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A cidade do Rio de Janeiro oficialmente conta com um novo Plano Diretor. Em sessão extraordinária, realizada no dia 11 de dezembro de 2023, os vereadores aprovaram o Projeto de Lei Complementar n. 44-A/2021, que institui o novo Plano Diretor da cidade, por 37 votos favoráveis e 10 contrários. O Plano Diretor é a principal lei urbanística a nível municipal. Ele estabelece as diretrizes do desenvolvimento urbano pelos próximos dez anos e elenca os instrumentos da política urbana. Nele, se destacam duas importantes medidas que podem trazer impactos para as favelas cariocas: o Termo Territorial Coletivo (TTC)*, como um dos instrumentos de política urbana, e um capítulo especificamente destinado para as favelas da cidade. O TTC consiste em um inovador modelo de gestão fundiária, voltado para garantir a permanência dos moradores em seus territórios frente às remoções e à gentrificação, estava presente na redação original do Plano Diretor, mas foi retirado pela prefeitura, através de uma emenda no final de 2022. Isso levou a uma reação da sociedade civil, que se mobilizou nas audiências públicas, lotando as galerias da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. A mobilização popular foi responsável pelo retorno do TTC ao Plano Diretor.
O projeto de lei, que já havia sido aprovado em primeira votação, recebeu um total de 1.236 emendas dos vereadores. A sessão que aprovou o plano apenas analisou as emendas do Legislativo, das quais 475 foram acolhidas. Foram mais de dez horas de discussão, em que diversas emendas foram analisadas e debatidas entre os vereadores, que optaram por validar a lei de iniciativa do Executivo com as alterações inseridas pelas emendas. Após a votação, o Plano Diretor foi encaminhado para exame do Prefeito Eduardo Paes, para sua sanção ou veto.
Em geral, urbanistas apontam que o novo Plano Diretor está mais alinhado com interesses do mercado, em uma perspectiva de desburocratizar processos e visualizar a cidade enquanto mercadoria. No campo social, em especial da habitação, o Plano deixa a desejar com dispositivos que exigem uma nova lei para a aplicação de instrumentos como o TTC e o Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios, este último com potencial de converter imóveis abandonados em habitações. Além disso, o plano deixa de fora instrumentos que seriam importantes para aumentar a provisão de habitação de interesse social como a Cota de Solidariedade, que estabelece a obrigatoriedade que todo empreendimento habitacional da cidade destine um determinado percentual de unidades para moradores de baixa renda.
A revisão do Plano Diretor teve início em 2019 e foi um processo longo, impactado pela pandemia da Covid-19 e marcado por atropelos e divergências. Segundo o Estatuto da Cidade, a revisão dos planos diretores deve ser um processo participativo, em que toda a sociedade é convidada a debater os rumos do desenvolvimento urbano e defender suas visões para a cidade. O princípio da gestão democrática das cidades deve ser respeitado neste momento tão crucial, em que é debatida qual será a política urbana pelos próximos dez anos.
Apesar de ter iniciado em 2019, o processo foi interrompido e retomado apenas em 2021, com um cronograma de debates muito curto no âmbito do Executivo, o que rendeu críticas da sociedade civil quanto ao grau de participação popular que estava sendo garantido pela prefeitura. Após o projeto de lei ter sido encaminhado à Câmara Municipal, houve um tempo maior para debater o texto do plano com a sociedade.
No âmbito da Câmara Municipal, foram realizadas 33 audiências públicas, com objetivo de apresentar o novo plano para a população e escutar seus anseios. Na reta final, quando o texto estava sendo encaminhado para a primeira votação, a prefeitura apresentou 215 emendas ao projeto de lei de sua própria autoria, alterando elementos cruciais da nova lei. Isso levou a uma nova rodada de audiências e exames. Enfim, o plano foi aprovado em primeira votação, o que abriu a rodada de emendas dos vereadores. Apesar do maior tempo de discussão na Câmara Municipal, a votação definitiva do plano foi feita às pressas. O parecer final das emendas dos parlamentares foi publicado apenas na sexta-feira (08/12) e o plano foi votado definitivamente na segunda (11/12). Em um fim de semana, seriam analisadas mais de 400 emendas, para a votação final na segunda-feira. Não houve tempo para a sociedade se mobilizar e se posicionar em relação às emendas apresentadas, muitas das quais alteraram elementos importantes do plano.
A lei traz muitas novidades para o ordenamento territorial da cidade. Em especial, para os territórios de favelas e assentamentos informais urbanos. Apesar de se configurarem como uma parcela expressiva do território da cidade, abrigando cerca de 24% dos cariocas, as favelas nunca foram completamente incorporadas ao planejamento urbano carioca. As intervenções urbanísticas nestes espaços historicamente foram marcadas por uma abrangência limitada e descontinuidade, gerando melhorias pontuais e com limitados impactos a longo prazo. Além disso, são territórios submetidos a uma política de criminalização e repressão contínua por parte das autoridades, revelando a expressão mais violenta do racismo estrutural, que permeia nossa sociedade. Tudo isso aponta para uma dívida histórica que a cidade do Rio de Janeiro tem com suas favelas.
