Click Here for English
Preocupados com a situação de abandono do Pedacinho do Céu, na parte alta do Morro do Turano, Zona Norte do Rio, moradores e ex-moradores revitalizaram o local onde a comunidade foi fundada, há cerca de 90 anos.
Há algum tempo, temos ouvido falar em mudanças climáticas, suas causas, consequências e o quanto é importante preservarmos o meio ambiente, temas que têm preocupado ambientalistas e autoridades do mundo todo. Aqui no Brasil, têm sido abordado também o racismo ambiental, já que as pessoas mais atingidas pelas mudanças climáticas são aquelas que vivem nas favelas e periferias, com deslizamentos de encostas, transbordamento de rios poluídos e assoreados em dias de chuva forte. Com o lixo descartado sem a coleta adequada oferecida pelo Estado, os resíduos entopem bueiros e valas, poluem os rios, córregos e nascentes, causando alagamentos e inundações nos períodos chuvosos.
Na cidade do Rio de Janeiro, entre os bairros da Tijuca e Rio Comprido, uma das áreas que sofre com as variações do clima e os impactos das chuvas fortes é o Pedacinho do Céu, na parte alta do Morro do Turano. Os moradores estão preocupados com os deslizamentos de terra e rolamentos de pedra já há algum tempo e reclamam do esquecimento e do abandono do poder público.
Cansados de esperar, um grupo de moradores se reuniu no dia 1 de abril de 2023 e fez o primeiro mutirão de revitalização. Através da metodologia do nós por nós, sem esperar pelo Estado, buscaram tornar sua favela climaticamente resiliente e melhorar as condições de vida da vizinhança. O grupo começou a transformação do lugar pelo espaço onde a comunidade surgiu, o Pedacinho do Céu, e, usando o lema “os crias dando força”, partiram para ação.
Priscila Alves, que é cineasta, fotógrafa e musicista, e Aluan Gomes, que é historiador e professor, ambos crias da comunidade, planejaram o evento e convidaram o cantor, compositor, pagodeiro e ativista social Pipa Vieira para se somar na ação. Para os três, que hoje são ex-moradores da favela, o local tem muita ancestralidade, é carregado de histórias de lutas e marcado pela resistência dos antigos moradores pela conquista do direito à moradia.
Os primeiros moradores, segundo relatos dos mais antigos, eram explorados pelo grilheiro Emílio Turano, imigrante italiano que se dizia dono das terras, apesar de não ser. Ilegalmente, ele cobrava taxas abusivas daqueles que construíam suas moradias ali. Foi com o apoio de advogados e vereadores que, em meados da década de 1930 e 1940, eles conseguiram o expulsar de sua comunidade.
É com este local, marcado desde o começo pela luta dos moradores, que Priscila, Aluan e Pipa têm uma forte ligação. Eles dizem que estão dando continuidade à luta dos antigos pela permanência, evitando deixar o local abandonado. O grupo pretende dar visibilidade ao lugar, chamando a atenção de moradores das outras áreas do Complexo do Turano e do poder público.
Priscila conta que tudo começou numa conversa que teve com sua mãe, sobre o terreno de sua avó, lá no Pedacinho do Céu, que está desocupado. Ela queria saber como estava a área e se ainda era possível construir no local. Sua ideia era montar um espaço de encontro para a troca de ideias e para o desenvolvimento da cultura e da arte locais. Foi então que procurou sua prima para obter mais informações a respeito do terreno e fez visitas ao Pedacinho do Céu, para ouvir e trocar ideias com os vizinhos da área.
“Minha referência de mutirão vem a partir do Zói, que mora ali na Raia, dessa galera mais velha, que se reunia para ajudar a construir a laje do outro, ajudar a reformar a casa do outro. Então, eu falei: ‘vamos formar o primeiro mutirão de revitalização ambiental, com a pegada mesmo de mutirão, que é para todo mundo se conectar, os crias se conectando pra isso acontecer’. E eu pensei muito em juntar uma galera para reformar a quadra do Pedacinho do Céu, em construir uma biblioteca, e o intuito disso está relacionado a comunidade voltar a circular neste lugar.” — Priscila Alves
Uma Parada para Descansar e Recordar
O primeiro mutirão de revitalização do Pedacinho do Céu teve como ponto de encontro a Quadra da Raia, local tradicional e bastante conhecido da comunidade, localizada na parte alta do morro, mas abaixo do Pedacinho do Céu. O evento iniciou com uma roda de conversa e um café da manhã, promovido pelos organizadores e participantes.
