Justiça Hídrica na Rocinha: Falta D’Água Crônica como Bandeira da População

Caixas d'água nas lajes das casas na Rocinha. Foto: Karen Fontoura
Caixas d’água nas lajes das casas na Rocinha. Foto: Karen Fontoura

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Esta é a segunda matéria de uma série sobre justiça hídrica nas favelas escrita por jovens moradores de favela e resultado do curso “Justiça Climática no Jornalismo Comunitário: Da Construção da Pauta à Redação da Notícia”. O curso, realizado pela equipe do RioOnWatch, em parceria com o GT Jovem da Rede Favela Sustentável (RFS), aconteceu nos meses de julho-setembro de 2023.

Parte da paisagem, a caixa d’água é peça fundamental na estrutura de qualquer casa ou edifício do Rio de Janeiro, representando a dura realidade frequente da falta d’água na cidade. Assim como outros territórios de favela, a maior favela da cidade, a Rocinha, na Zona Sul, enfrenta há décadas dificuldades ainda maiores com relação à água, em todas as localidades da favela, uma luta antiga na vida de seus moradores.

O governo do estado do Rio de Janeiro, a antiga CEDAE, e a atual concessionária Águas do Rio, em 2020, incluíram a Rocinha no programa Comunidade Cidade, que visa melhorar as condições de vida através de ações e obras de abastecimento de água, saneamento, mobilidade, habitação, coleta de resíduos sólidos e equipamentos públicos. Dentro das obras de saneamento básico, com redes de água, esgoto e drenagem, o investimento foi de R$1 bilhão. Para atender em torno de 122.000 habitantes, foi calculado como necessário 7 milhões de litros de água.

O sistema de abastecimento atual da Rocinha é composto por três reservatórios localizados em pontos estratégicos do território: o reservatório Navio, com capacidade de 1.700.000 litros; o Terreirão, com 440.000 litros; e Laboriaux, suportando 60.000 litros, totalizando 2.200.000 litros. Os outros mais de quatro milhões de litros necessários para acabar com a falta d’água na Rocinha seriam armanezados em novos reservatórios a serem construídos no âmbito do projeto. Porém, o plano nunca saiu do papel e as denúncias de falta d’água continuam ao longo dos anos.

As divergências dos dados históricos em relação ao número de habitantes de fato na comunidade sempre interferiu na criação de políticas públicas capazes de promover a qualidade de vida dos moradores. Por exemplo, a quantidade de água disponível nos reservatórios atualmente, com base nos dados do IBGE de 2010, já na época insuficientes, de 70.000 moradores, daria a cada morador, em média, 31,5 litros diários. Se considerado o dado populacional de 122.000 habitantes do programa Comunidade Cidade, o consumo atual cai para apenas 18 litros por morador.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cada pessoa necessita de entre 50 e 100 litros de água por dia para suas necessidades básicas de consumo e higiene. A quantidade insuficiente disponível para os moradores da Rocinha evidencia a negligência do Estado em garantir o recurso mais básico, a água, para os moradores da maior favela da cidade.

Moradora Maria das Graças, de 68 anos, da Rua 4, na Rocinha. Foto: Karen Fontoura
Moradora Maria das Graças, de 68 anos, da Rua 4, na Rocinha. Foto: Karen Fontoura

“Eu só consigo lavar roupa quando está caindo água… Minha caixa d’água, eu só uso para as necessidades básicas e, mesmo assim… dura só dois dias.. Além disso, não tem dia certo para a água cair.” — Maria das Graças, 68 anos, moradora da Rua 4

Rocinha Sem Fronteiras, um coletivo de moradores, promove um encontro mensal, que ocorre desde 2006, para discutir temas em defesa aos direitos humanos e do desenvolvimento da favela. Em agosto, foi promovida a reunião temática “PAC e Saneamento Básico na Rocinha”, uma luta que atravessa o tempo.

Para Michel Silva, jornalista e cria da Rocinha, é urgente reivindicar esses direitos básicos, aproveitando o novo PAC, lançado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

“A Rocinha vai ser contemplada com as novas obras do PAC 2. Temos que estar inseridos no grupo de estudos desses projetos para a gente se organizar e representar nosso território.” — Michel Silva

Reunião do Rocinha Sem Fronteiras, agosto de 2023. Foto: Karen Fontoura
Reunião do Rocinha Sem Fronteiras, agosto de 2023. Foto: Karen Fontoura

A História das Bicas na Rocinha

Na virada do século XIX para o XX, o Rio de Janeiro é atingido pela onda de urbanização da gestão do Prefeito Pereira Passos, que muda a arquitetura da cidade de uma forma nunca vista. A capital federal da época passou por reformas para atingir padrões de modernidade com compromissos de realizar direitos, como saneamento básico, mobilidade urbana e moradias para a população.

