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Cria do Conjunto de Favelas da Maré, Anielle Franco torna-se a segunda ministra cria de favela na história do Brasil, assim como foi Benedita da Silva que assumiu o Ministério da Assistência e Promoção Social em 2003 com a primeira eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República. Dezenove anos depois, também num governo Lula, a nova titular do Ministério da Igualdade Racial (MIR) realizou um discurso histórico que acaba com o mito da democracia racial e se posiciona em defesa da democracia com justiça social.
Realizado em cerimônia no Palácio do Planalto, em posse conjunta à de Sonia Guajajara, titular do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Anielle Franco incorporou em seu discurso o conceito sankofa de que olhar para o passado é essencial para construir um novo futuro.
Anielle também leu em seu discurso o poema “Vozes-mulheres”, da Conceição Evaristo, um dos poemas mais importantes da literatura brasileira, que narra o caminho de resistência percorrido por mulheres negras de uma mesma linhagem ancestral, diante de um projeto de silenciamento de suas vozes desde o rapto no continente africano até os dias atuais. No texto, a poeta faz “ecoar” a trajetória da voz da mulher negra no Brasil: do ontem, hoje e agora.
“Em meio a uma política de morte, nossa resposta foi a luta pela vida. Luta essa que nos trouxe até aquele primeiro de janeiro deste ano, quando finalmente o povo brasileiro subiu a rampa desse palácio em um gesto marcante que emocionou o mundo inteiro, pois passou um recado. Quando o nosso presidente recebeu a faixa presidencial do povo, colocada por uma mulher negra periférica, mostrou que o caminho para o Brasil do futuro será liderado por aqueles e aquelas que há séculos resistem ao projeto violento que fundou esse país.” — Anielle Franco
Realizada três dias após os atentados ocorridos em Brasília por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a posse foi marcada de simbolismos: “pisamos aqui como sinal de resistência a toda e qualquer tentativa de atacar as instituições e a nossa democracia. O fascismo, assim como o racismo, é um mal a ser combatido em nossa sociedade”, afirmou a ministra.
Durante o pronunciamento, Anielle denunciou o genocídio da juventude negra nas favelas e periferias e a falta de acesso a direitos. Ela apresentou uma proposta de transformação do país e honrou movimentos sociais como a Rede Nacional de Mães e Familiares Vítimas do Terrorismo do Estado e o Movimento Negro brasileiro de ontem e de hoje. Mas, especialmente, homenageou a irmã brutalmente assassinada, Marielle Franco, ex-vereadora do Rio de Janeiro, executada em 14 de março de 2018, em um dos crimes políticos de maior repercussão na história do país e sem resposta do Estado até o momento.
“É preciso reconhecer que este país foi sedimentado sob hierarquias raciais, consequências do colonialismo escravocrata, das políticas eugenistas, e das narrativas pautadas na desigualdade racial. Aqui se desenvolveu o ’racismo à brasileira’, negando a nossa história e falseando uma memória em prol da farsa da democracia racial. O racismo merece um direito de resposta eficaz e nós gostaríamos de convidar a todas, todos e todes, negros e brancos, para que possamos formular e executar juntas essa proposta.
Nós estamos aqui porque temos um outro PROJETO DE PAÍS: um projeto de país onde uma mulher negra possa acessar e permanecer em diferentes espaços de tomada de decisão da sociedade, sem ter a vida ceifada com cinco tiros na cabeça, sendo interrompida ou violentada.
Um projeto de país onde uma mãe de um jovem negro não sofra todos os dias na dúvida se o seu filho vai voltar pra casa porque ele corre o risco de ser assassinado pelo próprio Estado. Um projeto de país onde nossos jovens negros possam ter acesso à educação pública, gratuita e de qualidade, através de escolas, universidades e serviços públicos que lhes permitam sonhar e construir outras possibilidades de futuro. Um projeto de país em que negros, brancos, indígenas, populações tradicionais, e todas as pessoas independentemente de sua raça, cor, etnia, gênero e sexualidade tenham seus direitos constitucionais garantidos, e sejam tratados com dignidade e igualdade de oportunidades. Um projeto de país pautado na busca pelo bem viver coletivo, pela melhoria da qualidade de vida e pela garantia da cidadania.” — Anielle Franco
(Leia aqui a íntegra do discurso da ministra da Igualdade Racial.)
