Arte, Resistência e Luta Ancestral no Carnaval, Parte 1: A Tradição Suburbana do Bate-Bola ou Clóvis, Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro

Os Bate-bolas ou Clóvis são patrimônio imaterial do Rio de Janeiro, manifestação cultural periférica e de favelas das zonas Norte e Oeste, além da Baixada Fluminense. Favela do Muquiço, 2022. Foto: Ratão Diniz
Os Bate-bolas ou Clóvis são patrimônio imaterial do Rio de Janeiro, manifestação cultural periférica e de favelas das zonas Norte e Oeste, além da Baixada Fluminense. Favela do Muquiço, 2022. Foto: Ratão Diniz

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Esta é a primeira matéria de uma série de três sobre tradições carnavalescas de favelas e periferias que trata, respectivamente sobre: Bate-Bolas, forte tradição nas zonas Norte, Oeste e na Baixada Fluminense; Agremiações da Série Bronze e Prata, em sua maioria, escolas de samba de favela; e Bloco Se Benze Que Dá (SBQD), do Conjunto de Favelas da Maré. Elas representam estes Rios desiguais, que insistem em (re)existir em forma de arte e purpurina.

Longe dos holofotes do Sambódromo, o carnaval das favelas e periferias revela a força do trabalho comunitário como agente de construção da folia. Neste cenário de contrastes, moradores de favelas e periferias da Região Metropolitana são os responsáveis por resguardar as tradições e a cultura popular do carnaval. Seja por amor, paixão ou ativismo, ninguém abre mão de colocar o carnaval na rua, mesmo com poucos recursos.

Os Bate-Bolas: Patrimônio Imaterial do Subúrbio Carioca

Memórias do Subúrbio Carioca. Fonte: Facebook
Memórias do Subúrbio Carioca. Fonte: Facebook

Cobertos da cabeça aos pés com fantasias vibrantes, com máscaras que mesclam a estética de palhaços com personagens de terror, os grupos de bate-bola, também conhecidos como Clóvis (uma evolução da palavra inglesa clown, que significa palhaço), são uma tradição singular do carnaval carioca. Tradição carnavalesca dos subúrbios e áreas periféricas do Grande Rio.

“Saí de Campo Grande com 14 anos, mas o subúrbio do Rio nunca saiu de mim. E o carnaval bom mesmo não era o de Campo Grande, era o de Santa Cruz. Era o ano inteiro esperando o carnaval e juntando o dinheiro para comprar a fantasia. E a fantasia era do Clóvis. A minha era preta com amarelo. É indescritível a sensação de juntar aquele dinheirinho por mês, porque era caro. E aí, chegar na hora do carnaval, comprar o Clóvis, botar aquela roupa e sair pelas ruas batendo a bexiga no chão, batendo bola e brincando com as pessoas. Nada foi tão especial para mim quanto meus tempos de bate-bola. Até os 19 anos, eu saia de onde estivesse para sair com meu Clóvis pelas ruas de Santa Cruz durante o Carnaval.” — Claudia Santiago, jornalista e coordenadora do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC)

Foto de divulgação em grupo do Facebook. Postada por: Robsom Sampaio
Foto de divulgação em grupo do Facebook. Postada por: Robsom Sampaio

Além das máscaras, os bate-bolas são caracterizados pelas fantasias temáticas e coloridas, que apresentam visões diferentes sobre a identidade de palhaços, mas, principalmente, são conhecidos pelo bastão amarrado a uma bola de borracha que carregam ou sombrinhas e cajados. Em 2012, a arte dos Clóvis foi declarada Patrimônio Cultural Carioca de Natureza Imaterial.

Cultura de Rua Viva e o Papel do Estado

No Carnaval 2024, pela segunda vez na história, as turmas de bate-boleiros do estado do Rio de Janeiro foram contempladas pela Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa (Sececrj) com o edital “Turmas de Bate-Bolas RJ 2”, que premiou 100 projetos, com valor de R$25.000 cada, somando R$2,5 milhões. Ao todo, 122 turmas de bate-bolas cumpriram com as exigências estabelecidas pelo edital e receberam o incentivo.

A iniciativa faz parte de um pacote de editais “Folia RJ 2”, que foi dividido em três categorias: “Folias de Reis RJ 2”, “Bloco nas Ruas RJ 2” e “Turmas de Bate-Bolas RJ 2”. Juntos, os três editais garantiram um fomento de R$13 milhões para o carnaval de rua do Rio, através da seleção de 311 projetos, para a realização da maior festa popular do país.

A prática e a cultura dos Bate-bolas é antiga. Segundo a pesquisadora e professora do Instituto de Arte da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Aline Gualda Pereira, no artigo Os bate-bolas do carnaval contemporâneo do Rio de Janeiro, os primeiros registros na cidade são do início do século XX. Hoje, a cultura dos Clóvis incorpora elementos modernos da cultura pop, com fantasias inspiradas em super-heróis, filmes e desenhos animados. Os trajes temáticos são confeccionados com uso de alta tecnologia em estamparia, ao longo de cerca de 10 meses antes de ganharem as ruas em fevereiro.

De acordo com a pesquisadora, os integrantes geralmente são homens, mas há grupos com alas de mulheres e também de crianças. Ainda segundo ela, são, em geral, formados por pessoas que moram no mesmo bairro ou comunidade, com idades entre 25 e 40 anos. Os grupos gravam hinos em estúdios, postam vídeos nas redes sociais.

“Essas meninas que estão aí ajudando carregando as coisas, elas trabalham no barracão também colocando [adereços]. É uma vitória porque eram esposas que, quando os maridos saíam [no grupo de Clóvis], batiam neurose. Aí, depois que conheceu a turma, sai de Clóvis e ainda ajuda a fazer. É bate-bola todo mundo. São mais de 30 mulheres.” — Fabiano Lima, no documentário Turma Bem Feito, disponível no YouTube

Mulheres têm participado cada vez mais das turmas e famílias de Clóvis ou Bate-bola, na foto, integrante da Turma Estrelas, da Favela do Muquiço, Zona Norte do Rio de Janeiro, 2022. Foto: Ratão Diniz
Mulheres têm participado cada vez mais das turmas e famílias de Clóvis ou Bate-bola, na foto, integrante da Turma Estrelas, da Favela do Muquiço, Zona Norte do Rio de Janeiro, 2022. Foto: Ratão Diniz

No Carnaval 2024, a Turma Bem Feito, por exemplo, um dos maiores grupos de clóvis da Zona Oeste carioca, com mais de uma década de folia, homenageia a cantora Marília Mendonça, que morreu em um acidente de avião. O grupo promete levar 400 bate-bolas, sendo 300 adultos e 100 crianças para a folia: “Os 400 de Marília”. A Tuma Bem Feito já foi três vezes campeã no concurso de Folião Original da RioTur, que premia grupos de bate-bolas: em 2015, 2019 e em 2023.

Esta é a primeira matéria de uma série de três sobre tradições carnavalescas de favelas e periferias.

Sobre a autora: Tatiana Lima é jornalista, comunicadora popular e coordenadora de jornalismo do jornal Fala Roça, Mestra em Mídia e Cotidiano pela UFF e doutoranda em Comunicação pela mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa Pesquisadores Em Movimento do Complexo do Alemão, ainda atua como professora de técnicas de reportagem no Curso de Comunicação Popular do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC). Feminista negra, cria da Favela do Quitungo e do Morro do Tuiuti, hoje é moradora do asfalto periférico do subúrbio do Rio.


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