Ao longo dos últimos anos, movimentos em grande escala sem precedentes desafiaram estados em todo o mundo. Da Praça Tahrir no Cairo ao Zuccotti Park, em Nova York, e, mais recentemente, as ruas da Turquia e do Brasil. Comum a todos é o uso generalizado das mídias sociais na organização e articulação de protestos. Através do Twitter e Facebook, os movimentos locais têm agora a capacidade tecnológica para transcender limites geográficos, de tempo e recursos. Com sua grande desigualdade social e serviços públicos de baixa qualidade, o Brasil, dada a sua hiper-conectividade, como o segundo maior usuário do mundo de ambos Twitter e Facebook, estava com o pé na porta para ser o próximo da fila.
Como é que o uso das mídias sociais altera a estrutura dos movimentos sociais do mundo atual e do Brasil em particular? Em 3 de junho, Zeynep Tufekci postou no DMLcentral, em meio a onda de manifestações na Turquia, oito características preliminares do que ela chama de “movimento em rede.” Aqui usamos as características levantadas por Tufekci como um ponto de partida para a análise do que está acontecendo no Brasil.
As oito características preliminares dos movimentos em rede atuais são:
1. Falta de uma liderança institucional organizada
Enquanto Zeynep é cuidadosa em não acusar os movimentos em rede de serem “vazios ou com falta de pessoas proeminentes ou uma hierarquia de influência ou atenção”, ela observa a falta de estrutura organizacional. Ou seja, os movimentos em rede carecem de um “mecanismo de formalização de representação ou de tomada de decisão”. Por exemplo, o movimento Occupy foi acusado de não ter exigências claras, uma acusação agora sendo feita aos protestos do Brasil. Mas essa é uma característica que existe dentro do movimento ou uma maneira conveniente dos meios de comunicação para enquadrá-lo?
Em 18 de junho, centenas de pessoas ocuparam uma sala do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro em uma assembléia geral para discutir o futuro do movimento. A assembléia votou e acordou cinco proposições que já foram impressas e distribuídas. São elas:
1. Redução do preço das passagens.
2. Livre direito de manifestações: Fim da repressão policial, da criminalização dos movimentos sociais e do uso de armas letais e não-letais nos manifestantes.
3. Dinheiro da Copa e Olimpíadas para saúde e educação.
4. Não aos despejos forçados.
5. Gestão democrática das cidades com decisão popular.
Essas metas específicas foram determinadas usando o consenso na assembléia geral. Outra assembléia foi realizada em frente ao IFCS em 25 de junho, onde milhares de pessoas se reuniram.
A filosofia do movimento, e da assembléia geral, não é chegar a uma decisão, mas a um consenso. A diferença importante é que um consenso engloba diferença, e não é focado em convencer ninguém de nada, mas foca sim na ponderação, que é a única forma de se alcançar um consenso. Essa filosofia contrasta fortemente com o funcionamento padrão da democracia no Brasil.
2. Organizado em torno do “não” e não do “faça”
No artigo do New York Times intitulado “Do ‘Não’ ao ‘Faça“, Roger Cohen escreve do Brasil, “…as erupções cujo slogan poderia ser ‘Basta!’ são bons como protesto e resistência, mas não tão bons em definir objetivos… Eles exibem força na negativa. Eles tendem a fracassar na afirmativa”. Como Zeynep escreve, eles podem facilmente gerar “ação coletiva em torno de queixas compartilhadas para parar ou se opor a alguma coisa, em vez de ações estratégicas voltadas para a obtenção e manutenção de poder político”.
Enquanto a onda de manifestações no Brasil pode ter começado como uma recusa coletiva ao aumento da tarifa de ônibus, ele certamente não está sendo sustentado por ele. Das cinco proposições/demandas geradas na assembléia geral, duas são propostas concretas, em vez de simples rejeições. Quando a Prefeitura do Rio de Janeiro reduziu as tarifas de ônibus, o movimento respondeu com mais de 300 mil pessoas nas ruas do Rio de Janeiro na noite seguinte (20 de junho). E mesmo com o movimento continuamente ganhando concessão após concessão, as manifestações continuam.
Além disso, temos que lembrar que em uma democracia o trabalho do povo é cobrar ações do governo, não fazer o trabalho do governo. Muitas vezes o poder público e os meios de comunicação jogam a responsabilidade de volta para o movimento e, simultaneamente, nega-lhes o acesso à máquina política. Isto torna mais fácil para as autoridades acusarem o movimento de “fracassar na afirmativa”. O movimento no Rio é sustentado por uma demanda para que o governo faça o seu trabalho. Em outras palavras, é sustentado em torno de um “faça”, não um “não”.
