Primeira Favela do Brasil Comemora 125° Aniversário com Café da Manhã Comemorativo pelo Galeria Providência [EVENTO]

Click Here for English

No sábado, 26 de novembro, o projeto Galeria Providência, fundado em 2017 e localizado no Mercado Popular Leonel de Moura Brizola, organizou um café da manhã para comemorar o 125° aniversário da primeira favela, originalmente o Morro da Favela, hoje Morro da Providência. O projeto trabalha com intervenções artísticas na comunidade, promovendo a ativação cultural no território a partir da pintura de murais de arte urbana e de ações de impacto local.

Em 2022, a Providência comemora 125 anos de existência e continua sendo um símbolo importante na história das favelas. Em relação à Central do Brasil, a primeira favela brasileira é localizada atrás do prédio do Comando Militar do Leste. Está no coração da região Portuária da cidade do Rio de Janeiro, no bairro da Gamboa.

Morro da Providência em 2022. Foto: Arne Müseler
Morro da Providência em 2022. Foto: Arne Müseler
Fotografia do Morro da Favela. Foto: Mozar Alves da Silva/Observador Econômico e Financeiro
Fotografia do Morro da Favela. Foto: Mozar Alves da Silva/Observador Econômico e Financeiro

Fundada no pós-Guerra de Canudos (1896-1897) pelos soldados que voltaram dos campos de batalha, a Providência era inicialmente chamada de Morro da Favela, nome de uma planta típica da região em que aconteceu a guerra, no sertão da Bahia, um arbusto baixo, rasteiro e espinhoso. Após a derrota de Antônio Conselheiro no arraial de Canudos, militares ex-escravizados que sobreviveram à guerra foram prometidos terras na então capital como pagamento por seus serviços. Ao chegar no Rio de Janeiro, ocuparam a área no entorno do então Ministério da Guerra, no centro da capital federal, enquanto esperavam as terras que nunca foram entregues. Com isso, se instalarem no morro atrás Ministério e o nomearam Morro da Favela em homenagem às terras onde haviam servido em guerra.

Pouco tempo depois, favela passou a denominar todas as ocupações espontâneas similares em busca de garantir o direito à moradia e a simbolizar territórios de resistência, que sofrem historicamente com a negligência do Estado brasileiro. Hoje, há favelas em todas as regiões do Rio e em todas as cidades do Brasil.

Para reforçar essa importância histórica da favela em que moram e o protagonismo dos moradores nesses 125 anos de luta por moradia, o Galeria Providência organizou um café da manhã para comemorar o 125° aniversário da Providência. O evento contou com a participação de moradores, lideranças locais e parceiros do projeto. A atividade se baseou na participação de todos os presentes, mas especialmente dos moradores. Conduzido como um bate-papo, puderam contar suas histórias no evento, e compartilhar sentimentos e experiências de sua vivência no morro.

Morro da Favela, por Tarsila Amaral, 1924.
Morro da Favela, por Tarsila Amaral, 1924.

Moradora da Providência há mais de 60 anos, Luzia dos Santos Pinto Viana Martins, mais conhecida como Dona Luzia, foi uma das primeiras a falar e compartilhar sua história. Ela começou contando sobre sua infância e que os moradores precisavam se deslocar com latas e baldes até onde hoje está localizado o Sambódromo, para pegar água e levar para suas casas.

Não havia água encanada na Providência e, por isso, Dona Luzia relatou que, mesmo sendo criança, aprendeu a equilibrar o balde d’água na cabeça sem as mãos, para que pudesse dançar no trajeto de volta para a favela. Ainda em sua fala, bastante emocionada, Dona Luzia diz que se orgulha de morar na Providência e que é gratificante ver o crescimento da favela ao longo do tempo.

“Dentro da Providência nós fomos crianças felizes. Tínhamos as nossas dificuldades, mas éramos felizes… Nós vimos a transformação da Providência. O local onde havia os barraquinhos foi dando lugar a outras casas, que foram subindo. E nós vimos a Providência crescer e se tornar essa favela gigante que é hoje. Eu me orgulho de morar aqui. Nós sobrevivemos a todas as dificuldades.” — Dona Luzia

Roda de Conversa, parte da atividade do Café Comemorativo. Foto: Juliana Pinho
Roda de Conversa, parte da atividade do Café Comemorativo. Foto: Juliana Pinho

Em seguida, refletiu sobre o orgulho sobre seu território, que vem crescendo entre os moradores com o passar do tempo, à medida que a estigmatização diminui, muito em virtude da luta dos movimentos de favela e da consequente mudança, em algum grau, da narrativa midiática sobre as favelas.

“A gente vai seguir em frente sabendo que temos uma mão para segurar. Antigamente não tínhamos isso. Ninguém queria subir a Providência. Falava da Providência antigamente, ninguém queria visitar. Quando chegávamos em determinado lugar, nossos pais nos cutucavam porque não podíamos falar que morávamos na favela. A gente não tinha esse orgulho de falar ‘eu moro na Providência’, ‘eu sou da Providência’. E hoje eu vejo as crianças, a minha neta de quatro anos, quando perguntada onde mora, sempre responde ‘eu moro na Plovidência, poxa’. A gente não tinha isso antes.” — Dona Luzia 

No entanto, ela pondera que esse orgulho só não é maior por causa das imensas dores pelas quais são obrigados a passar. Sendo moradora da Providência há tantos anos, houve muitos momentos difíceis e ela se lembra de cada um deles. Ela disse: “Os anos passaram, mas lá atrás ficou uma marca, uma cicatriz para nós que vivemos… Poder contar a história de como era a Providência lá de antigamente é gratificante porque as crianças olham e não conseguem imaginar”.