No final da roda, todos subiram o morro em direção ao Pedacinho do Céu, para dar início aos trabalhos. Durante a subida, os crias da área foram apresentando o local para aqueles que não eram da área, planejando por onde iriam iniciar a limpeza e onde ficaria a primeira horta comunitária do Morro do Turano.
O local escolhido para dar início à revitalização foi a quadrinha, local que guarda muitas recordações boas do passado. Antes de dar início aos trabalhos, os moradores começaram a recordar sobre quando a quadrinha do Pedacinho do Céu era mais usada pela comunidade e os eventos que aconteciam ali. Dois deles foram lembrados com muito carinho e saudades. O Arraiá da Tia Ana, uma antiga moradora, que já não reside mais lá, que, dos anos 1980 aos 1990, promovia festas caipiras que atraíam pessoas de todas as áreas da favela e de outras comunidades adjacentes. O outro evento recordado foi o Baile das Rosas, que era realizado na mesma época do Arraiá da Tia Ana. Lembraram de como o baile ficava lotado e de que o cavalheiro entregava uma rosa para a dama quando a escolhia para dançar. A festa acontecia nos fins de semana e, segundo os moradores, deixou boas recordações.
Os crias mencionaram também os torneios de futebol e de queimado que aconteciam na quadrinha, sempre com muita gente. Muitos lembraram de algum momento vivido por eles no local e dos jogos que são até hoje memoráveis. Foi por causa dessas boas lembranças que decidiram que a quadrinha seria o ponto inicial para o primeiro mutirão de revitalização.
Este momento de boas lembranças e de trocas se deu em uma das paradas para descansar da subida, pois, da Raia até o Pedacinho do Céu, é uma boa caminhada morro acima, por escadarias íngremes, caminhos de barro e trechos estreitos. O acesso ainda é bem complicado. Até um certo pedaço, logo no início, é possível chegar de moto. Porém, o restante do caminho só pode ser feito a pé.
“A minha ligação com o Pedacinho do Céu faz parte da minha formação musical. As minhas primeiras referências musicais dos bailes que eu curtia com a minha mãe ou algum outro responsável era aqui… Minha família era do Salgueiro e eu passava por esse caminho para ir pra lá. Saía do Salgueiro para vir para o Turano, passando pelo Pedacinho do Céu… Acho que é um caminho sagrado.” — Pipa Vieira
‘Os Crias Dando Força’
Depois do descanso e das recordações, a galera começou a se preparar para pôr as mãos à obra. Separaram as mudas e sementes que seriam plantadas após a limpeza da quadrinha e do espaço onde ficaria a horta comunitária. Dias antes, funcionários da Prefeitura, a pedido dos moradores e da associação local, haviam capinado o local que estava tomado pelo matagal. Isso ajudou o trabalho do grupo, que fez a limpeza, retirando o lixo e o restante do mato.
Enquanto uns faziam a limpeza do espaço, outros faziam a separação das mudas e sementes que seriam plantadas. Havia a preocupação de plantar espécies nativas, para não prejudicar o solo e interferir no biotipo do lugar. Outra preocupação do grupo era quais mudas de árvores seriam plantadas nas encostas, para dar mais segurança à área em dias de chuva.
O descarte correto do lixo também era uma das preocupações, os locais de descarte foram sinalizados com placas, estimulando a conscientização dos moradores. Todas essas medidas visavam, como foi dito por Aluan, a retomada do Pedacinho do Céu, local de importância história e afetiva para a comunidade do Turano, que foi esquecido e abandonado devido à negligência do Estado.
“Essa revitalização, na verdade, é uma retomada de um espaço que é muito importante para a história do morro. O lugar onde surgiu nossa comunidade, foi muito atacado e esvaziado, muitos moradores foram removidos e casas foram destruídas. Muita gente daqui não conhece e nunca veio no Pedacinho do Céu. Tem gente que fala que aqui é só mato, que não tem mais ninguém morando aqui, que o lugar está abandonado. E a ideia é a gente retomar e mostrar também para os moradores em geral, principalmente para os mais jovens e para as crianças… conhecerem e voltar a ocupar esse espaço.” — Aluan Gomes
Para esse início de revitalização, foram plantadas ervas, como manjericão, hortelã, alecrim, babosa, boldo chileno, boldo comum e terramicina. Árvores, como bananeira, limoeiro, laranjeira, goiabeira, pitangueira e pé de acerola foram plantadas também; a ideia é plantar pés de diversas frutas.
