Hip Hop Promove Mudanças na Educação Pública da Baixada, Parte 2

"A Dança é uma Usina de Redução de Danos."

Cypher Kids com Zulu TecNykko. Foto: Beatriz Dias

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Esta é a segunda e última parte de uma matéria especial cuja pauta foi selecionada pelo 4° Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca (Associação Brasileira de Jornalistas da Educação) em parceria com o Itaú Social. Leia a primeira parte aqui.  

A primeira parte desta matéria discorreu acerca das origens do Movimento Hip Hop, e sobre a possibilidade de mudanças na estrutura de ensino e no cotidiano das unidades educacionais através do hip hop como ferramenta. A primeira parte trouxe à luz a atuação do hip hop, no âmbito educativo, dos projetos RapLab, do Instituto Enraizados, sediado em Comendador Soares, bairro periférico de Nova Iguaçu; e do Família Lanatanpa de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Nesta segunda parte, conheceremos o caso do Cypher Kids, também de Duque de Caxias.

O projeto Cypher Kids utiliza a dança para combater o preconceito racial e desenvolver o sentimento de pertencimento em sociedade. Segundo Diego Fábio dos Santos de Jesus, mais conhecido como Zulu TecNykko, rapper, DJ, professor de dança, presidente da Federação de Breaking do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Cypher Kids, a cultura de rua pode ser vista como uma “usina de redução de danos”. Ele explica que a dança, em particular o breaking e outros tipos de dança de rua, carrega uma expressão muito forte da estética, identidade e da filosofia da periferia. As artes urbanas debatem, em última instância, o lugar da cultura negra na sociedade e na escola. “A dança acaba sendo uma orientação para um processo de reencontro com a sua identidade afro-brasileira e adotamos diferentes perspectivas e estratégias que colaboram nessa reflexão”, explica Zulu.

Zulu TecNykko ensinando passos de hip hop para alunos de escola pública estadual. Foto: Beatriz Dias
Zulu TecNykko ensinando passos de hip hop para alunos de escola pública estadual. Foto: Beatriz Dias

Na linguagem do hip hop, Cypher é a roda de amigos que se forma nas batalhas de MCs e Kids refere-se à faixa etária de alunas e alunos (5 a 12 anos) atendidos pelo projeto desde 2015. Quem entra na sala de aula no galpão da Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro, um histórico bloco de carnaval, fundado em 1957, no Centro de Duque de Caxias, nem imagina que o grupo de crianças alegres e bagunceiras ali reunidas está em recuperação escolar. Mas não se tratam só de notas ruins a serem recuperadas no boletim escolar. Este é um processo pedagógico-terapêutico em curso, que visa desconstruir um histórico de violências.

DJ Zulu Tecknykko, coordenador do Cypher Kids
DJ Zulu Tecknykko, coordenador do Cypher Kids

Zulu explica a redução de danos causada pelo hip hop através da história de Lua, filha da artesã Fátima Oliveira. A menina é de pele branca com cabelo crespo, sua mãe é branca e o pai negro. Essa mistura étnica fez com que Lua sofresse bullying nas duas escolas que frequentou. “’Chegaram a pegar uma tesoura, dizendo que iam cortar o ‘cabelo ruim’ dela. Como crianças já são cruéis desse jeito?’, indigna-se Fátima”.

Lua ficou calada, arredia e engordou por causa da ansiedade provocada pelas agressões verbais. Entretanto, com as aulas de hip hop, a menina recuperou a desenvoltura e reconquistou a confiança em ser exatamente quem ela é.

