A Leitura e a Literatura Como Direitos Humanos: O Trabalho de Mediadoras de Leitura do Rede Baixada Literária em 20 Bibliotecas Comunitárias de Nova Iguaçu

Bate-papo com Autora na Biblioteca Comunitária Judith Lacaz. Foto: Nathália Cabral
Bate-papo com autora na Biblioteca Comunitária Judith Lacaz. Foto: Nathália Cabral

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Composta por 20 bibliotecas comunitárias em bairros periféricos de Nova Iguaçu, a Rede Baixada Literária—coletivo formado exclusivamente por mulheres—atua desde 2011 na luta pela formação de leitoras e leitores críticos e na transformação das realidades das comunidades por meio da leitura e da literatura. Neste Dia Internacional dos Direitos Humanos, entrevistamos quatro mediadoras de leitura da Rede Baixada Literária: Mônica Verdan, Natália Reis, Ana Paula Rodrigues e Isabel Silva.

Poesia ao pé do ouvido. Foto: Nathália Cabral
Poesia ao pé do ouvido. Foto: Nathália Cabral

As bibliotecas comunitárias de Nova Iguaçu entendem o acesso à literatura como um direito humano e, nesse sentido, exercem um papel importante na discussão e formação de uma sociedade leitora. Entre suas ações estão empréstimos de livros, jogos literários, contação de histórias, bate-papo com autores, saraus, rodas de leitura, clube do livro e mala volante—atividade onde as leitoras e leitores põem livros em uma mala e saem da biblioteca em direção à casa de outras leitoras e leitores.

Bibliotecas Comunitárias e Direitos Humanos

O sociólogo e crítico literário Antonio Candido defendia que o direito à literatura é um direito básico, assim como à alimentação, moradia, vestuário e saúde. Em seu ensaio O Direito à Literatura, Candido afirmou que arte e a literatura se manifestam “desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance… ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, da literatura concebida no sentido amplo… parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito… podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações”.

No entanto, Mônica, 53, articuladora de mobilização de recursos e parcerias da Rede Baixada Literária, diz que é exatamente a violação de direitos que catalisa as ações dessa rede.

“A história das bibliotecas comunitárias começa com o sentimento e a experiência de ter direitos violados. A partir da compreensão de que a leitura e a literatura [são] um instrumento de formação do conhecimento, de construção da liberdade, da criatividade e da autonomia, [fazemos essa] conexão com os direitos humanos. E essa reflexão potencializada com a filosofia de Paulo Freire e Antonio Candido foi afirmando a nossa concepção. Se algo é essencial para a vida de alguém de forma positiva, se torna essencial para a vida de todos. Isso é direitos humanos.” — Mônica Verdan

Contação de histórias no Ocupa Literatura (atividade da Rede Baixada Literária). Foto: Nathália Cabral
Contação de histórias no Ocupa Literatura (atividade da Rede Baixada Literária). Foto: Nathália Cabral

A mediadora de leitura Isabel Silva, 20, explicou que a base do trabalho nas bibliotecas comunitárias é a metodologia Programa Prazer em Ler (PPL), voltada para desenvolver sentimentos de pertencimento e acolhimento nos pequenos leitores. Ela descreve a metodologia como “uma tecnologia social construída em nove eixos norteadores para as ações das bibliotecas comunitárias, sendo eles: Gestão Compartilhada, Comunicação, Mobilização de Recursos, Incidência em Políticas Públicas, Enraizamento Comunitário, Espaço, Acervo, Mediação de Leitura e Articulação. Todos eles são colocados em prática através de um plano de trabalho, que direciona as ações das bibliotecas e que é construído e executado pela equipe que integra o coletivo.”

Mediação de Leitura. Foto: Nathália Cabral
Mediação de leitura. Foto: Nathália Cabral

“Para mim, um dos pontos que nos difere é a forma como proporcionamos ao público uma autonomia dentro das bibliotecas. Em nossos espaços, incentivamos que os leitores participem ativamente de diversos processos que ocorrem no dia a dia, com o intuito de que eles desenvolvam o sentimento de pertencer, de se identificar e de se encontrar dentro deste ambiente. As bibliotecas comunitárias da rede surgem com esse intuito, de serem espaços de acolhimento e construção de saberes, localizados em áreas descentralizadas e periféricas, onde os direitos básicos muitas vezes não chegam.” — Isabel Silva

A mediadora Ana Paula, 37, comentou que “a biblioteca [comunitária] é um equipamento de leitura e práticas culturais, de acolhimento e de muitos saberes, na maioria das vezes o único lugar de informação de um bairro. Somos importantes para a formação de leitores e cidadãos”. E acrescentou: “Todo cidadão tem direito a uma literatura de qualidade, não somente didática e informativa. Quem tem acesso à literatura consegue enxergar melhor“.

Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas de Nova Iguaçu (PMLLLB/NI)

Parada do Livro passando pelo calçadão de Nova Iguaçu. Foto: Nathália Cabral
Parada do Livro passando pelo calçadão de Nova Iguaçu. Foto: Nathália Cabral

A Lei 4.439/2014 instituiu o Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas de Nova Iguaçu, sendo o primeiro Plano Municipal no país com previsão orçamentária. Para Mônica, o PMLLLB é uma grande conquista, mas a maior realização da rede é atrair novos leitores para as bibliotecas comunitárias. “Atuamos com ênfase na incidência de políticas públicas do livro na perspectiva de uma política efetiva na cidade de Nova Iguaçu… O acesso à literatura, historicamente, é elitista e exclui a população mais vulnerável. Atuar nos bairros periféricos é uma forma de reconstruir histórias, de romper com a bolha da exclusão e com estigmas que se perpetuam por anos no discurso de que povo brasileiro, como os periféricos, não gosta de ler. O grande problema está no acesso e na manipulação para que não haja pensamento crítico nas camadas mais vulneráveis da sociedade”, comentou Mônica.

Sobre isso, a mediadora de leitura e articuladora de incidência em políticas públicas Natália Reis, 30, ressaltou a importância e a capilaridade das ações das bibliotecas comunitárias, lembrando, inclusive, de sua própria formação enquanto leitora e cidadã.

“Infelizmente ainda ouvimos falar que o brasileiro não gosta de ler. Mas entendemos que, na verdade, não há muito acesso. Normalmente as atividades culturais acontecem de forma centralizada. As bibliotecas comunitárias fazem o trabalho inverso, dando acesso a essas comunidades a um espaço organizado, com acervo de qualidade, mediadoras de leitura preparadas para receber o público, não somente com técnicas, mas também com afeto. Quando eu era criança, fui leitora de uma das bibliotecas comunitárias da rede e o trabalho que eu realizo hoje, alguém já fez comigo. Essa roda gira e queremos que sempre tenha força para continuar girando e que chegue em muitas outras comunidades.” — Natália Reis

Parada do Livro na Praça dos Direitos Humanos. Foto: Nathália Cabral
Parada do Livro na Praça dos Direitos Humanos. Foto: Nathália Cabral

A Rede Baixada Literária também é uma das responsáveis pela realização da Festa Literária de Nova Iguaçu (FLINI), que tem como objetivo a democratização do acesso ao livro, à leitura e à literatura, integrando as expressões artísticas e valorizando a cultura local. Algumas outras realizações foram o curso de extensão sobre Letramentos e Direitos Humanos, em parceria com a professora Adriana Carvalho Lopes da UFRRJ, o projeto Livros para Voar, em parceria com a Fundação Educacional e Cultural de Nova Iguaçu (FENIG), e a Parada do Livro. Todas foram ações realizadas no espaço público, sob o PMLLLB de Nova Iguaçu.

A Rede Baixada Literária é a concretização da luta e da resistência dessas mulheres mediadoras de leitura pela propagação e circulação da literatura como direito básico, pois como comentou Natália, “a literatura estimula e alimenta nossa imaginação, que é a essência da nossa humanidade, provoca e possibilita o exercício da alteridade, a medida em que nos coloca no lugar do outro, e contribui no desenvolvimento do nosso repertório linguístico, aumentando nossa capacidade de comunicação. Além disso tudo, nos propicia conhecer o desenvolvimento do mundo e os conhecimentos produzidos ao longo da história”.

Parada do Livro na Praça dos Direitos Humanos. Foto: Nathália Cabral
Parada do Livro na Praça dos Direitos Humanos. Foto: Nathália Cabral

Recentemente, a Rede Baixada Literária conseguiu a Emenda Parlamentar Nossa Escolha, propondo a realização de ações de mediação de leitura, programação cultural, aquisição de acervo físico e manutenção das atividades em algumas das bibliotecas comunitárias. No entanto, aguarda-se ainda o depósito em conta da verba conquistada e, caso demore, em 2023, as bibliotecas comunitárias terão que reduzir seu orçamento e período de funcionamento, contando apenas com a ajuda de voluntários.


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