Uma participante do mutirão, Bianca Ortiz, levou diversas sementes, mudas e frutas, para serem plantadas no local. Bianca deu uma explicação sobre cada semente, muda e fruta, informando sobre o plantio e os benefícios de cada uma delas. Uma das sementes levada por ela foi a do café, fruta que já não se encontra mais naquela área, apesar de no passado a região ter sido uma imensa fazenda produtora. As sementes de açaí também estavam entre as que Bianca levou.
A colaboradora também levou frutas como noni, que é nativa da Ásia, cambuci, nativa da Mata Atlântica, e pitaya, que é nativa das regiões da América Central e do México. Também trouxe sementes de batata yacon, que é originária da Cordilheira dos Andes, e, aqui no Brasil, é conhecida como batata dos diabéticos.
Uma horta foi montada da forma tradicional e a outra em forma espiral, respeitando a necessidade de luz solar e sombra das ervas e verduras plantadas.
Um dos fatos marcantes neste primeiro mutirão de revitalização do Pedacinho do Céu, foi a presença das crianças. Viram tudo como uma grande brincadeira, e assim contribuíram bastante. Muito curiosas, perguntavam e prestavam atenção em tudo, nas explicações, nos ensinamentos que lhes eram passados pelos mais velhos. Afinal, todo legado será deixado para elas darem continuidade.
Com o trabalho bastante adiantado, o pessoal fez uma pausa para o almoço. A refeição foi preparada pelo morador conhecido como Beto, que mora na Raia. Dona Elza, outra moradora do Pedacinho do Céu, cedeu seu terraço para todos se reunir para comer. A hora do almoço foi um momento de descontração, com troca de ideias, mais histórias contadas, e apreciação da vista da Grande Tijuca, região do Centro e Baía de Guanabara.
A Voz do Morador do Morro do Turano
Em 2010, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), viviam 10.000 pessoas no Morro do Turano, mas desde 2013, esse número ultrapassou de 13.000 habitantes, segundo os dados do Programa Saúde da Família, do Ministério da Saúde. Só no Pedacinho do Céu, segundo relato dos moradores, viviam cerca 450 famílias, porém, após a tragédia das chuvas de 2010, que causou um grande deslizamento de terras, pedras e algumas casas, esta quantidade diminuiu bastante.
Muitas residências foram removidas pela Prefeitura devido ao entendimento de que se tratava de uma área de risco. Além disso, por medo, após a tragédia, muitos moradores foram embora, esvaziando bastante o lugar. Hoje, pouquíssimas famílias vivem lá. Segundo os moradores, atualmente estão morando lá de 30 a 40 famílias.
Uma das poucas pessoas que ainda reside no Pedacinho do Céu é Elza Martins, conhecida como Dona Elza, que conta que chegou no local ainda bem jovem, com seus pais e irmãos, nos anos 1960. Ela lamenta por não ter nada no lugar e diz que o local está totalmente esquecido, que muita gente acha que só tem mato e lixo e que alguns órgãos da prefeitura o identificam como Matinha, que, na verdade, é uma outra área do Complexo do Turano. Dona Elza diz que o Pedacinho do Céu não tem coleta, pois os poucos garis comunitários não sobem até esse ponto. O lixo é descartado em encostas, barrancos ou em terrenos baldios. Para a moradora, outro sinal desse abandono é que, até bem pouco tempo, não tinha nem Agente de Saúde designado para assisti-los. Só passaram a ter depois que um morador foi trabalhar na Clínica da Família.
“Eu acho que vai melhorar muito. Vai ser como se tivesse revivendo de novo… aqui é muito desprezado, a gente é muito abandonado. Ainda bem que há pouco tempo botaram a luz… Pra quem anda de moto, pode vir de moto até ali embaixo. Agora, estrada, nem adianta falar, acredito que não vão mais botar uma estrada aqui. Seria muito bom se tivesse uma estrada aqui, pelo menos até ali no campinho.” — Dona Elza
Depois de conversarmos com Dona Elza, descemos mais um pouco e fomos até a casa do morador Marco Antônio Silva, conhecido como Marquinho, cria e morador do Pedacinho do Céu há 52 anos. Marquinho conta que, em 2019, após a perda de seus dois filhos, alugou a sua casa e foi morar em São Gonçalo. Após seis meses, sem ter se adaptado, voltou ao Turano, desta vez, indo morar no Bacana, outra área da favela. Lá, também ficou por seis meses, e, então, voltou para o Pedacinho do Céu, de onde não pretende mais sair.
