Conheça a História do Livro Varal de Lembranças, Escrito por Estudantes do Ensino Noturno na Rocinha em 1983, em Plena Ditadura

Seu Baiano e Chico Barbeiro. Foto: Fábio Costa e Silva/Varal de lembranças/Acervo Museu Sankofa Memória e História da Rocinha
Seu Baiano e Chico Barbeiro. Foto: Fábio Costa e Silva do Varal de Lembranças, Acervo Museu Sankofa Memória e História da Rocinha

Esta matéria faz parte da série de Memórias de Potências Faveladas do RioOnWatch, que visa documentar e celebrar a história das favelas do Rio de Janeiro através de relatos e reportagens sobre a memória coletiva em sua luta cotidiana pelo direito a uma vida plena.

A Invisibilidade na História e a Necessária Centralidade das Favelas

Composta principalmente de heróis militares e governantes, fica evidente a ausência das populações de favela ou de qualquer grupo racializado na História do Brasil. As favelas têm direito à memória e, mais importante, precisam ser reconhecidas e valorizadas pelo papel central desempenhado no funcionamento da cidade do Rio de Janeiro. As favelas sustentam nossa economia e desenvolvimento. Todos somos positivamente afetados pela riqueza gerada pelas e nas favelas. No entanto, acima de tudo, a favela é um ativo carioca na luta popular por moradia, contra a centenária crise de habitação.

Capa do livro Varal de Lembranças Histórias e Causos da Rocinha
Capa do livro Varal de Lembranças Histórias da Rocinha

É neste cenário de luta e resistência que as memórias de um povo são vivenciadas e produzidas. Com vistas a preservar algumas destas memórias, estudantes-trabalhadores do curso noturno de alfabetização de jovens e adultos resolveram escrever um livro coletivo sobre suas lembranças. Escrito entre os anos de 1978 e 1983, durante a Ditadura Militar, o livro Varal de Lembranças: Histórias da Rocinha foi uma experiência que serve até hoje de referência de resgate e registro da memória local.

A obra construiu e documentou novas narrativas históricas, a partir das vozes de favelados e faveladas em meio à ditadura. Em um regime autoritário, essa perspectiva de inclusão das histórias ordinárias vivenciadas pelos sujeitos da favela foi revolucionária e democratizante.

Uma pesquisa com alunos do programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) deu origem ao Varal de Lembranças, fruto de um curso de Estudos Sociais da escola noturna da Ação Social Padre Anchieta (ASPA). Este foi o primeiro livro a ser publicado por um coletivo de favela e se constitui como um artefato único, de referência para a História do Brasil. Para tal, o papel da escola foi fundamental. Trabalhar com alunos do EJA é reconhecer o poder que a escola pode exercer na vida de alunos, que são mães, pais e trabalhadores antes de serem estudantes. A escola se propôs a ser instrumento dos minorizados para contar a própria história e meio para formar novas bases para a educação, a preservação da memória e do patrimônio favelados.

No entanto escrever, editar e publicar um livro é um processo longo e caro. Portanto, os alunos resolveram encaminhar o projeto para o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC/IPHAN), que lançava editais para iniciativas de pessoas jurídicas que valorizassem a diversidade regional. Assim sendo, a candidatura teve que ser feita via pessoa jurídica. As organizações que encamparam o projeto foram a União Pró-Melhoramento dos Moradores da Rocinha (UPMMR) e a Associação de Moradores da Favela da Rocinha.

A História do Varal de Lembranças: Histórias da Rocinha

Ser aluno de alfabetização de jovens e adultos em cursos noturnos foi o caminho encontrado por trabalhadores que, ao longo da vida, tiveram que priorizar sua subsistência e, por esse motivo, não tiveram a oportunidade de concluir ou frequentar o ensino regular em idade “padrão” até o fim.

Em plena ditadura, em uma turma de Educação para Jovens e Adultos, um grupo se reuniu para assumir a tarefa de pensar como seria a história da favela da Rocinha de acordo com as memórias dos moradores e pelas suas próprias palavras. Foram motivados pela constatação da total ausência de obras e de autores que fossem representativos da favela e que tivessem escrito como e para favelados e faveladas. O que se via na literatura colocada à sua disposição era o silêncio sobre si mesmos, principalmente, nos livros didáticos.

“Percebemos que pouco ou quase nada existia a respeito da história dos trabalhadores e das favelas.” — Varal de Lembranças: Histórias da Rocinha

Sumário do Livro Varal de Lembranças. Foto: Acervo Museu Sankofa Memória e História da Rocinha
Sumário do livro Varal de Lembranças. Foto: Acervo Museu Sankofa Memória e História da Rocinha

Assim, surge o embrião do projeto de escrita do livro. Em 1978, durante as aulas de Estudos Sociais do terceiro ano da Escola Noturna da Ação Social Padre Anchieta, o processo de produção literário de fato começou. Desde o início do processo de produção, a obra ofereceu uma perspectiva inusitada à época e permitia observar, a partir de um novo enfoque, novas possibilidades de abordagem, tecendo discussões acerca da memória e da identidade das populações faveladas.