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) participou, junto com a esposa e primeira-dama Janja, da solenidade de posse e sancionou a Lei 14.532/23, aprovada pelo Congresso Nacional que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, ampliando as punições. A solenidade de sanção ocorreu durante a cerimônia de posse das ministras Sonia Guajajara e Anielle Franco. Agora, a injúria racial pode ser punida com reclusão de dois a cinco anos. A nova legislação se alinha ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em outubro de 2022, equiparou a injúria racial ao racismo, tornando a injúria, assim como o racismo, um crime inafiançável e imprescritível. No Brasil, até a sanção deste novo texto, casos de racismo eram constantemente tipificados como injúria racial, o que na prática gerava a impunidade para o crime.
A injúria racial é a ofensa a alguém, um indivíduo, em razão da raça, cor, etnia ou origem. E o racismo é quando uma discriminação atinge toda uma coletividade ao, por exemplo, impedir que uma pessoa negra assuma uma função, emprego ou entre em um estabelecimento por causa da cor da pele.
Passos Que Vêm de Longe: Quem é a Ministra da Igualdade Racial
Anielle Francisco da Silva é ativista de direitos humanos, feminista negra, jornalista, professora, escritora, e fundadora diretora executiva do Instituto Marielle Franco. Cria da Maré, complexo formado por 16 favelas localizadas na Zona Norte do Rio de Janeiro, é conhecida como Anielle Franco dentro e fora do país.
A história da abreviação vocabular criada pela irmã Marielle para o sobrenome “Francisco” é contada por ela no recente livro, Minha Irmã e Eu: Diário, memórias e conversas sobre Marielle, lançado na Festa Literária das Periferias (Flup), em edição inédita realizada na Maré, em 11 de dezembro, exatos 30 dias antes de se tornar a primeira Ministra da Igualdade Racial do Brasil.
“Quando desligamos o telefone, o pai fez graça, lembrando que você trocou o sobrenome Francisco por Franco porque tinha sofrido bullying na infância; mas que o Papa era Francisco como a gente e ninguém reclamava. Ele sabe que você nunca se envergonhou do nosso nome, porém precisava de um sobrenome político mais sonoro. Marielle Francisco virou Marielle Franco.” (trecho do livro)
O livro reúne cartas que ela escreveu para a irmã após seu assassinato, mas também memórias da infância e da vida dos “Franciscos”. Tratam-se de escrevivências que narram a dor do luto transformado em luta—não por escolha, mas como sobrevivência. Na obra, a agora ministra Anielle Franco ecoa as vozes de gerações da família “Franco” em defesa da memória e do legado de Marielle, em defesa da justiça para o crime, mas também episódios afetivos.
Porém, engana-se quem pensa que a chegada da jornalista ao ministério é apenas uma resposta à execução da irmã. Ex-atleta de vôlei, Anielle estudou com uma bolsa para atletas jogando pelo time de vôlei da Universidade da Carolina do Norte. Nesta instituição, formou-se em jornalismo e inglês, e posteriormente em inglês/literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Prosseguiu na carreira acadêmica com um mestrado em jornalismo e inglês pela Universidade de Florida A&M (FAMU) e outro ainda em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET/RJ. De suas experiências pessoais e brilhante trajetória acadêmica saiu a dissertação de mestrado Instituto Marielle Franco: Escrevivências, Memórias e o Legado de Marielle Franco com trechos que contam muito da vida da hoje ministra:
“Ainda muito nova, passei a jogar vôlei no clube Vasco da Gama onde fiquei por três anos. Depois, joguei no clube Botafogo por muitos outros anos. Lá, fui uma das primeiras jogadoras da minha idade a receber cesta básica e vale transporte e foi também meu último clube no Brasil, um clube localizado na Zona Sul da cidade e que me fazia ver todos os dias uma outra realidade que não era a minha.”
Em outra escrevivência da dissertação, Anielle conta como “saiu da favela para o mundo, mas a favela nunca saiu de dentro” dela. E garante que “jamais sairá”. E completa: “Levei meu nome, o nome de minha família, a força de minhas raízes, o orgulho do complexo de favelas da Maré e do meu país para as quadras estadunidenses”.
Professora, seja nos EUA ou no Brasil, ela se dedicou prioritariamente a estudar questões raciais. Hoje, é doutoranda em Linguística Aplicada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o projeto: Você Fala Inglês?: escrevivências e usos antirracistas e decoloniais de Língua Inglesa, através de um olhar feminista e negra.
A antropóloga Fátima Lima, professora do Programa Interdisciplinar de Pós Graduação em Linguística Aplicada (PIPGLA/UFRJ), participou da jornada acadêmica de Anielle ao longo dos anos como orientadora. Segundo ela, a integridade, disciplina e consciência racial de Anielle sempre chamou a atenção.