Para Marquinho, o ruim do local é não ter uma locomoção mais tranquila, pois a moto, o único veículo que sobe, vai só até um certo trecho. Segundo ele, isso não é o suficiente, pois, caso alguém passe mal ou precise de socorro, não tem como se deslocar.
Além disso, ele também relata que, durante um bom tempo, os moradores tinham muitos problemas com a falta d’água, pois a única caixa que tinha para abastecer as residências era uma construída pelo Frei Cassiano há muitos anos, que recebia água da nascente que fica no alto do morro. Com o crescimento populacional do Turano, ela se tornou insuficiente. Quando o programa Favela-Bairro passou pela segunda vez na comunidade, construíram uma outra caixa para ampliar o abastecimento, mas, ainda assim, muitas residências não foram abastecidas. Então, os moradores tomaram a iniciativa de perfurar os canos de água recém-instalados, que passavam em frente às suas portas, para improvisar ligações de água para suas casas e de vizinhos, garantindo este direito básico universal.
“Aqui pra carregar material a gente tinha mutirão… na minha mudança, quando fui e voltei.. as crianças que eu vi pequenas… até as coisas pesadas, eles pegaram e trouxeram… do Campo do Bacana pra cá é muita subida, mas quando olhei, já tinham levado todos os móveis, a cozinha já estava toda aqui quando cheguei. Subiram a geladeira, o fogão, o botijão, tudo, sabe? Foram as crianças que eu vi pequenas, agora, adultos, que me ajudaram… É porque eu sempre fui muito família, sempre fui de me unir… Quando tinha caipira [festa junina], eu ia cortar bambu, sempre ajudei, porque sempre estive em prol da comunidade.
Quando houve esse lance em 2010 [tragédia das chuvas], minha esposa não quis ficar aqui de jeito nenhum. Eu já tinha essa estrutura toda aqui… então, chamei um engenheiro aqui… falei com ele que minha esposa não queria voltar pra casa e perguntei se tinha algum risco de ficar aqui. Pedi para dar uma olhada em volta da minha casa. Eu já tinha feito esse muro de pedra aqui, porque, aqui em cima, realmente tinha risco de descer. Como eu tinha feito o muro, ele disse que não tinha como descer nada e atingir a minha casa, que podíamos ficar tranquilos. Essa contenção foi feita por mim, meu primo e um outro moço que morava aqui em cima, não pela prefeitura.” — Marquinho
Sair do esquecimento é o que esperam os moradores do Pedacinho do Céu. E foi o que fez Priscila Alves ao mobilizar amigos e ex-vizinhos a revitalizar o lugar onde sua avó morou. Trazer de volta os eventos culturais e esportivos que aconteciam no passado. Trazer de volta a cultura de plantar e colher e reflorestar encostas, para evitar novos deslizamentos de terra.
Já Aluan Gomes pretende dar continuidade à história do lugar que deu origem ao Complexo do Turano e que, por algum motivo, se perdeu e foi caindo no esquecimento. É importante lembrar que o Pedacinho do Céu fica bem pertinho da casa do Arcebispo da Igreja Católica do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta, chamada pelos moradores de Casa dos Padres, no Sumaré. A uma rua do Pedacinho do Céu está o alto clero da igreja católica carioca, palácio que hospeda o Papa quando ele vem ao Rio.
Pipa Vieira vê a possibilidade de ministrar lá na quadrinha aulas de percussão para crianças e adolescentes. O cantor ganhou uma licitação na prefeitura para desenvolver o projeto em um local de sua escolha. E, para ele, isso pode gerar frutos e muitos percussionistas podem sair de lá. Mas, a principal pretensão de todos os participantes do mutirão, é tirar o Pedacinho do Céu da invisibilidade, atrair mais moradores das outras áreas do Complexo do Turano para contribuir e porque não, levar o mutirão do Pedacinho do Céu para toda a comunidade.
Sobre a autora: Carla Regina Aguiar dos Santos é jornalista comunitária, cria do Morro do Turano, que sempre prioriza o cotidiano das favelas em seu trabalho, mostrando além do que se vê nas mídias tradicionais. Já contribuiu para a Agência de Notícias das Favelas (ANF), A Pública, portal Eu, Rio! e Terra. Recebeu os prêmios ANF de Jornalismo, na categoria cultura, e o Neuza Maria de Jornalismo.