Click Here for English
No centenário do desmonte do Morro do Castelo (1922), resgatamos a memória desse extraordinário e muitas vezes esquecido personagem da história do Rio de Janeiro. Dotado de historiografia própria, suas encostas testemunharam, durante séculos, a dor de se buscar domar a miséria, a escravidão, o desenvolvimento econômico desigual e a rápida urbanização da cidade. Em 1922, no ano do centenário da Independência do Brasil (1822), impulsionado por um ímpeto modernizador e higienista que visava europeizar a capital do Brasil à época, houve o arrasamento completo do morro. Portanto, há 100 anos, foi demolido um dos marcos de fundação da cidade: o Morro do Castelo.
O arrasamento do Morro do Castelo pariu novos deserdados da cidade. Aos removidos, em sua maioria de classes populares, restaram os cortiços, o subúrbio ou as ocupações das encostas dos morros, sobretudo do Centro e do subúrbio da Zona Norte. Esse processo é parte de uma tendência observada ao longo do século XX, de auto-organização das classes populares para suprir suas necessidades negligenciadas pelo Estado. Na luta por moradia, a população criou novas formas de habitar e de viver a cidade. A favela é uma dessas soluções.
De Marco da Cidade à Marca de Atraso
Inicialmente, este morro do Centro do Rio foi chamado de Morro do Descanso, dado à dificuldade que foi a sua conquista e colonização. Abrigo de um dos principais fortes portugueses na Baía de Guanabara, o Forte de São Tiago da Misericórdia, o Morro do Castelo foi, além do segundo e definitivo berço da criação da cidade e núcleo irradiador da ocupação urbana do Rio, peça fundamental na defesa contra invasões estrangeiras. No entanto, sua era de ouro acabou em escombros. Pode-se dizer que, apesar de não ser nem o primeiro, nem o último arrasamento de morros no Rio, o desmonte do Castelo moldou a urbanização carioca do século XX.
“Puseram um grande e velho morro abaixo e uma nova cidade, a cidade branca, surgiu—dirão daqui a alguns anos os cronistas futuros do Rio de Janeiro, referindo-se ao ano da graça de 1922. O velho Castelo agoniza… Vai, pouco a pouco, se esvaindo em terra para o mar, e uma nova cidade, toda branca como uma virgem, vem aparecendo rapidamente no terreno ainda revolto e ainda vermelho do aterro gigantesco! Do bojo enorme do moribundo, entre o bairro sangrento, como num parto monstruoso, vão saindo os elementos da existência da nova cidade!… Teremos, então, a cidade branca. A cidade do futuro. Não a cidade do futuro, ou melhor, futurista, concebida pela imaginação fantástica dos engenheiros americanos… Não. A cidade branca não será uma cidade norte-americana; será uma cidade pura e simplesmente brasileira… E ao lado da velha cidade, decrépita e gasta, que sempre pensou com o cérebro alheio, que sempre imitou instituições dos outros,… ao lado da velha cidade, ignorante e pernóstica, que bebe chá às cinco, porque Londres assim o faz, e toma ares displicentes porque Paris assim o ordena… que venha a cidade branca e brasileira! Ela há de ser muito é esperada! E com ela uma nova era!… Mil novecentos e vinte e dois há de ser uma data e um marco.” — Benjamin Costallat
No trecho acima, da crônica A Cidade Branca, Benjamin Costallat criticou a derrubada do berço da cidade, a perda da capacidade de pensar por si por parte dos governantes da nação, além do incômodo pela ideia de higienização de sua área central, local de negros, pobres e favelados. Costallat evidenciou que o problema urbano ultrapassava os habitacionais e de circulação pela cidade. Estava em voga um novo modelo de civilização a ser implementado. De acordo com Costallat o arrasamento do Morro do Castelo foi resultado da necessidade de apagamento do passado em busca de atingir este modelo. Apesar de ser o maior e mais conhecido arrasamento de morros do Centro, outros tiveram o mesmo destino, como o Morro do Senado, onde hoje é a Praça da Cruz Vermelha.