3. A sensação de falta de uma saída institucional
No Brasil, ela não é uma “sensação” de falta de uma saída institucional; essencialmente não há saída institucional. Oposição política no Brasil é particularmente fraca. Os partidos políticos absorveram uma série de organizações de movimentos sociais e sindicais no passado e, ao longo dos anos, esses partidos tornaram-se mais preocupados com a manutenção de seu poder organizacional do que com a democracia. O cenário político está cheio de organizações que tentam sobreviver por qualquer meio possível, criando um sistema político intrinsecamente corrupto.
Isso foi agravado nos últimos anos com o grande fluxo de dinheiro associado a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a maior parte do qual apoiando setores específicos (construção e imobiliário principalmente) em detrimento dos serviços públicos, enquanto ao mesmo tempo os custos para os cidadãos comuns aumentaram.
4. Participação não-ativista
Ao agregar centenas de milhares de pessoas, muitas delas serão não-ativistas, porque para se chegar a esses números é preciso que séries de redes sociais estejam ativadas. Por exemplo, o Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos contou com as extensas redes sociais de igrejas negras do sul do país para mobilizar um grande número de pessoas, e isso ajudou o movimento a alcançar o sucesso. Da mesma forma, no Brasil de hoje um grande número de redes sociais são ativadas para cada evento, com as mídias sociais desempenhando um papel de destaque na organização e rápida divulgação desses eventos.
Um evento aberto no Facebook é criado com a data e a hora da manifestação. Ele é, então, compartilhado por uma série de redes sociais sobrepostas que incluem tanto ativistas quanto não-ativistas. Em muitos casos, organizações como o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas ou o Favela Não Se Cala contatam diretamente seus membros para garantir a participação. A mídia social é uma ferramenta que, quando bem aproveitada, pode organizar centenas de milhares de pessoas de diferentes segmentos sociais.
Outra forma de participação não-ativista presente durante as manifestações envolveram pessoas que interagiam com os manifestantes a partir de suas casas ou escritórios piscando as luzes. Essa ação faz parte de um ato de “chamado-e-resposta” em manifestações. A multidão pede aos espectadores que participem, gritando “Pisca! Pisca! Pisca!”. Os espectadores respondem piscando as luzes, para o que a multidão, em seguida, grita: “Vem para a rua!” Este ato de chamada-e-resposta entre manifestantes e curiosos é uma bela forma de protesto que permite que as pessoas com deficiência física, ou famílias com crianças pequenas, partilhem do mesmo espaço que o do protesto ao mesmo tempo manifestando o seu apoio. Zeynep também observou formas semelhantes de protesto na Turquia, onde um grande número de não-ativistas participaram.
5. Atenção externa
A atenção da mídia internacional para os movimentos em rede de hoje muitas vezes são mais exatos, sutis e analíticos do que a cobertura nacional ou local, devido aos compromissos questionáveis da mídia nacional às suas autoridades.
No caso dos recentes protestos no Brasil isso foi multiplicado devido a Copa das Confederações, em curso em todo o país, e um grande número de jornalistas internacionais presentes. Isso aumentou ainda mais a atenção interna e externa para os protestos no Brasil. As manifestações foram amplamente cobertas pelas agências de notícias mais importantes do mundo, principalmente gigantes como o New York Times, The Guardian e Al-Jazeera.
Além disso, a mídia social amplia o alcance internacional de manifestações. A grande mídia cobrindo ou não os eventos, a mídia social os torna acessíveis internacionalmente. Vídeos explicativos feitos por brasileiros em inglês que expressam a indignação de todo o país para uma audiência internacional se tornou viral: #ChangeBrazil tem atualmente 1,45 milhão de acessos no YouTube, enquanto o vídeo feito por Carla Dauden, Não, eu não vou para a Copa do Mundo, foi visto por cerca de 3,5 milhões de pessoas. E em 19 de junho o Instagram postou um destaque das manifestações para toda a sua rede com hashtags #protestorj e #vemprarua, gerando mais atenção externa.
6. Mídias sociais estruturam a narrativa
Hashtags permitem acesso rápido para experiências coletivas usando uma simples palavra ou frase, e, como mencionado acima, uma série de hashtags foram usadas durante toda a onda de manifestações. Como resultado, qualquer pessoa com acesso as mídias social podem transmitir as suas experiências para o mundo.
