Cada vez mais, a literatura vira enredo. No carnaval de 2024, escolas de samba tradicionais desfilarão obras literárias afro-indígenas brasileiras na Avenida. Portela cria seu enredo baseado em Um Defeito de Cor, romance da escritora mineira Ana Maria Gonçalves. Grande Rio prepara um desfile inspirado no mito Tupinambá tratado no livro Meu Destino É Ser Onça, do escritor carioca Alberto Mussa. Imperatriz Leopoldinense, atual campeã, leva o folheto O Testamento da Cigana Esmeralda, escrito pelo poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, para a Sapucaí. E União da Ilha defende o enredo Doum e Amora, baseado na obra Amoras, do rapper paulista Emicida, no sábado de carnaval. Há também escolas que escolheram falar sobre obras literárias estrangeiras e seu impacto no Brasil, como a Porto da Pedra, que desfila o Lunário Perpétuo, um almanaque espanhol do século XIV.
‘Nasci Quilombo e Cresci Favela’
O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, em 1888. Apesar de tamanha atrocidade, o país também foi palco de intensa resistência, como os quilombos, que ainda ocupam importantes extensões do território brasileiro. E desde então, a definição de quilombo vem se atualizando. O pensador Abdias do Nascimento se debruçou sobre a temática e ampliou o conceito de quilombos na contemporaneidade, desenvolvendo a premissa de quilombismo, que prega a afirmação e a valorização da história e cultura negra na sociedade brasileira. Sendo assim, lugares onde os saberes, os modos de vida, a epistemologia e a ancestralidade negra foram preservados e resistiram até os dias de hoje são por cada vez mais gente considerados quilombos contemporâneos, entre eles religiões de matriz africana, afoxés, favelas, e rodas de samba.
Nesse sentido, as escolas de samba também se mantiveram na sociedade brasileira como quilombos contemporâneos, uma vez que, em prol da manutenção dos saberes, da corporeidade e da musicalidade e cultura negra, propagaram uma pedagogia que se constrói a partir da experiência, em que os saberes e conhecimentos são passados de maneira prática, a partir do contato com os mais velhos e mais velhas da agremiação. Preservam os saberes e a ancestralidade, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
“A escola de samba é um centro de processo comunitário. As festividades, as reuniões para a organização dos eventos, o espaço funciona como uma fonte de ajuda mútua. Desse modo, o aprendizado se dá na oralidade e na vivência, assim os saberes vão circulando.” — Mauro Sérgio Faria, integrante do Departamento Cultural da Portela
Samba e Literatura: Proposta que Ganha Cada Vez Mais Espaço nas Escolas de Samba
Para além das atividades tradicionais, as agremiações têm se empenhado em criar novas propostas educacionais, como as feiras literárias, nas quais o protagonismo negro é exaltado por meio de palestras, contação de histórias e exposição de livros. A primeira feira desse tipo foi feita pela Portela, em 2019, com o objetivo de integrar a comunidade à agremiação e permitir a troca de saberes.
Já no decorrer de 2023, ocorreu uma onda de feiras literárias em escolas de samba do Rio de Janeiro, uma possibilidade de valorizar as memórias e histórias das agremiações, suas comunidades e territórios, além de, em alguns casos, ajudar a apresentar à comunidade o enredo do carnaval de 2024. Portela, Mangueira, Salgueiro, Estácio de Sá e Unidos de Vila Isabel investiram em atividades em prol do direito à literatura e do letramento racial ao longo do ano, organizando, em suas quadras, feiras literárias com debates, palestras, saraus, exposições e oficinas, além de muito samba.
Essas feiras das escolas de samba são importantes para a promoção da cultura e educação negra, oferecendo oportunidades para que as pessoas conheçam mais sobre sua história, literatura e arte, através de trocas de saberes entre gerações. Essas atividades promovem o letramento racial: o aprendizado de um conjunto de práticas antirracistas que visam desconstruir a narrativa de superioridade branca. No caso da literatura, essa contranarrativa surge a partir do enaltecimento da cultura negra, da valorização da ancestralidade e da criação de protagonistas e narradores negros com voz autoral nas obras literárias.
As feiras têm sido uma oportunidade para que escritores negros divulguem seus trabalhos ao público. Isso ajuda a promover a visibilidade deles e a disseminar a literatura negra. Através de palestras e rodas de conversa, oficinas e atividades culturais, o que pode incluir oficinas de dança, música, teatro e artes visuais, as feiras literárias em escolas de samba cada vez mais ganham o Rio de Janeiro.
FLIPORTELA: A Precursora de Feiras Literárias em Escolas de Samba
Em 2023, a escola de samba centenária de Oswaldo Cruz e Madureira realizou mais uma edição da Festa Literária da Portela (FLIPORTELA), entre 28 a 30 de abril. O evento já é uma tradição na escola. Desta vez, teve como tema o romance Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, enredo da Portela no carnaval de 2024.
O livro foi vencedor do prestigioso Prêmio Casa de las Américas e incluído na lista da Folha de S.Paulo como o sétimo entre os 200 livros mais importantes para entender o Brasil em seus 200 anos de independência.
Um Defeito de Cor conta a história de Kehinde, uma mulher negra, sequestrada aos oito anos de idade no Reino do Daomé, atual Benin, e trazida para o Brasil como escravizada.
No livro, a personagem Kehinde narra sua história de vida, desde sua captura na África até sua libertação. Ela conta sobre sua vida como escravizada, seus amores, suas desilusões, seus sofrimentos e suas viagens em busca de um de seus filhos e de sua religião. Ela também conta como conseguiu sua carta de alforria e como retornou à África, onde se tornou uma empresária bem-sucedida. A personagem Kehinde foi inspirada em uma mulher real, Luísa Mahin, que viveu no Brasil no século XIX. Ela foi uma líder religiosa e política, e participou da Revolta dos Malês, um movimento de escravizados muçulmanos que lutaram pela liberdade.
“São realizados debates, discussões e diálogos de múltiplas linguagens em torno da diversidade, das práticas e projetos antirracistas e inclusivos.” — Rogério Rodrigues Santos, Diretor do Departamento Cultural da Portela
Na edição de 2023, a feira foi estruturada para ser realizada em três dias: sexta, sábado e domingo. No primeiro dia, a programação teve como público-alvo as crianças de escolas públicas. As atividades aconteceram com apoio da Secretaria Municipal de Educação. Os dias seguintes contaram com uma vasta programação aberta ao público. A FLIPORTELA é um exemplo de sucesso. Desde 2019, reune escritores, artistas, pesquisadores e educadores negros e cria um espaço de resistência e afirmação da cultura negra, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Além da centenária Portela, pioneira das feiras literárias em escolas de samba, outras agremiações também têm realizado eventos literários. Essas iniciativas são um importante passo para a valorização da cultura do samba e da educação afroreferenciada no Rio de Janeiro.
Feira Literária e Cultural (FLIC): Os 95 anos da Estação Primeira de Mangueira
Em uma proposta parecida, a Mangueira realizou, em 26 e 27 de maio de 2023, a sua primeira edição da Feira Literária Cultural (FLIC), cujo tema foi “Os 95 anos da Estação Primeira de Mangueira”.
A programação da feira incluiu atividades para todas as idades e interesses. Para as crianças e adolescentes, houve contação de histórias sobre a cultura afro-brasileira e indígena e oficinas, além de rodas de conversa sobre temas como diversidade e inclusão.
Para os jovens e adultos, ocorreram saraus e oficinas de criação poética, escrita criativa e masculinidades positivas. O estande Livros para Estudar abordou temas importantes para as mulheres, como o combate à violência de gênero, a saúde da mulher e a pobreza menstrual. Além disso, absorventes íntimos foram distribuídos gratuitamente para as alunas da rede municipal que estiveram presentes no evento.
Feira Literária e Cultural do Salgueiro: Histórias Sem Fim
Entre 20 e 21 de outubro, aconteceu a Feira Literária e Cultural “Histórias Sem Fim”, no Salgueiro. O evento foi organizado pela Secretaria Municipal de Educação, a Diretoria Cultural da Escola e a própria direção do Salgueiro. A programação contou com temas relacionados ao povo Ianomâmi, que a escola defende como enredo em 2024. Além disso, foram realizadas atividades de valorização da cultura local, como a roda de Caxambu, típica manifestação do Morro do Salgueiro.
“A tradição cultural dos povos da diáspora era primordialmente oral… Temos percebido uma crescente produção e divulgação de literatura negra. As feiras juntam esses saberes de forma a valorizar as histórias que representam a origem das escolas de samba e de todas essas culturas, antes vistas como secundárias. As escolas de samba, notadamente o Salgueiro, sempre foram a vanguarda na divulgação da história dos povos marginalizados.” — Marcelo Pires, Diretor do Departamento Cultural do Salgueiro
Feira Literária da Diversidade da Estácio de Sá
Já em 28 e 29 de outubro de 2023, aconteceu, na Escola de Samba Estácio de Sá, no Centro da cidade, a Feira Literária da Diversidade. O evento contou com expositores de livros, em sua grande maioria, tratando da temática étnico-racial. Durante esses dois dias, aconteceram ciclos de palestra sobre literatura, história e meio ambiente, rodas de conversa, contação de histórias, além de atividades lúdicas e tecnológicas voltadas para crianças.
“As escolas de samba são o lugar da diversidade, onde se respeita o idoso, a criança e o meio ambiente falando de ancestralidade. Nas feiras, esse diálogo acontece por meio da literatura… Além disso, as feiras literárias podem incentivar novos(as) escritores(as), trazendo o letramento racial e o pertencimento daquela comunidade, tirando o olhar elitista sobre [o que é] a literatura.” — Bianca Ferraz, bibliotecária e curadora da Feira Literária da Diversidade
FLIVILA: Uma Mistura de Bossa, Samba e Literatura
Para fechar as feiras literárias de escolas de samba em 2023, a agremiação da Vila Isabel, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, realizou a Festa Literária e Cultural da Vila Isabel (FLIVILA). As atividades ocorreram no dia 1 de dezembro de 2023.
A programação foi construída tendo em vista o enredo do carnaval 2024: Gbalá, viagem ao templo da criação. Reedição do carnaval de 1993, o enredo debate a crise climática e a necessidade do protagonismo infantil no socorro ao planeta. Segundo a Vila Isabel, a salvação da humanidade passa pelas mãos das crianças, educadas e conscientes socioambientalmente. Como diz o samba da Vila: “a criança é a esperança de Oxalá”.
“A literatura é multifacetada. Desenvolve o senso crítico, a criatividade, a leitura e a compreensão de mundo. Com a literatura, conseguimos entrar em múltiplas narrativas… Já nas escolas de samba, essa importância vai além disso. É possível apresentar para a comunidade essa porta, mostrar que a literatura é um caminho de transformação social, assim como o samba… mostrar que escola de samba vai além do carnaval. Precisamos levar mais feiras e festas literárias para esses territórios para formar leitores e, por que não, escritores!?” — Tathiane Cristina Queiroz de Azevedo, Diretora Cultural do Herdeiros da Vila, escola de samba mirim da Unidos de Vila Isabel
Literatura Dá Samba
As feiras literárias realizadas pelas escolas de samba em 2023 foram um sucesso. Elas reuniram milhares de pessoas, de todas as idades e origens, em torno da literatura e da cultura afro-indígena brasileira. Esses eventos são importantes por diversos motivos, pois eles promovem a leitura e a escrita, incentivam o acesso à cultura e à informação, valorizam a cultura afro-indígena brasileira, dão visibilidade a autores e artistas negros, ajudam a combater o racismo e promovem a igualdade racial. Diante do sucesso e da relevância dessas feiras, é natural que se espere que mais eventos semelhantes ocorram em escolas de samba em 2024.
Para que esses eventos sejam ainda mais relevantes, é importante que eles se mantenham inclusivos e gratuitos ou a preços acessíveis, para que todos possam participar. O letramento racial e a visibilidade conferida às culturas afro-indígenas brasileiras são fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária no Brasil. Acompanhem as redes sociais das escolas de samba ao longo de 2024 para mais informações sobre novas edições das festas e feiras literárias das agremiações cariocas.
Sobre a autora: Carol Marinho é cria do Complexo do Alemão, mestra em Relações Étnico-Raciais, educadora e jornalista.