O fato de um livro ter sido publicado por estudantes de ensino noturno de uma favela, em um projeto realizado em parceria com a Associação de Moradores, mostrava que a democracia era possível, justamente por contradizer a narrativa hegemônica esteriotipada e estigmatizadora das favelas, que até hoje ecoa em frases como: “favela não dá escritor, dá ladrão, tarado e vadio”, como registrou Carolina Maria de Jesus no seu livro Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-Favelada, publicado em 1961. Locais populares associados ao mito da marginalidade, não são vistos por seu potencial literário ou cultural. Nestes espaços, não se espera que a cultura possa florescer.

Agradecimentos do Livro Varal de Lembranças, p. 8. Foto: Acervo Museu Sankofa Memória e História da Rocinha
Agradecimentos do livro Varal de Lembranças, p. 8. Foto: Acervo Museu Sankofa Memória e História da Rocinha

A experiência dos estudantes na criação do livro teve três fases. A primeira, com a formação da turma, foi composta por pessoas aparentemente sem conexões entre si, tendo como fio condutor a busca pela alfabetização tardia no sistema de supletivo noturno. A segunda, com as “leituras”, tanto dos livros didáticos quanto dos fragmentos de suas vidas, houve o reconhecimento de uma história deficitária, que ainda não tinha sido contada e que precisava ser composta. A terceira, com a ousadia em catalogar diferentes relatos de histórias sobre a vida na favela para publicação: mesmo diante das divergências de narrativas apresentadas, os moradores colocaram a mão na massa e começaram a produzir o livro.

As favelas já foram objeto de um grande número de abordagens e estudo: higienizadas ou antropologizadas; exaltadas ou negadas; removidas ou urbanizadas. Este pode até ser um dos fatores que, com o tempo, tenha contribuído para uma melhor compreensão sobre o que são as favelas e a realidade de negação do direito à moradia e do racismo estrutural no espaço urbano carioca. É como afirma o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Adair Rocha em seu livro Cidade Cerzida: A costura da cidadania do Morro Santa Marta: “a favela está na raiz da questão social brasileira, de herança escravista, cujo tratamento hierarquizado, diferenciador e desigual, marca a construção e a manutenção da cidade e da sociedade”.

Direito à Memória em Tempos Sombrios

Varal de Lembranças: Histórias da Rocinha, publicado em 1983, foi o resultado de um exercício de construção de autoimagem feito por um grupo de estudantes de educação de jovens e adultos da maior favela carioca que, até pouco tempo, ostentava o título de maior favela da América Latina. Faziam parte a equipe professores, educadores comunitários, fotógrafos, membros da associação de moradores, representantes de centros comunitários, e interessados nas origens da história local, que tinham fontes em fragmentos de carta, retratos de álbuns, poesias, folhetos, sambas de enredo e recortes de jornal, além, é claro, dos alunos. Eles emendaram lembranças e guardados para criar um livro.

Seu Nestor Viana no Livro Varal de Lembranças. Foto: Fábio Costa e Silva / Acervo Museu Sankofa Memória e História da Rocinha
Seu Nestor Viana no livro Varal de Lembranças. Foto: Fábio Costa e Silva / Acervo Museu Sankofa Memória e História da Rocinha

Matricular-se no curso noturno de alfabetização de jovens e adultos foi o caminho encontrado por trabalhadores que tiveram que priorizar sua subsistência e, por esse motivo, não concluíram ou frequentaram o ensino regular na idade “padrão”. São alunos que trabalham e estudam durante a semana: cozinheira, balconista, datilógrafa e outros. Sujeitos marginalizados nas esferas socioeconômicas, que tomaram consciência de seu papel cultural como autores-moradores da Rocinha e aceitaram o desafio de pensar e escrever suas próprias memórias e vivências, além de coletar experiências de outros moradores da favela onde vivem, através de escuta ativa. Escreveram um livro com a história que perceberam que faltava nas livrarias e bibliotecas.

 Assuntando, livro Varal de Lembranças. Foto: Fábio Costa e Silva/ Acervo Museu Sankofa Memória e história da Rocinha
Assuntando, livro Varal de Lembranças. Foto: Fábio Costa e Silva/ Acervo Museu Sankofa Memória e História da Rocinha

Sobre o autor: Fernando Ermiro da Silva é morador, nascido e criado na favela da Rocinha, doutorando do Programa de Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, Mestre em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas e graduado em História. Coordenador do Museu Sankofa Memória e História da Rocinha, organizador do Livro “Contos da Rocinha: Memória Feminina em Três Tempos” e autor do conto infantil “Férias, Pipas e um pé de Jamelão” pela Coleção Literária Besouro.


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