo da Penha.

E não foi só no futebol. Até no badminton a favela foi tema em 2022. Em um texto da AFP sobre o atleta Ygor Coelho, foi contada a história de negligências impostas a ele enquanto crescia. Apesar de um início de texto estereotipado, que fazia alusão a como Ygor “cresceu evitando projéteis”, a reportagem apresentou esse talento promissor da favela e do esporte nacional.

No âmbito cultural, foram, ao menos, três matérias em grandes jornais estrangeiros— como no New York Times, Financial Times—que falavam sobre artistas brasileiros oriundos de favelas: Maxwell Alexandre, Antonio Tarsis e Jota.

Educação e Ciência nas Favelas

As dificuldades vividas em favelas, como a evasão escolar e a falta de representatividade, são pressupostos das análises sobre educação e ciência nas favelas na mídia internacional. Enquanto o ingresso de jovens moradores de favelas na universidade rompe uma das várias barreiras das desigualdades sociais, por outro lado, revela inúmeras dificuldades. Há, todavia, alguns exemplos de iniciativas de cunho científico-educacional que expuseram as favelas do Rio de forma positiva e parte de uma rede de soluções complexas e não através de problemas. A matéria do New Scientist, escrita por Fabian Federl, que fala sobre o projeto Heróis Contra a Dengue, no Complexo da Maré e em outros locais, é uma dessas que merece destaque.

As Favelas nas Redes Sociais em 2022

Por fim, vale apontar também alguns conteúdos que não são de veículos midiáticos tradicionais estrangeiros, mas cujo alcance e impacto na percepção sobre as favelas vêm tornando-os importantes por sua capilaridade, especialmente entre os jovens, e poder de influenciar e moldar a visão.

No YouTube, foi observada uma presença razoável de mais estrangeiros fazendo vídeos em favelas, especialmente neste ano em que o turismo voltou a se aquecer. Alguns canais de viagens ou de mochileiros problemáticos trazem à tona estereótipos irresponsáveis, sensacionalistas e negativos das comunidades cariocas, como o vídeo “Prezo Num Tiroteio em uma Favela do Rio” e o “Eu me infiltrei na favela mais perigosa do Brasil”.

No Tik Tok, porém, um criador de conteúdo em língua inglesa chamou bastante atenção por tratar as favelas de forma respeitosa, realista e sensível. O lema de Joris Explains, nome do canal do comunicador franco-britânico Joris Lochene é deixar o implícito explícito. Todos os seus vídeos para o Tik Tok no Rio são dignos de nota de como criar conteúdo que explica, sensibiliza e contextualiza a cidade para além do senso comum. Neste vídeo, ele pergunta: “Dá medo um gringo andar por uma favela? Então, depende. Você é um homen branco de classe média que foi socializado para sempre se sentir em casa por onde você andar, ou você em algum momento já viveu a marginalização?”

@joris_explains Does it feel scary to walk around in a favela? I don’t wanna romanticise Rio tho: This video is only about whether it FEELS scary to me, but In the next video I’ll address whether Rio is actually safe or not. #rio #riodejaneiro #brazil #brasil #favela #rocinha #gringo #travel #traveltiltok #sociology #positionality ♬ original sound – Joris_explains

Sem alteração:

Se dá medo andar por uma favela? Eu não tô a fim de romantizar o Rio, não. Este vídeo tem a ver com o quanto andar por uma favela ME dá medo ou não, mas no próximo vídeo eu vou falar sobre se o Rio é ou não é seguro.

*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são projetos da organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).


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