Em Manguinhos, Rios Negligenciados e Enchentes Cada Vez Mais Frequentes Atrapalham Projetos Sociais Essenciais, Rotinas e Vidas de Moradores

Rio Faria-Timbó visto da favela Vila São Pedro, em Manguinhos. Foto: Juliana Pinho
Rio Faria-Timbó visto da favela Vila São Pedro, em Manguinhos. Foto: Juliana Pinho

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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre a questão da água e a população LGBTQIAP+ nas favelas cariocas e na Baixada Fluminense.

Casos de enchentes não são historicamente incomuns no Rio de Janeiro, em seu regime normal de chuvas. No entanto, devido às mudanças climáticas, estão ficando mais recorrentes índices cada vez maiores de chuvas e de outros eventos climáticos extremos. E esses casos se agravam especialmente durante o verão, pico do volume de chuva na cidade e consequentemente período de transtornos e grandes perdas para os moradores de encostas e áreas alagáveis.

As regiões periféricas e favelas do estado do Rio de Janeiro sofrem mais com essa situação. Nestes momentos, o racismo ambiental se desdobra e é colocado em evidência. 

Complexo de Manguinhos: Zona de Impacto das Mudanças Climáticas

Mapa Manguinhos. Fonte: Fiocruz
Mapa de Manguinhos. Fonte: Fiocruz

O Complexo de Manguinhos está situado na Zona Norte do Rio de Janeiro, atravessado pela Linha Amarela, além de estar bem próximo a Avenida Brasil, a Rua Leopoldo Bulhões e a Avenida Dom Hélder Câmara, antiga Avenida Suburbana. No Censo de 2010, a população estimada de Manguinhos é de 36.000 moradores.

A região é formada pelas comunidades Parque João Goulart, Vila Turismo, CHP-2, Parque Manoel Chagas, Vila São Pedro, Comunidade Agrícola de Higienópolis, Parque Oswaldo Cruz, Parque Herédia de Sá, Parque Horácio Cardoso Franco, Vila Arará, Vitória de Manguinhos e Mandela de Pedra, Vila União, Conjunto ex-Combatentes, Suburbana, Conjunto Nelson Mandela e Conjunto Samora Machel.

As favelas do Complexo de Manguinhos sofrem com a injustiça energética, racismo ambiental e altos índices de letalidade em ações da polícia. De acordo com o relatório Manguinhos e Seus Caminhos – Infância e Trânsito em Manguinhos, Manguinhos sofre com o quinto pior IDH do município.

Complexo de Manguinhos. Foto: Reprodução do Dicionário Marielle Franco
Complexo de Manguinhos. Foto: Reprodução do Dicionário Marielle Franco

Geograficamente, o território é cortado pelos rios Faria-Timbó e Jacaré, além do Canal do Cunha. Todos com águas poluídas, servem de escoamento para o esgoto não tratado de casas e fábricas localizadas na região. A Baía de Guanabara é o destino final desses cursos.

Como consequência da falha do Estado em prover saneamento básico, os moradores de Manguinhos convivem com esgoto a céu aberto, com valas que emitem odores desagradáveis e que constantemente alagam, invadindo casas e negócios à margem do rio e em ruas do entorno. Tudo isso contribui para a disseminação de doenças e para o aumento dos riscos para a saúde dos que vivem no local. 

O Relato Manguinhos Pós-PAC: O Agravamento das Enchentes apresenta relatos de enchentes que passaram a acontecer de forma mais frequente após as construções pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O documento, elaborado pelo Laboratório Territorial de Manguinhos – LTM, traz fotos, datas e dados referentes a períodos de alagamento no território, especialmente a enchente de 2018, citando diferentes partes do complexo.