“Orientei o mestrado e oriento a agora Ministra Anielle Franco no doutorado. Falo desse lugar na condição de professora, mas também na condição de militante e ativista do movimento de mulheres negras e, principalmente, de amiga da Anielle, assim como era amiga da Marielle. O que eu tenho pra dizer de Anielle é em relação à sua integridade absurda. Inclusive, já disse presencialmente para ela: Anielle é uma pessoa que não esquece de onde veio”, conta Fátima Lima.
E destaca: “a consciência crítica racial e a postura ética dela, além do conhecimento da realidade dos becos das favelas fará Anielle Franco desenvolver uma postura marcante no Ministério da Igualdade Racial. Principalmente pelo reconhecimento das desigualdades do país que tem a nova ministra. Sobretudo, por conhecer que elas são de classe, de gênero, mas são antes de tudo raciais”.
Lúcia Xavier, uma das intelectuais negras mais importantes do país, coordenadora da ONG Criola, em depoimento exclusivo para o RioOnWatch, afirma:
“Assistir à posse da Ministra Anielle Franco para a pasta da Igualdade Racial é um avanço em termos da demonstração da capacidade das mulheres negras em criar mecanismos, processos, e até mesmo organismos, que venham enfrentar o racismo presente na sociedade brasileira. Anielle é uma jovem mulher negra e feminista, cria da favela da Maré, que assume esse lugar colocando à disposição tanto do Estado brasileiro quanto da sociedade: saberes, articulações e processos políticos já desenhados pelos movimentos negros, mulheres negras, pela juventude negra. E mais do que isso: pelo contexto de experiência política que uma mulher, uma jovem mulher negra tem numa sociedade como a nossa. Celebramos e reconhecemos a coragem de Anielle para enfrentar um dos principais desafios que o Brasil atravessa, que é reconhecer, erradicar, reparar [o racismo], e desenvolver ações que fortaleçam a população negra.” — Lúcia Xavier
Por Reparação, Memória e Justiça Social
Ao longo de duas semanas, o RioOnWatch entrevistou, com exclusividade, mulheres negras e ativistas feministas e de direitos humanos que aceitaram dar depoimentos sobre o significado da posse de Anielle Franco. Além da professora Fátima Lima e de Lúcia Xavier, foram entrevistadas Mônica Cunha, Pâmella Passos, Amanda Mendonça, Camila Moradia, Flavia Cândido e Pâmela Carvalho.
O mosaico de vozes traz um encontro de gerações de mulheres negras acadêmicas, lideranças de favelas, ativistas sociais e de direitos humanos e expressa as percepções dessas mulheres—que de alguma forma participaram da jornada de Anielle Franco—sobre a chegada de uma cria da favela à Esplanada dos Ministérios.
Em depoimentos emocionantes, as cinco entrevistadas falam da representatividade do corpo, obra e vida de Anielle Franco expressando um ponto em comum: o reconhecimento da capacidade da ministra e seu comprometimento em reconstruir e propor políticas de reparação para a população negra à frente do Ministério da Igualdade Racial.
Os relatos retratam, ainda, um forte sentimento de representatividade política, que também se estende a Sonia Guajajara como titular do Ministério dos Povos Indígenas, traçando uma visão de luta coletiva realizada por estas mulheres ao longo dos anos em conjunto com Anielle Franco.
Mônica Cunha: “Chegamos de Bonde!”
Mônica Cunha é cofundadora do Movimento Moleque e integrante da Coalizão Negra por Direitos. Defensora dos direitos humanos, ela é uma das mães mais combativas da Rede Nacional de Mães Vítimas de Violência e Terrorismo do Estado. Mônica toma posse como vereadora do município do Rio de Janeiro em 2 de fevereiro, assumindo como suplente a vaga deixada por Tarcísio Motta (PSOL), eleito deputado federal nas eleições de 2022.