O novo Plano Diretor do Rio de Janeiro traz importantes mudanças para o tratamento das favelas no planejamento urbano. Uma delas é a presença de um capítulo inteiro dedicado às favelas, com diretrizes, regras e indicação de recursos para de fato possibilitar uma melhor abordagem a esses espaços, com política pública efetivas. O Capítulo IV: Do Direito à Cidade, à Terra e Moradia Digna nas Favelas reconhece as favelas como territórios constituintes da cidade, destacando suas particularidades e, sobretudo, suas qualidades, como: riqueza cultural, vínculos de solidariedade, diversidade social, mecanismos de autogestão e protagonismo feminino, entre outras. Pela primeira vez em nossos instrumentos de planejamento urbano, as favelas são definidas não a partir de suas precariedades e ausências, mas de suas potências, enquanto territórios únicos.
Para além desta importância simbólica de reconhecimento das favelas a partir de suas potências, o capítulo também traz diversas diretrizes sobre como deve ser a política urbana nas favelas. Ele destaca a necessidade de uma gestão participativa e contínua sobre estes espaços, além de elencar medidas relevantes para a melhoria das condições de vida de seus residentes, como: a regularização fundiária; o aprimoramento de serviços urbanos fundamentais, como transporte e saneamento; a mitigação de riscos; assessoria técnica para habitação de interesse social; e a adaptação das favelas às mudanças climáticas. Apesar dos avanços, diversos dispositivos que fixavam prazos e obrigações ao poder público foram retirados do texto final por emendas de vereadores da base do governo. A autora da emenda, Vereadora Tainá de Paula, em entrevista, destacou a importância e o ineditismo da proposta de um capítulo só sobre as favelas no Plano Diretor.
“Sou uma arquiteta e urbanista que, há 20 anos, trabalho neste tema na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil. E nunca na história da cidade o Plano Diretor se dedicou ao planejamento urbano das favelas e, finalmente, foi inserido um capítulo sobre elas como uma unidade que merece respeito e dignidade. Antes tarde do que mais tarde! Isso é fundamental porque vai versar para onde vão os recursos do Fundo de Habitação e do Fundurb. Isso sai do papel, sai do campo das ideias.” — Tainá de Paula
Além do capítulo das favelas, uma outra importante medida que pode trazer impactos para estes territórios, conforme anunciado no início desta matéria, é a aprovação do Termo Territorial Coletivo. Com aplicação em diversos países do mundo e reconhecimento internacional de sua efetividade em garantir moradia digna e acessível nas cidades, o Termo Territorial Coletivo é um modelo de gestão coletiva da terra caracterizado pela separação entre a propriedade da terra, que é coletiva, e a propriedade das construções, que é individual. A principal contribuição do TTC é fortalecer a segurança da posse e poder de comunidades, garantindo aos moradores o direito à permanência e o protagonismo no desenvolvimento do território.
Com sua aprovação no Plano Diretor do Rio de Janeiro, essa é a primeira vez que este instrumento fundiário conta com uma previsão legal na cidade e está entre seus instrumentos urbanísticos, voltado para garantir o acesso à terra e à moradia (arts. 169-172), o fortalecimento comunitário e a proteção contra ameaças de remoção. O Rio de Janeiro se torna o segundo município brasileiro à contar com o TTC como instrumento recomendado em seu Plano Diretor, após São João de Meriti. Foi uma grande vitória para todos os que lutam pelo direito à moradia na cidade. Mas apesar da comemoração devida, é importante destacar que foi incluído um dispositivo expresso no sentido de que o TTC só poderia ser implementado após regulamentação por lei específica. Considerando o não cabimento desse tipo de previsão já que o TTC já poderia ser aplicado mesmo sem previsão no Plano Diretor, o dispositivo demonstra uma falta de vontade da prefeitura de apoiar a implementação do modelo.
A futura implementação de TTCs proporcionará uma ruptura com práticas de intervenção em favelas impostas de cima para baixo, garantindo um maior protagonismo comunitário. O modelo apresenta um maior grau de segurança da posse, protegendo comunidades contra diferentes ameaças de remoção, tanto as promovidas pelo Estado, quanto às ameaças que provêm do mercado (gentrificação por especulação imobiliária).
Com esses avanços para as favelas no Plano Diretor do Rio de Janeiro, a cidade terá novas ferramentas à disposição para proporcionar a estes territórios mais da sua importância devida na política urbana. As previsões legais, no entanto, não são o suficiente. É preciso que elas saiam do papel, que as diretrizes sejam de fato concretizadas. Para isso, a luta popular contínua é fundamental, mantendo a pressão sobre o poder público para que as favelas sejam efetivamente respeitadas e garantidas prioridade, obtendo uma relevância maior no orçamento público e recebendo intervenções a longo prazo de fato alinhadas com os interesses dos moradores.
Assista à Gravação da Audiência Pública Aqui:
*Tanto o RioOnWatch quanto o Projeto Termo Territorial Coletivo (TTC) são iniciativas da organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).