Não Existe Justiça Social sem Justiça Climática

Pedaços de asfalto e lixo na Rua Uranos após enchente. Foto: Acervo COMACS
Pedaços de asfalto e lixo na Rua Uranos após enchente. Foto: Acervo COMACS

Na Vila São Pedro, as enchentes fazem parte do cotidiano dos moradores. Qualquer sinal de chuva acende um sinal de alerta. Moradores relatam que, na Rua Uranos, que atravessa o território e faz ligação até o bairro de Bonsucesso, chegaram a ver geladeiras, motos, caçambas de lixo e até cachorros sendo arrastados pela enchente. No Rio Faria-Timbó, assoreado e transformado em um valão, com margens impermeabilizadas, quando chove forte transborda e inunda as ruas, casas e negócios.

Para Chirley Vicente, 57, moradora da Vila São Pedro há 25 anos, o sentimento é de cansaço. Ela é assistente social e fundadora do Instituto de Ação Social, Esporte e Educação (IASESPE), conhecido no território como ONG do Skate, atuante em Manguinhos há 20 anos. O objetivo principal do Instituto é contribuir para o desenvolvimento educacional e esportivo de crianças da comunidade e de seus familiares. 

O Instituto, no entanto, não está imune aos episódios de enchentes que assolam a região. A sede do IASESPE, localizada na Rua Humboldt, a principal rua de acesso à favela, que liga a Rua Uranos à Avenida dos Democráticos, sofre há anos com os constantes alagamento do Rio Faria-Timbó. A ONG de Manguinhos teve seu espaço físico, equipamentos, brinquedos, material escolar e todo o material utilizado para as atividades com os atendidos destruídos pela água e esgoto. Em 2018, em decorrência de uma forte chuva, a água invadiu as salas do Instituto pelas janelas e chegou ao nível de mais de dois metros de altura.

Janelas do IASESPE, por onde a água entrou quando o espaço foi alagado, em 2019. Foto: Juliana Pinho
Janelas do IASESPE, por onde a água entrou quando o espaço foi alagado, em 2019. Foto: Juliana Pinho

Chirley relata que uma enorme preocupação é com as chuvas de verão e que, por isso, anualmente o Instituto suspende as atividades e fica fechado a partir da segunda quinzena de dezembro, com previsão de retorno para abril do ano seguinte, depois da estação das chuvas. Infelizmente, segundo Chirley, não há nenhum diálogo, aproximação ou proposta da prefeitura, do Governo do Estado ou de qualquer órgão público para resolver essa situação insalubre dos rios de Manguinhos.

A moradora afirma também que não faltaram tentativas dos moradores para mobilizar o poder público a olhar para os problemas do território, e que a falta de resposta das autoridades faz com que os moradores fiquem desesperançosos quanto à possibilidade de mudança.

“Não posso sair desse espaço porque não tenho para onde ir e não quero abandonar o projeto. A gente vê que essa criançada não tem nada aqui dentro. Já fizemos um monte de abaixo-assinado. Mas [se] ninguém morre, não cai nenhuma casa, ninguém faz nada. Você não vai ver a gente reclamar na TV. Você não vai ver a gente reclamar no jornal da manhã, nem no de meio-dia, nem no das 18h. É tão normal já, que não importa.” — Chirley Vicente

Todo verão, enquanto a Rua Humboldt e a Rua Uranos ficam inundadas, as vias que estão localizadas mais acima da Vila São Pedro, por serem mais altas, não são afetadas diretamente pelas inundações. No entanto, os moradores dessa região ficam ilhados, impedidos de se locomover por estarem cercados por água e esgoto. Não conseguem chegar ou sair do território, pois todas as vias de acesso a ele são mais baixas e ficam completamente alagadas. Fato confirmado por Aline Sousa, moradora da Vila São Pedro desde os sete anos, hoje com 39, em seu depoimento para esta reportagem.