A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, primeiro nome da cidade do Rio, tem em sua topografia uma marca indelével, reconhecida mundialmente: morros e áreas alagadas. Situada entre o mar e as encostas de morros que acolhiam os seus primeiros habitantes e emoldurava a chegada dos novos, veria, ao longo dos séculos, a sua topografia ressignificada, os altos e as áreas de baixada transformados em fronteiras de discriminação, hierarquização social, econômica e racial.
A cidade foi fundada em 1565 no Morro Cara de Cão, situado na entrada da Baía de Guanabara, vizinho ao Morro da Urca. No entanto, o Rio de Janeiro contou com a sua segunda e definitiva instalação em 1567, no alto do Morro do Castelo, ponto estratégico para a manutenção do poder português. A escolha da nova sede da cidade deveu-se ao fato do morro estar em frente à Ilha de Villegagnon, onde havia uma colônia francesa que ameaçava o domínio português da cidade. O Morro do Castelo era um lugar estratégico para estruturar as defesas de maneira mais firme, caso houvessem novas tentativas de invasão.
Durante séculos, a cidade do Rio de Janeiro foi importantíssima para o desenvolvimento da colônia portuguesa. Contudo, a chegada da família real em 1808 consolidou definitivamente a centralidade cultural, política e administrativa do Rio dentro do Império Português. O Brasil passou, então, de um importante entreposto comercial, de colônia e porto escravagista, a um reino, igual em status a Portugal. O Rio de Janeiro tornou-se a capital do Império Português e depois, a partir de 1815, do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. De 1808 até a Revolução Liberal do Porto (1820-1821), o Rio de Janeiro foi a única capital europeia fora do continente europeu. Seja enquanto a cidade foi capital da colônia, do Império Português, do Império Brasileiro ou da República do Brasil: o Morro do Castelo foi ponto estratégico e coração da cidade desde o século XVI.
Nos anos 1920, a população brasileira viveu um período de grande efervescência e transformações em suas paisagens urbanas, especialmente no Rio de Janeiro, então capital do país. A tentativa de apagamento da imagem colonial e o anseio de transformar o Rio em uma “Paris dos Trópicos“, propiciou mudanças físicas, como a derrubada de morros, cortiços e edifícios que foram vistas como destoantes da nova imagem europeizada de capital. Foi nesse momento, em uma tentativa de apagar a imagem colonial e atrasada do país, que o Morro do Castelo voltou a ser visto como ponto estratégico para o projeto de cidade.
O pico deste processo ocorreu na administração de Rodrigues Alves (1902-1906), presidente da República, e do engenheiro Francisco Pereira Passos (1902-1906), prefeito do Rio de Janeiro, apontado pelo presidente para o cargo. Ambos acabaram entrando para a história pelas drásticas intervenções feitas na paisagem urbana carioca, inspiradas na modernização de Paris realizada por Georges-Eugène Haussmann e Napoleão III. É do período Alves-Pereira Passos a construção da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, Biblioteca Nacional, Teatro Municipal, Escola de Belas Artes, entre outros. O governo de Passos ficou conhecido pelo “bota-abaixo”, já que durante o processo de modernização, destruiu centenas de construções, edifícios históricos e moradias.
Nesse contexto, as ocupações, assentamentos informais, cortiços e favelas eram entendidos como problema urbanístico, como desajuste social. Seus habitantes, negros e pobres, herdaram o estigma de classe perigosa dado pelas elites. Assim, a favela, presente na cena urbana carioca há pelo menos duas décadas em 1922, era vista como alvo de repressão, controle e higiene, únicas políticas públicas voltadas a estes lugares.