“Nós a estimulamos a vencer obstáculos. Passei um movimento para ela, dei um prazo de uma semana para aprender a executar e dei o passo a passo de como ela faria. Se ela cumprisse aquilo, ela iria fazer outro movimento. Ela disse que não iria fazer, que era muito difícil. Aí eu falei com ela: ‘se você separar dez minutos do seu dia para ir treinando, você consegue. Em uma semana você é capaz’. Ela conseguiu, mas ao invés de dar os parabéns, eu só continuei a incentivar ela. Para dançar, é preciso ter uma vivência muito ampla de convívio social. Um dos princípios do hip hop é trazer a amizade entre os seres humanos, é você entender o próximo e respeitar a si mesmo. Quando tudo isso é levado desde muito cedo para as crianças, acaba-se com o problema e acabam virando grandes adultos.” — Zulu TecNykko 

Zulu TecNykko dançando com Cypher Kids em escola pública da Baixada Fluminense. Foto: Beatriz Dias
Zulu TecNykko dançando com Cypher Kids em escola pública da Baixada Fluminense. Foto: Beatriz Dias

Zulu também contou como precisou fazer um trabalho de pedagogia com as mães e pais dos alunos do Cypher Kids para se livrarem de certos preconceitos que carregam sobre dançar e sobre a cultura de rua.

Cypher Kids e Zulu TecNykko. Foto: Beatriz Dias
Cypher Kids e Zulu TecNykko. Foto: Beatriz Dias

“Às vezes, os próprios pais enfrentaram todo um conjunto de limitações e opressões só porque eram pobres e periféricos. Aqui, por causa desses ensinamentos que transmito, às vezes, os pais acabam encontrando círculos de amizade, empatia e companheirismo que nunca conseguiram encontrar em outros círculos, como o do trabalho, por causa da competitividade e da questão racial. Embora isso não seja o eixo do projeto, temos uma pedagogia que incorpora o pensamento de que dançar é um ato político. O hip hop salva mais vidas do que muito projeto governamental por aí.” — Zulu TecNykko

Com as performances das crianças e adolescentes sendo cada vez mais conhecidas nos arredores de Duque de Caxias, os convites foram se acumulando para além do município. Zulu conta a história do dia em que foi convidado para dar uma aula de dança para 30 adolescentes no Centro de Atendimento Intensivo de Belford Roxo (CAI-Baixada), uma unidade vinculada ao Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase). Embora soubesse da responsabilidade do compromisso, ele sabia que teria de mudar a metodologia, pois viu naquele convite uma oportunidade única de conscientizá-los.

“Eu já sabia que eles não iam querer dançar comigo. O plano pedagógico para esses jovens era muito engessado, tinha que fazer uma cartilha e tal. Eu pensei: ‘isso não vai dar certo’. Então, falei com a coordenadora do projeto educacional do Degase, que havia me convidado, e disse que teria de dar uma aula completamente diferente do planejado. Pedi que ela me emprestasse 30 folhas de papel e algo que pudesse escrever. Quando eles apareceram, pedi que cada um olhasse a folha de papel e perguntei o que eles estavam vendo ali. E eles disseram: ‘tô vendo nada’. 

Aí eu disse: ‘é isso mesmo. Esse é o nada, porque vocês não fizeram nada para mudar a vida de vocês, não construíram nada que os fizesse tirar vocês daqui’. Era para ser 40 minutos de aula, fiquei quase três horas conversando e aplicando algumas dinâmicas… Aí perguntei: ‘vocês querem aprender a dançar?’ A maioria respondeu que sim, porque eu trabalhei o foco deles. Eles não tinham nenhum foco. Era isso que deveria ser feito nas escolas públicas: os professores deveriam estudar a vivência dos alunos. Mas quem vai ter tempo de fazer isso, se os professores já adentram as salas de aula massacrados?” — Zulu TecNykko

Despreparo e Qualificação de Projetos 

Eduardo Prates é professor da rede pública de Duque de Caxias e de Nova Iguaçu
Eduardo Prates é professor da rede pública de Duque de Caxias e de Nova Iguaçu

Eduardo Prates é professor do Colégio Estadual São Bento, na região de Sarapuí, em Duque de Caxias, e também leciona nas Escolas Municipais Agroecológica do Vale do Tinguá e Prof. Osires Neves, ambas em Nova Iguaçu. Ele faz parte do quadro de sócios beneméritos da Lira de Ouro desde 2005. A partir de 2010, começou a estreitar a amizade com Zulu, que já conduzia, através do hip hop, intervenções em espaços públicos. Entrou em contato com o Cypher Kids e o projeto logo chamou sua atenção por ser apaixonante e por ter impacto na vida das crianças. O grupo desenvolve atividades que envolvem música, dança, expressões visuais, comportamento e consciência sobre o lugar que os jovens da periferia ocupam na cidade.

