Em Terceira Maior Favela do Brasil, Rio das Pedras, Oscilações da Maré e Mudanças Climáticas Aumentam Alagamentos de Esgoto

Vidas Impactadas nas Localidades de Areal 1 e Areinha

Aos pés do Maciço da Tijuca, a paisagem da localidade do Areal 1, em Rio das Pedras. Foto: Matheus Edson
Aos pés do Maciço da Tijuca, a paisagem da localidade do Areal 1, em Rio das Pedras. Foto: Matheus Edson Rodrigues

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Esta é a segunda matéria de uma série sobre justiça hídrica nas favelas escrita por jovens moradores de favela e resultado do curso “Justiça Climática no Jornalismo Comunitário: Da Construção da Pauta à Redação da Notícia”. O curso, realizado pela equipe do RioOnWatch, em parceria com o GT Jovem da Rede Favela Sustentável (RFS), aconteceu nos meses de julho-setembro de 2023.

Urbanização da Bacia do Rio das Pedras: Uma História de Negligência

Evolução da ocupação no baixo curso da Bacia Hidrográfica do Rio das Pedras. Foto: Captura de tela de artigo científico
Evolução da ocupação no baixo curso da Bacia Hidrográfica do Rio das Pedras. Foto: Captura de tela de artigo científico

Rio das Pedras está localizada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, entre os bairros de Jacarepaguá e Itanhangá, em uma área geográfica na cidade que é suscetível a inundações, tendo como delimitação, ao norte, o Maciço da Tijuca e, ao sul, a Lagoa da Tijuca. É possível identificar, no Mapa de Suscetibilidade a Inundações na Favela de Rio das Pedras, que a favela se expandiu rapidamente, se espraiando para extensas áreas da região da Baixada de Jacarepaguá, mais especificamente da Bacia do Rio das Pedras. Ao chegarem às margens do Rio das Pedras, os novos moradores, sobretudo migrantes que vieram trabalhar na Barra da Tijuca, construíram suas casas de maneiras diversas para atender suas necessidades. A favela cresceu muito e rapidamente, tanto de maneira vertical, quanto horizontal, tanto a montante, quanto a jusante do rio principal. Esse padrão de urbanização ocasionou diferentes problemas, além de potencializar o risco de enchentes.

Mapa de suscetibilidade a inundações na favela de Rio das Pedras. Foto: Captura de tela
Mapa de Suscetibilidade a Inundações na Favela de Rio das Pedras.

Rio das Pedras foi uma das favelas que mais cresceu na região nas últimas décadas. Em pouco tempo, se tornou uma das maiores favelas do Brasil, ficando em terceiro lugar com 27.573 domicílios. Mesmo extremamente urbana, ainda é possível perceber a característica de área úmida da Baixada de Jacarepaguá, em que a favela se localiza. Esse fator é fundamental para um melhor entendimento do território, visto que os bairros da região se situam sobre aterros de áreas alagadiças e de manguezal.

O processo de ocupação e autoconstrução em áreas pantanosas, sem a participação e o provimento de infraestrutura adequada por parte do Estado, tem impactos diretos na vida cotidiana dos moradores. Eles têm que lidar com alagamentos, precarização do abastecimento de água, escassez de saneamento básico, e desabamentos, devido à instabilidade do solo. Além disso, a população relata a questão das marés altas, que faz com que eles enfrentem inundações de esgoto, que vêm sempre que a maré está cheia na Lagoa da Tijuca e no Rio das Pedras. Uma mistura de esgoto com água da lagoa, insalubre, adentram ruas e residências nesses momentos.

Rua inundada por conta da maré alta durante as entrevistas do Curso de Justiça Hídrica e Energética, no dia 28 de setembro de 2022. Foto: Matheus Edson
Rua inundada por conta da maré alta em 28 de setembro de 2022. Foto: Matheus Edson Rodrigues
Localidades de Rio das Pedras.
Localidades de Rio das Pedras

A fotografia acima mostra justamente a área conhecida como Areal 1, uma rua próxima a Lagoa da Tijuca, alagada devido à maré alta. No dia da foto, não havia chovido na localidade. No entanto, a situação da rua estava completamente prejudicada, devido a um saneamento precarizado em consonância com a maré alta na região. Isso traz impactos no direito de ir e vir, à saúde e à moradia dos que vivem no local. Para os que não têm escolha e têm que trabalhar, estudar ou sair de forma geral, não há outra opção a não ser pisar no esgoto.