“Fui testemunha do Brasil tomando posse do Brasil, ocupando o seu lugar… [a] posse [de duas ministras mulheres]: uma indígena e outra negra. É o que a gente do movimento social que está à frente da luta vem falando, principalmente nós mulheres negras: estamos finalmente começando a ocupar o nosso lugar para fazer de fato existir uma democracia neste país. A posse da Anielle Franco é uma luta de todas nós, de muitos anos. É o início da reparação. É a retomada do nosso lugar que nos foi tirado há quinhentos anos e vem para de fato ocupar e construir o Brasil, como já deveríamos ter ocupado antes quando chegamos aqui. Todos esses dois povos, negro e indígena, sempre foram tratados com desigualdade, racismo e discriminação. Somos corpos de povos que sempre foram… vistos ou enxergados sem direitos. Quando numa parte do discurso dela, Anielle cita o nome de diversas mulheres negras que acompanharam ela a partir dessa tragédia que aconteceu na vida dela e da família, que é o assassinato de Marielle, ali nós sentimos que quem estava ocupando esse lugar é a nossa filha, é a nossa neta, é a nossa sobrinha, é a nossa prima… Anielle Franco tomou posse numa quarta-feira. Em uma quarta-feira, sua irmã, Marielle, foi assassinada. Em uma quarta-feira, Anielle Franco se torna Ministra da Igualdade Racial, dia de Xangô, orixá da justiça e Iansã, dona dos ventos. Você lembra como ventava quando Marielle foi executada? Como caiu um temporal inexplicável? Ter visto e participado desse momento histórico foi ver a luta minha de 22 anos, ver a luta do movimento de mães vitimas do Estado sendo reconhecida, porque quando Anielle falou do genocídio da juventude negra, ela nos levou para lá. Porque esse é um termo, colocado por nós do movimento de mães desde sempre para fazer com que as pessoas entendam, todas as pessoas compreendam o que nós perdemos, que são os nossos filhos… Então, quando ela traz isso ali, ela ecoa a voz de todos nós. — Mônica Cunha
Pâmella Passos: “Estamos Prontas!”
Pâmella Passos é professora de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) e integrante do conselho consultivo do Instituto Marielle Franco. Pesquisadora acadêmica, tem dois estágios de pós-doutorado: o primeiro em Antropologia Social (UFRJ) e, o segundo, em Educação (UFF). É líder do Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Educação e Cultura (GPTEC), autora de livros, com vasta produção na área de direitos humanos.
Pâmella era comadre de Marielle Franco e atuou de forma voluntária na coordenação política da ex-vereadora. Após a morte da amiga, tornou-se também amiga de sua irmã, Anielle, que já conhecia antes, mas com quem estreitou laços de amizade, passando do luto à luta.
“Como mulher negra, historiadora, amiga da Marielle, amiga da Anielle, professora, educadora, afirmo que ter Anielle Franco no Ministério de Igualdade Racial é reconhecimento, reparação e memória. Reconhecimento pela trajetória pessoal dela, que é sempre importante ressaltar: Anielle Franco é uma estudiosa, pesquisadora e articuladora nacional e internacional, que nos últimos cinco anos, mesmo em meio a tanta dor, construiu pontes, diálogos e o Instituto Marielle Franco, sendo reconhecida internacionalmente pela sua capacidade de articulação política e de denunciar, por exemplo, as violências políticas sofridas por mulheres negras no Brasil. Então, o primeiro ponto sobre a posse de Anielle enquanto ministra é isso: é reconhecimento dado à trajetória dela e também reparação não só pelo que foi feito com Marielle, sua irmã, mas pelo que vem sendo feito com as mulheres pretas no Brasil ao longo de séculos. E reparar é dizer que mulheres pretas têm qualificação e podem estar onde elas quiserem. ‘Estamos prontas!’ como diz o próprio material feito pelo Instituto Marielle Franco e com a participação fundamental de Anielle. Mas é também sobre memória, porque sim, a Anielle traz também a figura de Marielle, mas não só da Marielle, mas das mortes de pessoas negras não solucionadas e esquecidas nesse país desde a época da ditadura até os crimes atuais. Agora, eu também penso como uma mulher da geração nascida na década de 1980 que, Anielle Franco como Ministra da Igualdade Racial, também significa a renovação. Sim, renovação do Movimento Negro e o movimento social dizendo que não vai morrer, que nós somos semente, que nós vamos continuar lutando pelas que vieram antes de nós, por nós e pelas que virão. A Anielle tem um trânsito entre as mais velhas, como a gente fala, e também as mais novas, e essa temporalidade agora se cruza, se transversaliza, o que é muito importante para a gente ter um país menos desigual, mais igualitário.” — Pâmella Passos
Amanda Mendonça: “Representante de Uma Nova Cultura Política”
Amanda Mendonça é professora da Faculdade de Formação de Professores da UERJ e militante feminista. Também é uma das autoras do livro Espaço Coruja: Pelo Direito das Crianças e das Mulheres. A formulação do Projeto de Lei do Espaço Coruja foi uma das ações de maior impacto emocional para Marielle Franco.