Entretanto, passados doze anos desde que iniciou sua aproximação com a cultura hip hop, Eduardo afirmou que a educação pública parece ainda não ter percebido que ela precisa ser mais bem implementada no ensino público. Sua eficácia encontra-se em incorporar no cotidiano escolar aquilo que os alunos vivem em seu dia a dia.  

“Muitos educadores e gestores públicos de educação ainda têm uma caixinha retrógrada em suas cabeças que enxergam o modelo de cultura escolar nos moldes clássicos, esquecendo que os alunos vindos da periferia não vão ter condições de igualdade quando precisam enfrentar todos os dias, inúmeras manifestações de racismo e segregação. 

A unidade escolar deve ser viva e refletir a realidade [da comunidade escolar]. Não podemos ficar mais no meio do caminho entre projetos inacabados, falta de diálogo entre as burocracias educacionais e as escolas, projetos pedagógicos não realizados e as muitas cobranças feitas aos professores e alunos, e um processo de aprendizado realmente transformador da realidade. Percebo que as iniciativas ainda são tímidas e dispersas. Faltam nas redes de educação da Baixada Fluminense mais ações que incorporem processos culturais, espaços de manifestações artísticas que promovam o diálogo entre a escola e a vivência cotidiana dos alunos.” — Eduardo Prates. 

Cleber Pacheco, professor do CIEP Nelson Rodrigues, em Nova Iguaçu, e um dos principais entusiastas e divulgadores do RapLab, concorda com Eduardo sobre a falta de representatividade na educação. Ambos Cleber e Eduardo apontam que falta às metodologias de ensino utilizadas atualmente nas escolas da rede pública lastro na cultura dos alunos.

“Acho que existe falta de vontade política. Precisamos de mais políticas públicas concretas e verdadeiras que reconheçam e valorizem os muitos movimentos realizados por professores que estão antenados com a cultura urbana, com as dinâmicas de produção cultural dos jovens negros da periferia.” — Cleber Pacheco 

Com a Palavra, as Secretarias Municipais de Educação 

A Secretária Municipal de Educação de Nova Iguaçu, Maria Virgínia Andrade Rocha, falou a essa reportagem, sobre a inclusão do hip hop nas escolas como política pública. Hoje, ela é responsável por uma rede que soma 144 unidades escolares e quase 67.000 alunos. 

Perguntada se a secretaria costuma incentivar a inserção de projetos que trabalhem com o movimento hip hop nas escolas da rede pública da cidade, ela afirmou que, desde que os projetos tenham “cunho político-pedagógico”, podem ser incluídos na rotina da escola. Principalmente em algumas escolas que possam ter, como a secretária colocou, uma “especificidade diferenciada… suas particularidades dentro daquela comunidade escolar”. 

“Vamos trabalhando de maneira lúdica, contextualizada, direcionada à especificidade da escola. Vamos ter esse olhar diferenciado. Às vezes, trabalhamos um projeto numa região e é um sucesso, mas em outra não é. Todos os projetos precisam ser trabalhados com a mesma intensidade em todas as escolas? Não. As pessoas são diferentes. Existem particularidades que precisam ser respeitadas, sendo elas culturais ou não”, explicou Maria Virgínia. 

Secretária Municipal de Educação de Nova Iguaçu Maria Virgínia Andrade Rocha
Secretária Municipal de Educação de Nova Iguaçu Maria Virgínia Andrade Rocha

Tendo em vista que os professores, como Cleber, veem no dia a dia a necessidade de incluir a cultura dos alunos na escola foi perguntada a Maria Virgínia se o órgão municipal tem se reunido com o sindicato dos professores ou outra instância de representação de classe, para consulta ou elaboração de alguma proposta de projeto pedagógico tendo como base a cultura hip hop na rede de Nova Iguaçu. Maria Virgínia afirmou que houve vários encontros, mas que o sindicato nunca fez uma proposta. 