“Conheço muita gente que perdeu coisa nessas enchentes. Eu tenho muitas amigas que têm casa que alaga. Na minha casa não alaga, mas não dá nem para entrar nem para sair aqui de dentro. A gente fica ilhado, não pode trabalhar, não pode fazer nada.” Aline Sousa

Marcos Antônio dos Santos, 67, disse conviver com os episódios de enchentes há quase 40 anos, durante todo o tempo em que mora na Vila São Pedro. O morador, que é dono de um comércio local, relatou que a precariedade e a falta de cuidado com a região também partem da COMLURB.

“Nem passa gari aqui. Quando vai se aproximando das eleições eles chegam, mas normalmente não vêm. A gente precisa varrer a rua e limpar porque eles não vêm.” — Marcos Antônio dos Santos

O vídeo abaixo foi gravado por Marcos, da porta do seu comércio, e mostra a Rua Uranos inundada pela água numa enchente que aconteceu em 2021:

 

Caminhando nas ruas do território, é possível notar as marcas deixadas pelas enchentes nos muros das casas, úmidos e com mofo. O que também chama a atenção é a quantidade de lixo acumulada numa área alta próxima ao Rio Faria-Timbó. Trata-se de lixo que ficou preso após enchentes passadas e que não foi recolhido. Não é possível afirmar a altura que se encontra o lixo preso à grade, mas é perceptível o quanto é acima do nível normal da água, além de ficar bem próximo às residências.

Lixo acumulado em grades acima do Rio Faria-Timbó. Foto: Juliana Pinho
Lixo acumulado em grades acima do Rio Faria-Timbó. Foto: Juliana Pinho

Enquanto o poder público não age, os moradores permanecem há anos sofrendo com o mesmo problema e buscando ajudar uns aos outros após cada catástrofe. Com o IASESPE não é diferente. Chirley sonha com o dia em que conseguirá reformar a sede do Instituto, repor todos os materiais perdidos com a chuva e atender de forma plena os moradores sem precisar fechar as portas com medo das enchentes.

Por conta dos alagamentos constantes, as salas do projeto foram interditadas e impossibilitadas para uso, além de todo material de atividades ter sido perdido depois de chuvas. Ainda assim, Chirley está fazendo a distribuição de cestas básicas para 120 famílias em maior situação de vulnerabilidade atendidas e acompanhadas pelo Instituto; essa é a única ação que o projeto ainda consegue realizar por não se tratar de uma estadia na sua sede. A fundadora relatou mais sobre a incerteza do funcionamento das atividades do IASESPE por conta da chuva.

Sala da brinquedoteca do IASESPE afetada por enchentes. Material da ONG foi todo posto no alto, em uma tentativa de salvar os objetos do esgoto. Foto: Juliana Pinho
Sala da brinquedoteca do IASESPE afetada por enchentes. Material da ONG foi todo posto no alto, em uma tentativa de salvar os objetos do esgoto. Foto: Juliana Pinho

“Sexta-feira a gente estava aqui pintando umas madeiras e o tempo fechou. Eu tive que mandar todo mundo embora. Boto tudo no alto e torço para não acontecer o pior. É difícil ver o Instituto vazio. Enquanto todo mundo está fazendo suas festas, suas confraternizações, a gente está tendo que fechar as portas por causa da chuva.” — Chirley Vicente

Chirley não desiste de buscar alternativas para chamar atenção das autoridades para a situação da Vila São Pedro e dos alagamentos que afetam o IASESPE, as casas e os negócios da região. É importante ressaltar que o IASESPE é uma ação social essencial no território para o acompanhamento e assistência social dos moradores.

Sobre a autora: Juliana Pinho é moradora da Nova Holanda, no Conjunto de Favelas da Maré, socióloga (UFRJ) e estudante de Jornalismo (UCAM). Comunicadora popular e mobilizadora territorial, Juliana é co-fundadora da Frente de Mobilização da Maré, integrante da Agência Palafitas e responsável pela gestão e planejamento do projeto Pra Elas. Atualmente, atua também na área de gestão de portfólio da Luta pela Paz e é redatora do portal Entretetizei.


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