“O momento que estamos vivenciando, esse processo de retomada do nosso país, por si só já se apresenta carregado de muita emoção. Tem sido um processo de revisitar nossas histórias, nossas trajetórias e lutas. Um processo sofrido, mas ao mesmo tempo muito bonito. Mas isso ganha outra dimensão quando se trata de pensar no papel que Marielle cumpre diante de tudo isso. Sua execução e o fato de ainda não ter sido feito justiça sobre o caso tornou-se nestes quase cinco anos uma espécie de combustível para seguirmos, uma força para não desistirmos. Pode parecer clichê, mas sempre que estive nas ruas nos últimos anos eu via no olhar de quem também estava ali um sentimento compartilhado de vamos vencer, por nós, por todos nós, mas por ela em especial. Algo que a gente sente e não precisa ser dito. E durante todo este tempo, nós ouvimos a questão do legado, as disputas em torno do que isso significaria, a ideia de Marielle semente. Muitos foram os caminhos escolhidos e defendidos para preservar este legado. E para mim, cada um, da sua forma, tem seu valor. Eu escolhi registrar em textos os projetos que desenvolvemos com ela, contando como foi a Marielle parlamentar. Considero essa uma contribuição relevante para gerações futuras. Ainda sobre os caminhos escolhidos para preservar sua memória, seu legado (que para mim também constitui uma forma de fazer justiça), acredito que Anielle Franco escolheu uma forma muito bonita para fazer isso. Ela escolheu compreender mais a fundo o sistema e o país que executou sua irmã, para transformá-lo, como Marielle fez durante grande parte de sua vida. Anielle tem estudado, lido e produzido muito. É muito impressionante como ela se tornou um quadro político de primeira e de linha de frente, com enorme capacidade de formulação e diálogo. Ela, mulher preta, mãe, jovem, é pra mim um dos principais nomes do que considero [representante] de uma nova cultura política. E ver essa potência toda se tornar ministra torna aquele momento inicial que mencionei, ainda mais emocionante. Porque traz de alguma forma a sensação de vitória, tanto pelo simbolismo que significa ver o sobrenome Franco ser anunciado, como por ter uma mulher como ela se tornando ministra.” — Amanda Mendonça
Camila Moradia: “Luta que Vale a Pena”
Camila Moradia é uma das lideranças comunitárias da luta pelo direito à moradia e cria do Complexo do Alemão. Ela foi convidada para apresentar e anunciar a posse de Anielle Franco durante a solenidade.
“Assistir e participar da posse foi a materialização das lutas que acredito. Quando você quer muito algo e luta muito por aquilo e está acontecendo ali de fato se concretizando, você fica sem palavras. Eu me senti muito honrada e realizada não só em participar da posse como ser convidada para fazer a apresentação da Anielle… Enquanto mulher, preta, favelada, na linha de frente e à frente de muitos movimentos que mantêm tantas outras mulheres, como a Ani bem colocou: a gente não chega sozinha nesses espaços. São construções coletivas. Eu vi a realização da mudança da fotografia do poder que tanta gente queria. Quando a gente fala em ocupar espaços de poder, fala disso: de espaços reais de poder, mas também outros espaços. O quão importante era para nós termos a Ani sendo ministra, o quão importante é ter uma mulher preta. Eu recebi várias mensagens de várias mulheres falando que se sentiram representadas ali quando eu falava e apresentava a Ani. Então, assim, a gente tem que entender o que são esses espaços de poder e ocupar esses espaços.” — Camila Moradia
Flávia Cândido: “É a Ministra da Maré”
Flavinha Cândido é mãe, professora, mareense e coordenadora do projeto Maré 0800. Atua como defensora de direitos humanos e foi assessora da Vereadora Marielle Franco. Atualmente, é assessora parlamentar da Deputada Estadual Renata Souza (PSOL).