Maria Virgínia também foi perguntada sobre quantos projetos ou programas educacionais tendo o movimento hip hop como base pedagógica foram desenvolvidos na sua gestão. Ela afirmou não ter esses números e disse que “precisaria fazer um levantamento junto às diretorias das unidades escolares”. 

Quatro dias depois da entrevista, apesar da promessa da secretária, não houve o envio de dados sobre os projetos. No entanto, apesar dela ter tomado posse em 2018, a Secretaria de Educação de Nova Iguaçu enviou uma nota, por meio de sua assessoria de comunicação, fornecendo informações que são de cinco anos antes do início da gestão de Maria Virgínia.

“Em 2013, a prefeitura recebeu, do governo federal, o programa Mais Educação. Com isso, foram realizadas diversas oficinas com foco na cultura local e valorização das artes das periferias. Entre as atividades, foi implementado o hip hop… A rede municipal de educação, então, organizou mostras culturais e apresentações entre as escolas, utilizando as letras do gênero para a conscientização social, ensinamento de valores e aproximação aos tipos de gêneros textuais, por meio da criação poética e crônicas das letras”, afirma a nota.

Vale ressaltar que o programa Mais Educação, decretado em 2010, foi uma estratégia do Ministério da Educação para construir uma agenda de educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino, visando ampliar a jornada escolar nas escolas públicas por meio de atividades opcionais como educação ambiental, esporte e lazer, cultura e artes. 

O programa foi remodelado em 2016, passando a se chamar programa Novo Mais Educação. De acordo com as atividades escolhidas, as escolas beneficiárias também poderiam receber conjuntos de instrumentos musicais e equipamentos para bandas de fanfarra e formação de grupos de hip hop. Segundo informações do site do Ministério da Educação, o programa atendia cerca de 1,1 milhão de estudantes em 7.483 escolas em todo o Brasil. Em 2019, foi extinto pelo governo Jair Bolsonaro.

Além disso, a nota da Prefeitura de Nova Iguaçu reconheceu a importância do hip hop na escola, apesar de restringi-la às aulas de inglês—denotando, assim, a subutilização pedagógica do hip hop em sua rede municipal. “O hip hop também foi importante para a disciplina de Língua Inglesa nas escolas. Isso se deu uma vez que termos comuns no contexto do hip hop se popularizaram entre os alunos, provocando a curiosidade em traduzir as palavras”. Não informou, no entanto, em quais escolas e em que período isso teria acontecido.

Nota da Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias

Depois de mais de duas semanas de negociação para uma entrevista presencial com a Secretária de Educação Roseli Duarte, a Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias optou por enviar para essa reportagem uma nota.

“Atualmente, alunos das escolas municipais: Vinte e Um de Abril, Professor Motta Sobrinho, Expedicionário Aquino de Araújo e Roberto Weguellin de Abreu têm aulas de dança, na modalidade hip hop. O projeto de dança Pequenos Passos e o programa Novo Mais Educação [estão] entre suas atividades”, afirma a nota. 

Ainda que haja, em algum grau, o reconhecimento por parte das secretarias municipais de educação de Nova Iguaçu e de Duque de Caxias de “processos de ensino-aprendizagem” ligados ao Movimento Hip Hop, ambas expressam preocupação de que projetos que envolvam a cultura hip hop precisem “atender interesses pedagógicos” antes de serem aceitos em sala de aula. A pergunta que se faz é: por que não atenderiam a essas expectativas?

Esta é a segunda e última parte de uma matéria especial cuja pauta foi selecionada pelo 4° Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca (Associação Brasileira de Jornalistas da Educação) em parceria com o Itaú Social. Leia a primeira parte aqui.  

Sobre o autor: Fabio Leon é jornalista, ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada.


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