As ideias higienistas, eugenistas e racistas propagandeadas pelos jornais no século XIX, baseavam-se na noção de progresso que movia vários países da Europa nos séculos XIX e XX. Segundo estas teorias, o Brasil precisaria ser “melhorado”, através do aprimoramento racial, com incentivo da imigração europeia para que a raça brasileira se purificasse dos seus elementos indígenas e africanos. Entendia-se que essa “regeneração” se daria pelo embranquecimento, pela miscigenação, e por políticas públicas higienistas que objetivavam imprimir novos hábitos na população.
Tendo a cidade sido historicamente assolada por uma série de epidemias, perspectivas higienistas atravessavam o discurso das autoridades e da elite carioca, utilizando-as como justificativa para remover os cortiços do Centro do Rio de Janeiro. Nesse período, diversos sanitaristas indicavam a necessidade da remoção de morros, aterramento de mangues, alargamento de ruas e a aplicação de códigos de conduta civil como medidas de saúde pública. O higienismo se concentrava em culpabilizar os pobres e suas habitações pelas condições insalubres das cidades e pela disseminação de doenças.
O Higienismo, o Morro do Castelo e a Exposição Universal de 1922
A comemoração do Centenário da Independência do Brasil, em 1922, trouxe à tona a ideia de fazer do Rio de Janeiro um modelo do progresso nacional. Para provar sua modernidade e capacidade de realização ao mundo, o governo brasileiro e carioca decidiram organizar uma exposição universal como atividade comemorativa dos 100 anos de Independência do Brasil. Portanto, também para abrir espaço para a exposição universal, o Morro do Castelo foi destruído, a enxadadas, explosões e poderosos jatos de água.
“O Presidente Epitácio Pessoa (1919-1922) decidiu realizar uma exposição internacional para marcar a data e apresentar o Brasil ao mundo como uma república moderna e civilizada… O modelo do ambicioso projeto eram as exposições internacionais europeias do século XIX, principalmente as de Londres (1851, 1862) e Paris (1878, 1889). Nesse contexto, o país-sede recebia nações expositoras, apresentava a produção nacional e, sobretudo, demonstrava internacionalmente a capacidade do Estado de modificação do espaço urbano. Tradicionalmente, essas exposições incluíam radicais transformações nas cidades: abertura de avenidas, transposição de rios e lagos, aterramentos etc. Momento chave para modernização do Brasil.” — Flávio Moraes
Em 1921, mais de 5.000 pessoas residiam no Morro do Castelo. Até mesmo os grupos que defendiam a permanência do morro, como no caso do Jornal do Brasil, destacavam apenas o valor histórico do local e a necessidade de conservação da tradição arquitetônica. O direito à moradia não foi colocado em debate, exceto no caso do escritor Lima Barreto, em sua crônica Megalomania, publicada na Revista Careta, em 1920.
Os Registros do Desmonte do Morro do Castelo e a Fotografia de Augusto Malta
O alagoano Augusto Malta (1864-1957) foi o principal fotógrafo da urbanização do Rio de Janeiro nas três primeiras décadas do século XX, período de acelerada e traumática modernização. As fotografias são espaços de memória, onde se pode observar as contradições do processo de modernização de uma cidade através de seu passado. Em 1900, Malta iniciou suas atividades, sendo nomeado, em 1903, fotógrafo oficial da Prefeitura do Rio de Janeiro, cargo criado para documentar o andamento do gigantesco projeto de Pereira Passos. Ao longo de mais de 30 anos, ele documentou grandes eventos e os aspectos mais cotidianos da vida na cidade.