“Daqui a três meses vai fazer cinco anos que Marielle foi executada. E quando o Lula ganha as eleições… dá um sopro de esperança de descobrir quem mandou matar Marielle Franco, de saber quem mandou fazer o feminicídio político da Marielle. Quando o Lula começa anunciar os nomes da equipe de transição e cita alguns nomes de mulheres pretas incluindo da Anielle, eu faço um post e muitas pessoas [da Maré] vêm falar comigo. Eu vejo e vi o reconhecimento das pessoas da Maré. A alegria das pessoas é enorme. Falam: ‘olha o legado da Mari’, porque a Anielle faz parte desse legado. Mas não é só isso. Eu fui assessora da Marielle e tem uma fala dela que me marcou muito: quando ela afirma que dez anos antes dela ser vereadora, a única mulher preta que tinha sido era Benedita da Silva e, antes de Benedita, tinha sido Jurema Batista, também dez anos antes… É muito bom saber que outras mulheres, tanto da minha idade quanto da mesma geração dos anos 1980, que é geração de Mari, que é geração de Renata [Souza], que é geração da Anielle, podem se espelhar agora nesses espelhos de mulheres que estão galgando e chegando nesses espaços de poder. Não falo só de mim, mas também da minha sobrinha de cinco anos. Ela vai poder falar do legado da Marielle, mas também falar da Anielle, que é nossa ministra: a Ministra da Maré. Isso é muito representativo. Ela vai ser, na real já é, a referência para outras mulheres pretas mais velhas que abriram portas para a gente, agora, poder ter a Anielle como ministra. É muito importante aplaudir isso de pé porque ter uma mulher preta, favelada nesse local, é saber que a gente vai realmente combater o racismo. Principalmente, o racismo que assassina o tempo todo. Mata o tempo todo. Que mata um homem no Rio de Janeiro por conta de um pedaço de madeira confundido com um fuzil. A gente vai ter uma pessoa com quem possa contar para estar realmente fazendo algo e não velando o racismo. Podemos contar com ela para a construção de uma estrutura política real. Nesses cinco anos da não presença física da Mari, mas do seu luto transformado em luta, o dia da posse me trouxe esperança… Eu estou muito feliz. Anielle está super preparada! Que orgulho ela ter aceitado essa trincheira de luta.” — Flávia Cândido
Pâmela Carvalho: “Perspectiva de Presente e de Futuro”
Pâmela Carvalho é historiadora e coordenadora da Redes da Maré. É pesquisadora da cultura negra, comunicadora e produtora cultural, mareense e moradora da Maré. Ela descreve:
“Para mim, tem uma importância imensa ver Anielle Franco à frente de um ministério importante como o da Igualdade Racial. Tem uma representação de cunho simbólico e objetivo, pois eu sou uma mulher negra, moradora da Maré como ela. Ver a Anielle lá sendo uma mulher negra, pesquisadora, produtora de conhecimento e cria da Maré traz para mim uma perspectiva de presente… da construção no presente de uma série de políticas públicas que pensem a garantia de direitos das pessoas negras, mas também traz para uma perspectiva de futuro, pensando ser essencial que sejam reconhecidas [as] produções, os trabalhos, as identidades e a importância das mulheres negras, especialmente as negras, indígenas e mulheres racializadas de territórios de favelas. Porque a gente sabe que são esses territórios e mulheres que são socialmente marginalizados, precarizados e colocados à parte dos espaços em momentos de tomadas de decisão. Então, ver Anielle Franco, que é uma mulher negra com uma trajetória acadêmica, que se dedicou à produção de conhecimento desde muito tempo atrás, e que tem se dedicado também a produzir conhecimento para a sociedade brasileira, pensando especialmente mulheridades negras a partir do Instituto Marielle Franco [onde trabalhou com uma perspectiva de pensar políticas públicas para mulheres negras… produz(indo) metodologias de trabalho, pensa(ndo) essas trajetórias e a valorização do trabalho]… é ver a materialização de futuro.”
Pâmela Carvalho continua:
“Para mim, isso é inspirador! Demonstra como a gente sempre diz que ‘os nossos passos vêm de longe’. A gente tem uma perspectiva de passado, de construção e de um caminho plantado por várias mulheres negras. A gente tem essa perspectiva de presente, de construir este agora e é esse agora que vai abrir caminhos para um futuro, onde várias outras mulheres negras vão finalmente ocupar os seus devidos espaços de poder, local que já devíamos estar há muito tempo, porque a gente vem lutando há muito tempo para que esse caminho realmente seja aberto e ocupado por nós. Então, ver Anielle Franco como ministra me inspira e é mais um ponto, mais uma linha nessa história da luta e das conquistas das mulheres negras no Brasil.”
Sobre a autora: Tatiana Lima é jornalista e comunicadora popular de coração. Feminista negra, integrante do Grupo de Pesquisa Pesquisadores Em Movimento do Complexo do Alemão, atua como repórter especial no RioOnWatch. Cria de favela, negra de pele clara, mora no asfalto periférico do subúrbio do Rio e é doutoranda em comunicação pela UFF.