Por exemplo, #protestoRJ, #protestoRecife, #protestoSP, #BHnasruas são todas hashtags que capturam as experiências de protestos nas cidades de Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e Belo Horizonte, respectivamente. Além disso, estes tipos de hashtags são uma maneira para que as pessoas compartilhem informações específicas das cidades.
Outras hashtags como #mudaBrasil, #OGiganteAcordou, #VemPraRua e #ChangeBrazil são mais gerais. Pesquise qualquer uma delas e você poderá acompanhar as últimas tendências e experiências dos participantes do movimento. As mídias sociais, com apoio especial fornecido pelas hashtags, permitem que as próprias pessoas construam a narrativa do movimento.
Isso também permite que as pessoas, coletivamente, minem a narrativa criada pela grande mídia. As vozes dos participantes se aglutinam em uma narrativa diferente e mais precisa. Em vez de ver o vandalismo e saques, você vê a repressão policial. Em vez de ver os estudantes de classe média brancos, você vê uma diversidade de participantes do movimento.
7. Quebrando a ignorância pluralista e alterando a dinâmica da ação coletiva
Será que tudo isso realmente aconteceu por causa de um aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus? A resposta a esta pergunta é sim e não. Sim, no sentido de que o aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus foi a gota d’água em uma longa lista de injustiças e problemas sociais. E não, no sentido de que as organizações dos movimentos sociais, associações comunitárias e organizações não-governamentais vêm lutando ativamente contra uma série de injustiças por um longo tempo, sem mencionar que a indignação do povo vai além dos custos de transporte público. Mas por que só agora os cidadãos se reúnem na maior onda de manifestações que o Brasil presenciou nas últimas décadas?
Para Zeynep a resposta está nas mídias sociais como um espaço onde a sociedade civil pode discutir política abertamente, promovendo uma consciência política que rompe a ignorância pluralista e altera a dinâmica de ação coletiva. Ignorância pluralista é um conceito da psicologia social que se refere a pessoas que possuem uma certa visão, mas que têm muito medo de compartilhar essa visão.
No caso do Brasil, os cidadãos de todas as classes e origens são da opinião de que corrupção e serviços públicos de má qualidade são um problema, e são abertos sobre isso, mas muitas vezes acabam com a frase resignada e fatalista “bem, isso é o Brasil”. O que marca os protestos é um movimento da resignação à ação coletiva e um sentido de possibilidade de mudança. As mídias sociais no Brasil são um espaço onde a política é discutida e onde a esperança e indignação são incentivadas.
8. Não facilmente dirigível a ações políticas estratégicas e complexas
A combinação dos fatores acima têm feito do movimento uma poderosa força política que já teve, em poucas semanas, muito sucesso. As tarifas de ônibus foram reduzidas. No Rio a CPI dos ônibus foi aprovada. A PEC 37 e a “Cura Gay” foram arquivadas. Em setembro, o governo federal vai votar reformas na estrutura política do Brasil. E os protestos têm mobilizado uma série de segmentos sociais em uma força unificada. Mas qual é o próximo passo?
Conforme descrito anteriormente, o movimento é baseado no consenso, às vezes difícil de conciliar com a democracia representativa. E no Brasil, há uma sensação de que a história tem mostrado o que acontece aos movimentos que “falam” com o governo: a cooptação. Portanto, o que estamos vendo hoje no Brasil, a mais recente adição na onda de movimentos em grande escala, que começou com a Primavera Árabe, é um novo tipo de revolução.
A Revolução 2.0 é organizada, articulada, e seu impulso sustentado através de constante troca de ideias e eventos nas mídias sociais. Embora muitos desses movimentos tenham até então “falhado” em reconfigurar seus governos, eles foram bem-sucedidos em juntar milhões dizendo coletivamente “não” e permitiram uma nova consciência, que é o primeiro passo necessário para a mudança. Vamos nos afastar do ciclo de notícias de 24 horas, respirar fundo, e refletir sobre todas as coisas incríveis que aconteceram ao longo dos últimos anos. Estes movimentos não estão tentando alterar os operadores da máquina política. Eles estão tentando mudar a própria máquina, e isso leva tempo.
No Brasil, os iminentes mega-eventos irão proporcionar cada vez mais atenção internacional e protestos irão prosperar em seu rastro. Será que eles podem ter se transformado de vácuos democráticos a catalisadores de rápidas mudanças sociais? A Copa das Confederações é um ensaio para a Copa do Mundo. O movimento está apenas começando e agora que as pessoas ensaiaram, espere por manifestações ainda maiores no Brasil nos próximos anos.