Terça-feira, 2 de julho, à tarde, mais de cinco mil pessoas se uniram na Maré, o maior complexo de favelas do Rio situado na Zona Norte da cidade, para relembrar as dez pessoas assassinadas na chacina chocante da semana anterior e para pedir o fim imediato desse tipo de operação policial na qual policiais entram em favelas e matam com impunidade. Organizado por moradores, ONGs, movimentos sociais e grupos comunitários da Maré, o ato ecumênico foi nomeado “Estado que Mata – Nunca Mais.”
Apesar da chuva forte, que passou durante o evento, milhares de moradores da Maré, ativistas de direitos humanos, grupos comunitários, advogados, acadêmicos e outros cariocas preocupados com o assunto, se juntaram na Rua Teixeiro Ribeiro perto da 9ª passarela da Avenida Brasil a partir das 15h00. Entre às 17h00 e 18h00 a demonstração ocupou a pista lateral da Avenida Brasil, uma das artérias principais do Rio. Vários participantes e o grande sistema de som estavam cobertos de preto em ato de respeito pelos dez mortos, incluindo um policial que morreu na operação violenta do BOPE semana passada.
Na tarde de segunda-feira dia 24 de junho, um grupo não identificado conduziu uma onda de assaltos armados na Avenida Brasil fugindo para dentro da Maré pela entrada da Rua Teixeira Ribeiro. O BOPE então iniciou uma operação na qual dez pessoas morreram e dezenas foram feridas, e toda a favela ficou sem eletricidade por 36 horas. Um morador da Maré descreveu o acontecido como “a pior operação que já vi”. Na noite de terça-feira 25 de junho, 500 moradores se mobilizaram numa tentativa de terminar o suplício, forçando o veículo de guerra do BOPE a sair. Uma semana depois, o comandante do BOPE revelou que ele não tinha sido informado sobre a operação.
As declarações dos moradores revelam uma série de abusos e o terror psicológico da operação. Há relatos de gente sendo atingido por uma bala enquanto tirava seus filhos de perto da janela, um casal se encolhendo no chão de uma ruela enquanto balas voavam por cima de suas cabeças, oficiais do BOPE arrombando portas para entrar em casas de moradores inocentes, gente chegando em casa e encontrando sua laje sendo usada como base pelo BOPE, fora muitos relatos de abuso verbal pelos policiais.
Na demostração de terça-feira, Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas e um dos organizadores do evento, disse como ele havia sido interrogado se a Copa das Confederações provocou a operação violenta. Ele disse: “Seria ótimo se esse tipo de indicente só acontecesse cada quatro anos. Mas infelizmente esses são eventos recorrentes”.
Localizado entre a Avenida Brasil e a orla da Baía da Guanabara, o Complexo da Maré compreende 17 favelas e tem uma população total de 130.000. Embora tenha uma longa história de luta e conquista, uma cena cultural muito rica, e várias organizações comunitárias internacionalmente reconhecidas, confrontos violentos entre a polícia e facções do tráfico que controlam o território marcaram a história recente da Maré e dominam as principais correntes de notícias sobre o bairro.
Essa forte associação com a violência é algo que muitos dos que falaram durante o evento de terça-feira desejam reverter. Carlos, da Associação de Moradores de Parque União (uma das 17 comunidades da Maré) disse: “Estamos aqui com o intuito de mostrar que a Maré é de paz. Maré é vida. [Queremos] mostrar a toda população do Rio que aqui são pessoas do bem. Nos juntamos agora para dizer que não podemos mais aceitar este tipo de violência contra a nossa gente… Não é mais guerra, é paz”.
O apelo à paz dominou os discursos de líderes comunitários que falaram. Que as pessoas querem investimentos na saúde e educação e não veículos de equipamentos de guerra foi repetido várias vezes durante os dois discursos e os gritos e cartazes da multidão. Também falaram vários líderes religiosos, como um pastor declarando que, “se Jesus Cristo estivesse aqui hoje ele estaria lutando contra este estado também”. MC Leonardo do APAFUNK discursou e deu um show, junto com o ator Paulo Betti que falou da sua solidariedade com a comunidade e as famílias das vítimas. Mais tarde um grupo de teatro atuou ao som de um tambor batendo lentamente, deitados no chão, faces cobertas com um pano preto inspirando a pensar sobre as vidas perdidas.
Embora a operação que instigou o ato tenha sido de uma natureza trágica, o evento de terça-feira demostrou a esperança para o futuro. Ainda que com um tom sombrio, particularmente enquanto se prestava uma homenagem aos mortos, a convicção que impulsionava o sentimento da multidão era que os moradores da Maré, e moradores de favelas em geral, deveriam ter garantidos os direitos que têm sido cruelmente negados–o direito de ir e vir, o direito de viver em paz. Num discurso emocionado, Deize Carvalho da Rede Contra Violência gritou “Chega! Chega de assassinatos dentro das comunidades! Chega de violência!”
A Polícia Militar estava fortemente presente do outro lado do carro de som. Os organizadores do evento consultaram a polícia com antecedência, solicitando segurança para que fossem capazes de exercer o direito democrático de protestar e também numa tentativa de evitar um confronto entre a polícia e os manifestantes. Os organizadores insistiram várias vezes que o mundo estava assistindo e que era importante manter a ordem. O protesto tinha um horário de início e fim, e depois da dispersão da Avenida Brasil, um policial do 22º Batalhão (Maré) deu uma entrevista dizendo, “Isso foi um grande sucesso. Os organizadores nos informaram sobre as necessidades e fomos capazes de atender-las. Não foi necessário usar nosso equipamento. Tinhamos previsto que seria preciso, mas foi extremamente pacífico”.
Essa organização, e umas certas limitações durante o protesto, fizeram com que algumas pessoas ficassem preocupadas que o evento não teria o efeito político desejado. Uma das exigências dos organizadores é um pedido de desculpas do Governador Sérgio Cabral e do Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro José Mariano Beltrame pela operação desastrosa.
Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, que tem trabalhado com ONGs locais por meses em uma campanha pela prevenção de violações de direitos humanos durante operações policiais na Maré, explicou: “A Maré perdeu dez pessoas semana passada. Isso não pode passar sem reconhecimento, sem responsabilidade e sem humildade por parte do estado. Tem que ser reconhecido que foi um erro, que não deveria ter sido assim, e o estado tem que se comprometer a não entrar no território das favelas dessa maneira nunca mais”.
Os moradores da Maré e organizações ainda aguardam desculpas e o compromisso do Estado para acabar com as chacinas em favelas que marcam a história do estado do Rio de Janeiro.