“Em maio de 2022, uma situação muito triste e desagradável aconteceu na nossa casa. Teve uma chuva muito forte naquele ano… entrou água em casa, porque o nível subiu muito…. Pouco tempo depois, sem nem ter acontecido chuva forte, eu estava trabalhando, eu e meu esposo, e, quando chegamos em casa, a nossa casa estava cheia de água… o nível da maré tinha subido. Entrou água pelo ralo da cozinha e do banheiro… Depois de um dia inteiro trabalhando, nos deparamos com aquela surpresa: a nossa casa cheia de água e, dessa vez, sem chuva, mas porque o nível da maré estava alto… Quando a gente chegou, estavam os brinquedos do meu filho sob as águas. Coisas que estavam no chão, como geladeira, máquina de lavar, fogão, tapete, enfim, diversas coisas: perdemos tudo… Foi muito triste, um momento desesperador. Mas, com o passar do tempo, a gente conseguiu, trabalhando, fazer uma reforma, ‘altiar’ nossa casa e tirar ela do nível que ela estava…
A tendência aqui, toda vez que chove ou quando tem ressaca no mar, é a maré subir e alagar Rio das Pedras.” — Maria José Felizardo, moradora da região da Areinha

Maré alta inunda casa de moradora da Areinha, em Rio das Pedras, em maio de 2022. Foto: Maria José Felizardo
Maré alta inunda casa de moradora da Areinha, em Rio das Pedras, em maio de 2022. Foto: Maria José Felizardo

Após a fala de Maria José, é interessante analisar o que aponta o Mapa de Susceptibilidade a Inundações, disposto acima. Vale refletir sobre as desigualdades socioambientais e como elas atingem moradores de áreas vizinhas a Rio das Pedras. Fica evidente no mapa que, tanto Rio das Pedras quanto Jacarepaguá e Barra da Tijuca possuem lugares com potencial risco de inundações. Mas será que, quando ocorrem fortes chuvas ou ressacas, todos são atingidos da mesma forma e recebem a mesma assistência do Estado? Quais são os lugares prioritários de recebimento de investimentos voltados para conter esses fenômenos?

Rio das Pedras sofreu diferentes mudanças espaciais durante sua urbanização que, somadas ao avançar das mudanças climáticas, tornam alguns eventos ambientais mais frequentes e destrutivos. As oscilações da maré têm atingido níveis mais altos do que antes. Além disso, essa água insalubre inunda áreas impermeabilizadas por asfalto e cimento, impossibilitando o escoamento e infiltração no solo. Sendo assim, esses locais também ficam alagados por mais tempo do que antes.

Essas regiões eram cobertas de manguezais, com solo permeável e florestado. Estavam plenamente preparadas para conter as marés e as cheias dos rios e da lagoa. A própria vegetação local, antes abundante, protegia a costa e as margens dos rios das marés altas, dos alagamentos e da erosão. A floresta de manguezal evitava que as cheias ganhassem a dimensão e o alcance territorial que têm hoje.

A localização de Rio das Pedras em uma área de baixada, em conjunto com esses fatores e o crônico abandono por parte do Estado criam condições que vulnerabilizam e vitimam a população local. No entanto, em bairros vizinhos, com o mesmo perfil geográfico, mas com investimentos públicos significativos e alto poder aquisitivo não há o mesmo impacto sobre as populações.

Injustiça Socioambiental em Rio das Pedras

A porcentagem dos alagamentos pode ser vista nos dados abaixo, onde se perguntou aos moradores: 'Quando chove, sua casa ou rua fica alagada?'. Foto: Relatório de Justiça Hídrica e Energética nas Favelas de 2022
A porcentagem dos alagamentos pode ser vista nos dados abaixo, onde se perguntou aos moradores: ‘Quando chove, sua casa ou rua fica alagada?’. Fonte: Relatório de Justiça Hídrica e Energética nas Favelas da Zona Oeste

No âmbito do Relatório “Justiça Hídrica e Energéticas das Favelas, lançado pela Rede Favela Sustentável e diferentes parceiros comunitários, mobilizadores, lideranças e jovens dos territórios, os moradores da favela de Rio das Pedras foram entrevistados. Mais da metade dos ouvidos respondeu que são impactados diretamente, tendo suas casas ou ruas invadidas pelo esgoto da Lagoa da Tijuca em momentos de inundação. Rio das Pedras ficou acima da média das outras 14 favelas também pesquisadas no relatório. Segundo relatos de moradores ouvidos durante a pesquisa, enchentes são um problema há décadas, mas a questão se agravou com o passar dos anos.

As injustiças ambientais são indissociáveis das desigualdades sociais. É perceptível quais são os lugares priorizados na cidade do Rio de Janeiro quando se trata de enfrentar eventos climáticos extremos e naturais e quais são abandonados à própria sorte. O impacto acontece sempre em uma escala maior sobre a população que reside em favelas.

Portanto, deve-se tratar, para além da injustiça ambiental, da injustiça socioambiental. Deve-se analisar a forma de sociabilização de cada território. A resiliência das favelas e dos bairros do asfalto às chuvas de verão, por exemplo, é bastante distinta. Ao levar em consideração os espaços de favelas e periferias, encontramos escassez de serviços, falta de políticas públicas, de investimentos e uma não prioridade dada pelos governos às demandas locais, o que põe em risco a vida e a propriedade dos moradores de favela.

Como Ocorrem as Marés?

Dinâmica das marés. Foto: Climatempo
Dinâmica das marés. Foto: Climatempo

Para retratar o fenômeno das marés, é importante destacar que estes são fenômenos naturais, regidos sobretudo por forças astronômicas. A dinâmica entre a Lua, o Sol e o planeta Terra influenciam diretamente o movimento dos mares, rios e lagoas. A gravidade desses astros funciona como uma espécie de ímã, atraindo as substâncias mais leves da Terra. É perceptível a olho nu o movimento das águas, a que se dá o nome de maré.

Assim sendo, ao longo de um dia lunar (24 horas e 50 minutos), qualquer ponto na superfície da Terra passará duas vezes por um período de baixa-mar (maré baixa) e preamar (maré alta). Essas marés poderão ter uma maior ou menor intensidade nos corpos hídricos, de acordo com as fases da lua. Em dias de lua cheia, por exemplo, pode haver uma preamar mais elevada, já durante a lua nova, a baixa-mar será mais intensa.

Outros fatores, além dos astronômicos, também ajudam a determinar o nível do mar, como as mudanças climáticas, os ventos, as entradas de frentes frias e etc. Em relação aos rios, podem ser considerados fatores que influenciam em seus níveis de água os índices pluviométricos, a taxa de impermeabilização do solo e a saúde da mata ciliar, entre outros.

A Vida dos Moradores de Areal 1 e Areinha

Dados sobre a opinião dos moradores de Rio das Pedras sobre a percepção de piora dos alagamentos no período de 2020 a 2022. Foto: Relatório de Justiça Hídrica e Energética nas Favelas, 2022
Dados com a opinião dos moradores de Rio das Pedras sobre a percepção de piora dos alagamentos no período de 2020 a 2022. Fonte: Relatório de Justiça Hídrica e Energética nas Favelas da Zona Oeste

Durante as entrevistas do curso Justiça Hídrica e Energética nas Favelas, uma das moradoras do Areal 1 relatou várias consequências de não precisar chover para ter a rua inundada. Ela afirmou, por exemplo, já ter tido sua bomba d’água queimada por consequência da maré alta e da falta de saneamento adequado.

“Quando a maré sobe, a rua aqui onde eu moro, do lado do valão, enche. Ela vai até o meio da rua… Ela enche muito. Já passei com água no joelho. Na minha casa, só não enche porque eu moro muito no alto, mas já vi muita gente perder as coisas, quem mora em baixo… já perdemos a bomba d’água, por exemplo… [os vizinhos] já perderam materiais, guarda roupas, sofá… Já vi muita gente ter que dormir fora de casa por causa da maré… A água sobe até pelo vaso…, já vi na casa de muita gente aqui… e é sempre assim quando a maré dá: a rua enche e todo mundo tem que tirar as coisas… Conheci a mulher que teve que sair da própria casa porque a maré encheu e toda vez que subia, a casa dela alagava… Ela teve que sair da própria da casa! Por conta da maré! E aqui, no areal, é sempre assim… Quase toda a minha rua, quando a maré sobe, enche.” — Jeane Carvallho

O contexto no qual essas injustiças socioambientais se concretizam é muito desigual, pois o poder público seleciona áreas prioritárias da cidade, de maior interesse do capital, para investir e tornar climatica e ambientalmente resilientes. Desta maneira, diferentes fatores prejudicam e vulnerabilizam cada vez mais a população das favelas, fruto da negligência do Estado e das desigualdades socioambientais e espaciais. Nesse cenário, os fenômenos naturais e os eventos climáticos extremos, que ocorrem em toda a cidade não impactam a todos da mesma forma.

Sobre o autor: Matheus Edson Rodrigues, nascido e criado na favela de Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio de Janeiro, é educador comunitário, professor de geografia e geógrafo pela PUC-Rio e mestrando em Geografia Física pela FFLCH/USP.

*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são ambas realizadas pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).


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