Malta registrou construções, demolições, intervenções em logradouros, praças e edifícios históricos, além de personagens da cidade. Suas fotos foram utilizadas nas primeiras publicações ilustradas, como as revistas Fon-Fon e Careta, além de em cartões postais. Flávio Moraes, cientista social e cineasta, em entrevista, compartilhou parte da pesquisa para o desenvolvimento do projeto Exposição Universal pelas Fotografias de Augusto Malta, selecionado pelo Museu da Imagem e do Som, em 2022:
“Malta registrou os expulsos do Centro da Cidade: seus imóveis, hábitos e principalmente a pobreza logo após o processo de abolição. Esses registros foram utilizados como provas científicas da insalubridade dos imóveis a serem removidos. Os excluídos da modernização do Rio de Janeiro, os que, para conseguir moradia, subiram os morros da Zona Sul ou se locomoveram para o subúrbio, foram as mesmas pessoas que construíram os prédios e removeram morros inteiros do Centro do Distrito Federal.” — Flávio Moraes
A história do Rio de Janeiro e do Brasil sempre estiveram intrinsecamente conectadas, inclusive na forma com que se deu a ocupação do solo; da cidade como ponto garantidor da soberania portuguesa; como o principal porto de entrada de escravizados até o início do século XIX; na importância estratégica da Baía de Guanabara para as rotas marítimas, contribuindo para o comércio marítimo e acumulações de riquezas que séculos depois permitiriam a estruturação da teia de poder e de acumulação econômica na cidade.
“O Prefeito Carlos Sampaio comparava o Morro do Castelo a um dente cariado na linda boca da Baía de Guanabara. Com o arrasamento do local, a cidade perdeu diversos patrimônios históricos: a Igreja de São Sebastião, o Colégio dos Jesuítas, a Casa dos Pretos (onde ocorriam rituais religiosos afro-brasileiros), o Relógio da Torre e o Observatório Astronômico. A obra teve financiamento de um banco europeu e, no final das contas, custou muito mais do que o previsto. Para resolver o superfaturamento, Sampaio fez novos empréstimos com bancos estrangeiros e deixou a cidade com grandes dívidas. Ao mesmo tempo, o prefeito foi acusado de corrupção porque era um dos sócios da empresa que recebeu a concessão para demolir o morro.” — Flávio Moraes
O Morro do Castelo exerceu sua presença e importância na história carioca e brasileira durante séculos. Contraditoriamente, foi em nome do desenvolvimento urbano e atendendo a interesses econômicos e políticos, que ele foi eliminado geograficamente da paisagem em 1922.
A Primeira e a Última: O Que Ainda Permanece do Morro do Castelo
A Ladeira da Misericórdia, rua do centro do Rio, foi uma das primeiras vias abertas para aqueles que subiam o morro a partir de seu sopé, ainda no início da colonização da cidade. A rua pioneira do Morro do Castelo foi também a única parte do morro que não foi arrasada. Teve um pequeno trecho preservado. Atualmente, ocupa um pequeno espaço de calçamento ao lado da Igreja Nossa Senhora do Bonsucesso e da Santa Casa da Misericórdia. Em 2017, teve seu tombamento decretado pelo IPHAN, devido à sua importância enquanto vestígio da predatória e rápida urbanização da cidade do Rio de Janeiro.
Além da Ladeira da Misericórdia, o Morro do Castelo permanece até hoje na paisagem carioca pelo fato de a região onde ficava o morro—entre a atual Avenida Rio Branco, a Santa Casa de Misericórdia, a Praça XV e a Igreja de Santa Luzia—continuar a ser conhecida pelos cariocas como Castelo. Mesmo aqueles que desconhecem a história desse marco histórico apagado da geografia do Centro, revivam sua memória no dia-a-dia da cidade. Até mesmo os ônibus que vão para essa região têm como destino o Castelo, o morro que não existe mais.
Sobre os autores:
Antônio Bispo é historiador pelo Instituto de História da UFRJ, mestre em História Comparada pelo PPGHC-UFRJ e doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ.
Arthur Peluso é fotógrafo documental, historiador pelo Instituto de História da UFRJ e mestrando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ.
Flávio Moraes é cientista social, mestre em História Comparada pelo PPGHC-UFRJ e mestrando em Cinema e Audiovisual pela UFF.
Mayara Tosta é historiadora pelo Instituto de História da UFRJ e mestranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ .
Wladimir Valladares é pedagogo, administrador público pela UFF, especialista em gestão pública e mestrando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ.
Barbara Gigante é gestora pública pela UFRJ e mestranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ.