Retrospectiva 2023 (10ª Edição): Melhores Reportagens Internacionais sobre as Favelas do Rio de Janeiro

RESUMO DE UM ANO DE REPORTAGENS SOBRE AS FAVELAS

Foto aérea do Sol Nascente. Foto: Jorge William/Agência O Globo
Foto aérea do Sol Nascente, hoje maior favela do Brasil. Foto: Jorge William/Agência O Globo

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Esta é a 10ª contribuição da nossa série anual de matérias analisando as Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre Favelas do Rio, que faz parte do debate promovido pelo RioOnWatch sobre a narrativa e as representações midiáticas acerca das favelas cariocas.

Uma Sensível Melhora nas Coberturas da Mídia Internacional em 2023

Já mais longe do espectro da Covid-19, o período de transição e tensão política foi foco no início do ano na mídia internacional cobrindo o Brasil, especialmente devido aos ataques à Brasília de 8 de janeiro. A divisão política que vive a população do país continuou aos olhares, mas foram também feitas análises propositivas e houve um importante foco na sustentabilidade ambiental na área diplomática.

Posse das ministras dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e da Igualdade Racial, Anielle Franco. Foto: Valter Campanema/Agência Brasil
Posse das ministras dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e da Igualdade Racial, Anielle Franco. Foto: Valter Campanema/Agência Brasil

Foi neste contexto que o ano começou com as matérias internacionais sobre favelas anunciando um passo em prol da sua representatividade, com sua segunda cria nomeada ministra, Anielle Franco, Ministra da Igualdade Racial e irmã da vereadora assassinada, Marielle Franco, fato noticiado por Time e The Guardian

Nesse contexto de mudança e busca por uma representatividade mais expressa, temos visto as manchetes internacionais sobre favelas cada vez mais tomando cuidados em suas abordagens e dando espaço à voz ativa de seus moradores e agentes. Se comparado com a primeira edição desta série, de 2014, não há dúvida: na época, a grande maioria das reportagens internacionais sobre favelas eram estereotipadas, cheias de narrativas nocivas, contraproducentes, e preguiçosas. Com isso começávamos o levantamento anual com as piores reportagens, pois haviam pouquíssimas boas matérias. E por que isso é importante? Porque nossos governos, do federal ao municipal, se norteiam em suas ações e percepções, também pela opinião pública internacional.

Hoje, no entanto, a maioria das matérias internacionais saindo em grandes meios sobre favelas contam com moradores como os protagonistas e exploram temas bem variados, alguns apresentando visões profundas e com significativo nuance. Com isso, este ano iremos focar só nelas—as melhores—mencionando erros e limitações das mesmas quando apropriado, ao longo da matéria.

Justiça Climática e Protagonismo Local Surgem Como Foco 

Ao longo de 2023, em que vimos a crise climática se acentuar no Brasil e no mundo, um foco crescente de interesse da imprensa internacional surgiu nas favelas como primeiros palcos da transição climática, para pior ou para melhor, e como elas lidam com essa crise, que tem cada vez mais causado a falta de água e energia.

Em abril, The New York Times publicou a matéria “As Favelas do Brasil Oferecem Lições sobre como Construir Confiança”, compartilhando soluções vindas das favelas e conscientizando seu público sobre as crises que as favelas enfrentam, compartilhando o efeito crítico da desconfiança gerada historicamente por governantes sob situações como da pandemia, e a importância dos movimentos comunitários na diminuição dos danos da mesma. Coletivos comunitários do Jacarezinho, Morro dos Prazeres e Maré informaram a matéria.

Membros do LabJaca na sede da organização, no Rio de Janeiro, Brasil. Foto por Ian Cheibub para o The New York Times
Membros do LabJaca na sede da organização, no Rio de Janeiro, Brasil. Foto: Ian Cheibub/The New York Times

Outra abordagem propositiva, Reuters realizou uma reportagem “Munidos de Dados, Moradores de Favelas Exigem Melhores Serviços“, mostrando como favelas na África do Sul e no Brasil, exemplificado pelo LabJaca no Jacarezinho, têm cada vez mais coletado dados próprios entendendo a necessidade de obter dados para se lutar por direitos. A palavra slum, que sempre reforçamos não ser adequada, é utilizada, porém neste caso pode ser entendido pela inclusão da África do Sul na matéria, cujas próprias comunidades fazem uso do termo, que remete ao que no Brasil consideraríamos favelas improvisadas e ainda não consolidadas.

Em “Eventos Climáticos Extremos Servem Apenas para Aprofundar a Desigualdade no Brasil” no The Brazilian Report, a comunidade do Santa Marta, na Zona Sul do Rio, é pano de fundo para apresentar a injustiça brasileira no que se diz respeito ao acesso ao recurso mais básico para existência—água—ainda mais em momento de calor extremo. Diferentemente do bairro no entorno, Botafogo, a favela ficou seis dias sem água. Notícia correlata, a CGTN fez uma videorreportagem sobre como moradores da Rocinha enfrentam o calor extremo sem acesso à energia.

Porém, apesar do extremo calor e da cada vez mais aparente falta de vontade do poder público em responder de forma sensata e responsável, como a matéria acima do The New York Times, outras também trouxeram a força da tentativa das próprias comunidades em dar resposta. Em “‘Hell de Janeiro’: Calor Escaldante Chama Atenção para a Gritante Desigualdade no Brasil, publicado no The Guardian, além de falar da brutalidade do calor de 58.5C deste verão e do seu impacto exagerado sobre as favelas em relação ao resto da cidade, foi destacada a resposta desenvolvida por Luis Cassiano Silva do Parque Arará, Zona Norte do Rio, ao instalar um teto verde, hoje renomado, em sua casa. Reuters e Undark ambas também elaboraram matérias extensas sobre o trabalho do Teto Verde Favela.

Imagem da matéria no The Guardian com foto legendada “Um homem se refresca na favela Parque Arará, no Rio de Janeiro.” Fotografia: Silvia Izquierdo/AP
Imagem da matéria no The Guardian com foto legendada “Um homem se refresca na favela Parque Arará, no Rio de Janeiro.” Fotografia embutida na imagem por Silvia Izquierdo/AP

A energia solar como solução na favela também foi foco entre as matérias mostrando soluções oriundas das comunidades para as questões climáticas. Na matéria “Como Mobilizadores nas Favelas do Rio estão Captando a Energia Solar”, em Next City, o projeto solar realizado pela Associação de Mulheres de Atitude e Compromisso Social (AMAC) que atua contra violência doméstica na comunidade Dique da Vila Alzira em Duque de Caxias há mais de 10 anos, junto da Rede Favela Sustentável*, realizou um projeto solar emocionante que mostra o potencial da geração distribuída se fosse capaz de atingir escala nas favelas.

Nill Santos, presidente da AMAC, comemora o recebimento das placas fotovoltaicas na sede da associação junto de Hans Rauschmayer, da Solarize. Foto: Alexandre Cerqueira
Nill Santos, presidente da AMAC, comemora o recebimento das placas fotovoltaicas na sede da associação junto de Hans Rauschmayer, da Solarize. Foto: Alexandre Cerqueira/RioOnWatch

Moradia, Arquitetura e Urbanização no Alvo

Focando de forma mais ampla sob a ótica da moradia, o canal do YouTube Tracks fez um documentário na Providência e Tavares Bastos, no Rio para a série Mostre-me Onde Você Mora:

Casa na favela do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, ganha prêmio internacional de “Casa do Ano 2023”. Foto: Leonardo Finotti
Casa na favela do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, ganha prêmio internacional de “Casa do Ano 2023”. Foto: Leonardo Finotti

Também chamou atenção da mídia internacional a casa em uma favela de Belo Horizonte que ganhou um prêmio internacional de arquitetura devido a seu design inovador, noticiado na AFP e, consequentemente, em muitos outros como no Reuters, The Jordan Times, The Times of Malta, The Taipei Times e The Manila Post. A casa ganhadora do prêmio tem dois andares, de alvenaria, com ambientes planejados, decoração única, janelas amplas, focada no uso e no conforto do morador.

E foi noticiado que não é mais a Rocinha, no Rio, e sim o Sol Nascente, em Brasília, a maior favela do país, pelo Associated Press. O veículo pintou um panorama realista e respeitoso do Sol Nascente, usando a Rocinha como comparação, já que esta é mundialmente conhecida. Por ser da AP, como AFP, uma agência que reporta para que seja repassada por numerosos outros meios globais, a reportagem foi republicada no Los Angeles Times e KTVZ, entre outros.

Foto aérea do Sol Nascente., a maior favela do Brasil, no Distrito Federal. Foto: Jorge William/Agência O Globo
Foto aérea do Sol Nascente, a maior favela do Brasil, no Distrito Federal. Foto: Jorge William/Agência O Globo

Ainda sobre habitação, uma inovadora reportagem fotográfica realizada a partir da parceria de uma repórter e uma moradora da Ocupação Vitória, em Diamantina, Minas Gerais, foi publicada na Al Jazeera. A matéria, “‘Tudo é Prioridade’ Como uma Família que Vive em uma Ocupação Informal no Brasil Gerencia seus Gastos“, de longe é uma das abordagens mais diferentes e respeitosas da lista pois delineia os percalços e violências não apenas cotidianas, mas também financeiras de alguém que mora em favelas.

Também foi possível observar ao longo do ano matérias sobre temas econômicos sendo publicadas. The Brazilian Report fez uma reportagem sobre o potencial econômico das favelas intitulado “As Favelas do Brasil Têm Um Enorme Potencial Não Aproveitado“. O The Conversation resumiu, em “Como a Dívida se Transformou em uma Nova Forma de Trabalho para as Mulheres”, uma pesquisa francesa sobre o endividamento das famílias, com personagens em favelas ao redor do mundo—incluindo o Brasil. O estudo afirma que as mulheres são as mais afetadas pelas dívidas e seus efeitos.

Foto por ErenMotion/Shutterstock na matéria do The Brazilian Report sobre o potencial das favelas brasileiras. https://brazilian.report/society/2023/07/16/favelas-huge-untapped-potential/
Foto por ErenMotion/Shutterstock na matéria do The Brazilian Report sobre o potencial das favelas brasileiras.

Violência Ainda Prevalente na Mídia Internacional em 2023 

Infelizmente, em 2023, ainda não foi possível comentar sobre a cobertura da imprensa estrangeira sobre favelas sem falar sobre violência, operações policiais e tiroteios. Porém, o foco foi claramente na descomunal violência policial, em especial, no início de agosto, com matéria do Reuters ressaltando que “o Brasil, o país com o maior número de assassinatos no mundo, também abriga algumas das forças policiais mais mortíferas do planeta”. A BBC observou que 45 pessoas foram mortas em poucos dias pela polícia em favelas em três estados brasileiros. E, na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio, a Associated Press reportou sobre a mais recente chacina na comunidade, que matou 9 vítimas locais e dois policiais.

The Guardian publicou‘O Estado é Assassino’: Brasileiros Prometem Justiça para Menino de 13 Anos Baleado pela Polícia“,  sobre o assassinato de Thiago Menezes Flausino, uma criança de 13 anos, vítima da violência policial na Cidade de Deus. O menino, desarmado, foi alvejado cinco vezes enquanto estava na garupa de um mototáxi, voltando para casa depois de um dia de treinos de futebol e estudos. Em uma reportagem emocionante, o jornal inglês traz depoimentos de familiares e do técnico de futebol de Thiago, além de estatísticas que comprovam o viés racista da atuação policial no Brasil. 

Ainda nesse contexto, The Brazilian Report trouxe à tona que “As Balas da Polícia no Rio Não são Apenas Mortais, são um Perigo para a Saúde Pública“, e a InSight Crime apresentou uma abordagem semelhante, mas voltada para o prejuízo econômico que a guerra às drogas brasileira traz para as favelas.

Outro evento coberto pela mídia internacional foi a coordenada série de ataques que paralizou a Zona Oeste do Rio de Janeiro, no final de outubro de 2023. Destacamos que os ataques não ocorreram dentro de favelas, mas conforme a visão do público é historicamente condicionada a associar estes tipos de ato à favelas, é importante analisar. Pois aqui se tratou de um caso de milicianos que orquestraram os atentados em resposta à morte de um dos braços direitos do maior miliciano do estado do Rio de Janeiro. O The Guardian publicou que “Gangues Paramilitares no Brasil Incendeiam mais de 35 Ônibus em Ataques no Rio de Janeiro,” utilizando um título adequado para descrever a situação como conectada com grupos paramilitares e milícias e não moradores de favelas. Portanto, a grande maioria das matérias que saíram em meios internacionais foi oriunda da republicação da matéria da Reuters, que saiu com o título genérico de “Gangsters do Rio Incendeiam pelo Menos 35 Ônibus após Morte de Chefão do Crime no Brasil“, dependendo da leitura do texto para que o público se informe que aqui não se trata do tráfico de drogas e sim das “chamadas milícias do Rio, muitas vezes compostas por atuais e ex-policiais, [que] tornaram-se uma das maiores ameaças à segurança da região”.

Cultura nas Favelas para Além do Lugar Comum

Mobilizadores nos falam de seu desconforto com a cobertura tradicional da mídia em temas como cultura nas favelas. Esse e outros temas têm sido historicamente mobilizados no processo de estigmatização e de delimitação dos papéis sociais possíveis para moradores de favela. Ao falar de temas como a alimentação, a cultura, o esporte, a religião e a fama, em geral, mostra-se, na mídia tradicional, a favela e seus moradores pela fome, carência de cultura, pelo esporte e religião como única saída, e pela fama através do tráfico ou do crime. 

No entanto, em 2023, essa tendência foi quebrada por muitos meios da mídia internacional. A AFP disseminou a importância do trabalho da Gastromotiva e de Ana Lúcia Costa com suas cozinhas solidárias na Rocinha, em “Chefs de Favelas do Brasil Dizem que os Pobres Também Deveriam Comer Bem“. É criada uma perspectiva não de salvação externa, mas sim de protagonismo do morador, que luta para que seus vizinhos em vulnerabilidade social tenham acesso a pratos gostosos, sofisticados, nutritivos e saudáveis. Contudo, apesar da cobertura propositiva, a AFP persiste no uso do termo slum nesta reportagem, que foi republicada em meios como The Tico Times, The Star, Kuwait Times e Malay Mail.

Outra fonte de notícias francesa, Le Monde publicou uma matéria destacando os museus comunitários nas favelas, resumindo sua importância: “Os bairros populares das cidades brasileiras vivenciam o surgimento de ‘museus sociais’, cujo objetivo é valorizar as populações invisíveis“.

Le Monde sobre museus de favela. Foto: Bruno Meyerfeld / Le Monde
Le Monde sobre o Museu de Favela, no Pavão-Pavãosinho/Cantagalo. Foto: Bruno Meyerfeld/Le Monde

Le Monde apresentou perspectivas inovadoras de reflexão sobre a desigualdade social brasileira, publicando uma análise sobre o desaparecimento dos “quartos de empregada”, uma herança racista e escravocrata. O mesmo jornal fez uma apresentação panorâmica sobre os bate-bolas, figuras do carnaval do subúrbio carioca, patrimônio de favelas e periferias do Rio de Janeiro.

Ainda no espectro da cultura, foi publicada uma interessante matéria no The Guardian sobre como uma música marginalizada, preta e de favela, o funk ganhou os museus do asfalto, como o Museu de Arte do Rio.

Durante o ano também foi perceptível a análise territorializada em favelas de temas que estavam em destaque mundial, como o The Guardian que publicou sobre como jovens jogadoras femininas na comunidade Beira-Mar em Duque de Caxias estão quebrando com o machismo e se preparando para futuras Copas do Mundo. E o filme Barbie inspirou uma videorreportagem da Associated Press sobre a Barbie Negra do Complexo do Alemão.

No ano de 2023 também foram publicadas matérias em duas revistas internacionais católicas. La Croix relatou  as dificuldades que a Igreja Católica têm tido para denunciar violações de direitos humanos nas favelas. Enquanto isso, a Black Catholic Messenger publicou um extenso e profundo perfil de Frei David Santos e seu papel crucial para a realização das políticas afirmativas através da Educafro no Brasil.

Também foram publicadas matérias que humanizam as favelas a partir da apresentação de personalidades interessantes. O The Guardian realizou um perfil com o criador de conteúdo e cria da Maré, Raphael Vicente, “TikToker Brasileiro se Torna Viral Mostrando a ‘Alegria da Favela’“.

E a revista Time apresentou, em “Este Jornalista Brasileiro está Dando Voz aos Moradores das Favelas“, Rene Silva, fundador do Voz das Comunidades, e a história de crescimento do jornal que hoje conta com equipe de 35 pessoas cobrindo “cultura, política, esportes, educação e problemas de negligência do Estado”.

Raphael Vicente nas ruas do Complexo da Mare. Foto: Kristin-Bethge / The Guardian
Raphael Vicente nas ruas do Complexo da Maré. Foto: Kristin Bethge/The Guardian

*A Rede Favela Sustentável e RioOnWatch são ambas iniciativas realizadas pela Comunidades Catalisadoras (ComCat).


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