“Eu lembro que tinha um poço na Dioneia. Às vezes, a gente chegava lá e não tinha água. Então, a gente sentava e esperava o poço encher um pouco para começar a pegar… Viramos a noite ali, tinha gente que levava até garrafa de café pra esperar.” — Maria das Graças

Desde 1982, as bicas da Rocinha são parte fundamental do acesso à água. Criadas com material doado por moradores, a CEDAE implementou as bicas, essenciais para coleta de água e lavagem de roupas na época. Atualmente, as bicas foram praticamente extintas, restando pouquíssimas. Cumprindo um importante papel nos dias sem água, a bica do Laboriaux é um recurso primordial para que moradores da parte alta da Rocinha não fiquem sem água.

“Meu irmão busca água lá duas vezes na semana, para beber e fazer comida. Eu também pegava, mas é muito cansativo… às vezes, eu chegava lá e tinha até fila… a água de lá é muito boa, é limpinha!” — Suzana Araujo, 49 anos, moradora da Rua 1

Moradores buscando água no Laboriaux, nos anos 1971. Foto: Acervo do Arquivo Nacional, fundo Correio da Manhã
Moradores buscando água no Laboriaux, nos anos 1971. Foto: Acervo do Arquivo Nacional, fundo Correio da Manhã

Um experimento foi realizado por uma equipe de especialistas da PUC-Rio, em 2022. O teste de qualidade da água das bicas constatou que quatro bicas estão impróprias para o consumo, contaminadas por coliformes fecais. As bicas são parte essencial do acesso à água de muitos moradores da favela. Hoje, a Rocinha conta com, aproximadamente, 17 fontes de águas subterrâneas.

A Luta por Direitos Continua

Em 2023, os moradores continuaram reivindicando melhorias no saneamento básico após a venda da CEDAE. Eles demandam que o dinheiro da privatização seja revertido em melhorias nos serviços de água e esgoto nas favelas. O Rocinha Sem Fronteiras se reuniu recentemente para debater sobre o saneamento nas novas obras do PAC.

Se olharmos para a história da Rocinha, a luta pelo acesso à água é um dos movimentos mais fortes da favela. A água destaca as desigualdades internas, dentro do próprio território. A construção, ao longo dos anos, de bicas nos caminhos da Rocinha permitiu que os moradores pudessem acessar, ainda que parcialmente, esse direito humano. Apesar de estar localizada entre os bairros nobres de São Conrado e Gávea, os favelados da Rocinha sempre reivindicaram a distribuição da água na comunidade, sem sorte. O assunto é recorrente em muitas localidades e as queixas aumentam ano após ano. 

Relação entre Racismo Ambiental e Saneamento Básico na Rocinha

O racismo ambiental se trata de um impacto ambiental danoso a territórios onde residem populações de maioria negra, indígena ou de outro grupo étnico vulnerabilizado, enquanto outros grupos usufruem de condições melhores, exatamente o que acontece na Rocinha. É preciso deixar evidente que as favelas são os territórios que mais sofrem com esse tipo de injustiça e de racismo no contexto urbano brasileiro.

Num contexto onde não temos nem acesso a água, como lutar contra as mudanças do clima?

Sobre os autores:

Karen Fontoura, 24 anos, é estudante de jornalismo do 6° período da UFRJ, moradora da Rocinha, focada em conhecer mais sobre as causas sociais das favelas. Repórter do Jornal Fala Roça desde março de 2023, seu trabalho tem objetivo de mostrar as coisas boas que acontecem na Rocinha e onde se precisa de melhorias.

Fernando Gomes é cria da Rocinha, estudante de Geografia na PUC-Rio, e já participou como professor e colaborador do Pré-Vestibular da Rocinha e do Só Cria. Atuou como colaborador do Jornal Fala Roça, e participou do projeto Mapa Cultural da Rocinha. 

Rodrigo Silva é repórter do Jornal Fala Roça, estudante de Jornalismo na PUC-Rio, e participou de diversos projetos que o veículo elaborou, como: Morador Pergunta, Morador Responde; Cobertura do Rock In Rio 2022; e Congresso de Jornalismo da ABRAJI 2023.


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