Foi o desejo de uma Providência cada vez mais forte e visível aos olhos do resto da cidade que impulsionou Hugo Oliveira a idealizar o Galeria Providência. À época, em 2017, o morro vivia problemas em decorrência das obras na região portuária em função da criação do Porto Maravilha. Por conta da revitalização da área, foram instalados museus, murais e pinturas no asfalto enquanto, como conta Hugo: “a única coisa que chegou aqui foi um teleférico que a gente não tinha pedido”.

“Então eu comecei a tentar chamar a atenção do território como parte da Pequena África, como um destino do turismo local já que tem tanta coisa acontecendo por aqui. A gente tem muitos patrimônios que estão na Providência, como a Casa de Machado de Assis, a Escadaria Rego Barros, bens que foram tombados… Então, quando a gente começou a fazer esses eventos dentro do morro, a ideia era tentar aproximar as pessoas da cidade e fazer essa discussão sobre o que é a cidade. Os direitos que a gente tem, também. Enquadrar a Providência dentro desta cidade. E lá se vão seis anos e este ano a gente pensou, especificamente, em fazer um café da manhã para juntar lideranças do território e poder falar uns pros outros, re-energizar e ver como dar continuidade ao trabalho que vinha sendo feito antes.” — Hugo Oliveira

Durante o café da manhã, os presentes cantaram parabéns e repartiram um bolo de aniversário em homenagem a Providência. Foi um momento especial, de muita comemoração e alegria para aqueles crias que estavam ali, carregando com tanto orgulho a memória e a história daquele território.

Após a atividade, Fernando Zullu, líder social e articulador territorial do Galeria Providência, contou um pouco mais sobre o objetivo do espaço. “O Galeria hoje vem crescendo, a ideia é fazer um museu de território. Então, o Galeria vem transcendendo dentro dessa ideia de fazer as intervenções. A gente traz o urbanismo tático como uma das grandes soluções da favela”.

Roda de Conversa do Café Comemorativo dos 125 anos da Providência. Foto: Juliana Pinho
Roda de Conversa do Café Comemorativo dos 125 anos da Providência. Foto: Juliana Pinho

Fernando explicou que o conceito de urbanismo tático parte da ideia de fazer uma intervenção urbanística sem depender do Estado, o que a favela é por natureza. Grupo busca fazer isso ocupando, por exemplo, um espaço que era degradado, transformando-o num parque cheio de decorações e com uma grande presença artística visual. “A partir desse momento, as crianças passam a ter um lugar que elas possam brincar”, completou Fernando.

“Esses 125 anos foram construídos por gerações de moradores, nossos antecessores, nossos avós, nossos pais, nossos vizinhos mais velhos. E a gente resolveu fazer um café da manhã comemorativo, onde a gente pudesse ter essa troca, essa energia de reviver esse sentimento de pertencimento, de ser morador, de ser parte da história. Ouvir esses moradores que fazem [história], que são protagonistas não só das suas próprias histórias mas de uma coletividade também. Os moradores que não costumavam falar em público, trazer eles para esse lugar. E que fosse um dia de celebração. Então, poder ouvir os moradores conversando, falando, se posicionando foi muito legal. A gente repara que o Morro da Providência é um morro feminino, né? As mulheres são as que comandam aqui. É um morro de matriarcado, desde a época da Pequena África com a Tia Ciata.” — Fernando Zullu

Fernando compartilhou também a sua visão sobre a situação atual da Providência e como a realidade pode ser mudada pelos próprios moradores em movimento.

“Quando eu era moleque, eu esperava que um tiozão ia vir resolver todos os problemas, ia resolver tudo, sabe? Aí eu fui crescendo e fui percebendo que esse tiozão não apareceu, né? E aí eu me dei conta que não vai ter um tiozão. Que o tiozão tem que juntar com a tiazona, com os primos e geral se juntar e fazer. Porque se o próprio favelado não meter a mão e fizer, não vai acontecer.” — Fernando Zullu

Morro da Providência visto do projeto Galeria Providência. Foto: Juliana Pinho
Morro da Providência visto do projeto Galeria Providência. Foto: Juliana Pinho

Sobre a autora: Juliana Pinho é moradora da Nova Holanda, no Conjunto de Favelas da Maré, socióloga (UFRJ) e estudante de Jornalismo (UCAM). Comunicadora popular e mobilizadora territorial, Juliana é co-fundadora da Frente de Mobilização da Maré, integrante da Agência Palafitas e responsável pela gestão e planejamento do projeto Pra Elas. Atualmente, atua também na área de gestão de portfólio da Luta pela Paz e é redatora do portal Entretetizei.


Apoie nossos esforços para fornecer apoio estratégico às favelas do Rio, incluindo o jornalismo hiperlocal, crítico, inovador e incansável do RioOnWatchdoe aqui.