Neste Mês da Mulher, o Que a Trajetória de Carolina Maria de Jesus Tem a Dizer sobre o Brasil de Hoje?

Contribuições de Uma Intelectual Preta e Favelada Retrata(ra)m o Brasil

Carolina Maria de Jesus em 27 de maio de 1952. Foto: Norberto Esteves/ Jornal Última Hora, São Paulo. Coleção: Arquivo Público do Estado de São Paulo
Carolina Maria de Jesus em 27 de maio de 1952. Foto: Norberto Esteves/ Jornal Última Hora, São Paulo. Coleção: Arquivo Público do Estado de São Paulo

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Um Clássico da Literatura Brasileira

Carolina Maria de Jesus tem muito a dizer sobre o Brasil. Com uma escrita carregada de sentimentos e indignações, ela reflete sobre uma realidade dura vivida não só pela escritora, mas por milhões de brasileiras e brasileiros até os dias de hoje. Suas obras são documentos que atestam a resistência de uma mulher preta e favelada. Saindo do interior de Minas Gerais, ela se mudou para a Favela do Canindé, na região central de São Paulo, de onde sua produção literária e poética conquistou espaço na literatura nacional e na luta contra o racismo, além de contribuir de forma determinante para o debate socioeconômico no país. 

A contribuição de Carolina inspirou, inclusive, o surgimento de novas intelectuais negras e periféricas, como Marcelle Leal, mulher negra, cria de Bento Ribeiro, bairro da Zona Norte do Rio, especialista em Carolina Maria de Jesus e doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela estuda as viagens da escritora mineira na América do Sul e também desenvolve estudos na área de feminismos e literatura negro-brasileira. Segundo a intelectual de Bento Ribeiro, assim como faz Carolina Maria de Jesus em sua obra, “não se pode naturalizar o racismo, a pobreza extrema e as desigualdades”. Para ela, essa é uma das mais valiosas contribuições da mais importante autora para o pensamento socioeconômico brasileiro.

Como resultado do impacto de suas obras e sua vida, a exposição Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros esteve aberta ao público no fim de 2023, no Museu de Arte do Rio (MAR), na Praça Mauá, Região Portuária, no Centro da cidade. A exposição contou a trajetória da escritora e como suas obras mudaram para sempre o país.

O seu livro mais conhecido, Quarto de Despejo, hoje visto como um clássico da literatura brasileira, foi traduzido para 13 idiomas, e traz as suas vivências como mulher negra e favelada lidando com os desafios de manter uma família e suas impressões sobre o mundo.

Quarto de Despejo é uma obra que permite compreender o Brasil do ponto de vista de quem vive o país em sua potência mais viva.” — Marcelle Leal

Literatura: a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus durante noite de autógrafos do lançamento de seu livro "Quarto de Despejo", em uma livraria na rua Marconi, em São Paulo (SP), 09.09.1960. Foto: Acervo UH/Folhapress
Literatura: a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus durante noite de autógrafos do lançamento de seu livro Quarto de Despejo, em uma livraria na Rua Marconi, em São Paulo (SP), 09/09/1960. Foto: Acervo UH/Folhapress

As Lições Socioeconômicas de Carolina Maria de Jesus

“Infelizmente, o racismo a persegue até hoje. É preciso lembrar que ainda não há uma organização e preservação adequadas de seus escritos. Alguns dos seus originais ainda estão espalhados pelo mundo ou sob tutela de pessoas que se apropriam indevidamente de seu acervo. A sociedade insiste em marcar o lugar que reserva para as pessoas pretas, mas, em movimentos individuais e coletivos, há resistências e subversões, assim como Carolina.” — Marcelle Leal

Carolina Maria de Jesus e seus filhos
Carolina Maria de Jesus e seus filhos

Ainda há muitas Carolinas pelo Brasil, mães pretas e faveladas, sofrendo as imposições de uma cultura condicionada há séculos para limitar os lugares delas. Mulheres obrigadas a lutar por políticas públicas que as atendam, apesar de serem a maior faixa da população, que constitui a base econômica e social do Brasil.

Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada a ver com estas desorganizações.Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus

A especialista destaca um trecho da obra de Carolina Maria de Jesus em que ela analisa seu próprio sofrimento enquanto mulher, negra, pobre e mãe solo: “Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo”, diz a autora em sua obra. Um relato analítico que não é só sobre a situação dela, mas de milhões de brasileiras como ela, que estão vivas nas páginas de seus livros.

A percepção de Carolina Maria de Jesus, a partir de seu lugar enquanto mulher negra, mãe de favela, faz com que sua obra se constitua como um dos mais sólidos arcabouços teóricos disponíveis sobre a sociedade e mulher negra brasileira. Sua antologia educa uma nação, meio século depois da abolição formal da escravatura, sobre a condição da negra e do negro no país, as mazelas da pobreza material, a fome, a negação do direito à moradia, e a resiliência, intelecto e força da mulher afrodiaspórica. Enfim, Carolina Maria de Jesus educa os brasileiros sobre o Brasil.

Pobre Inocente

Pobre mãe perambulava
Com os olhos fixos no chão
Como poderei viver
Nesta negra condição…

Percorria com o olhar o espaço
E volvia-o novamente ao solo
Com meiguice acariciava
O filho que tinha ao colo.

Pobre mulher, onde vai?
Que triste destino é o teu
Estou procurando o papai
O bom amiguinho meu…

Vivo errante e descontente
Minha existência é uma luta
Eu imploro ao Deus clemente
Só ele é bom e me escuta…

Para onde vamos, filho meu!
Não temos teto, e nem pão
Vosso pai desapareceu
Deixou-lhe na solidão…

Meu filho! Porque sofre assim
Se ainda não tens pecado
Se a morte lembrar-se de mim
Ficarás desamaparado.

Sem ter quem vele os teus passos
Com carinhos e sacrifícios
Tu cairás nos laços
Que são os péssimos vícios.

A mãe perambulando
Tudo isto lhe vem na mente
Contempla o filho e chorando
Exclama—pobre inocente!

— Antologia Pessoal, Carolina Maria de Jesus

A doutora em teoria literária destaca que é preciso dar apoio às mães negras e de favela com legislação, políticas públicas e orçamento. Para Marcelle, é preciso ofertar vagas em creches públicas, criar espaços de cuidado e acolhimento às crianças de mães e pais que trabalhem ou estudem fora do horário de funcionamento das creches, como proposto por Marielle Franco na Lei do Espaço Coruja, além de programas sociais de transferência de renda e focados em aumentar o acesso às escolas, universidades e mercado de trabalho de maneira digna. Além disso, é fundamental que intelectuais negros, como Carolina Maria de Jesus, sejam lidos e estudados por todo o país.

Carolina Maria de Jesus, uma das maiores intelectuais do Brasil.
Carolina Maria de Jesus, uma das maiores intelectuais do Brasil.

Nesse debate, as contribuições da escritora e de sua obra são bastante significativas para a discussão racial e socioeconômica no Brasil.

“A vulnerabilidade social precisa ser combatida pelo poder público e não apenas servir de alimento para assistencialismos de esferas privadas. Carolina Maria de Jesus traz para o centro do debate as sombras coletivas que, ao longo de muitos anos, o país insistiu em colocar embaixo do tapete. As discussões socioeconômicas estão em sua produção, conforme a descrição em seus cadernos, da cidade como a sala de visita e a favela como o quarto de despejo, na qual as questões raciais também estão entrelaçadas. Além disso, expõe a situação da comunidade negra do país.” — Marcelle Leal

Embora Carolina tenha dado suas contribuições para o país, segundo Marcele, o apagamento de sua literatura é uma realidade triste, que se deve ao racismo, ao classismo e ao machismo do mercado editorial, composto, sobretudo, por homens brancos, de classe média, e com diploma universitário, que são cegos para sua importância.

“[É preciso] reelaborar esses limites, de forma que esta arte não se restrinja ao domínio de uma minoria, mas componha-se de maneira ampla, inclusiva e plural. O desafio está não só na produção, mas também na construção de público-leitor e crítica especializada além da distribuição. Insisto, uma vez mais, na luta por políticas de acesso à educação e cultura e, também, de apoio financeiro, porque estes recursos ainda estão concentrados nas mãos de poucos e são fundamentais para fazer o movimento acontecer. Já avançamos em relação há décadas, mas ainda há muito o que conquistar.” — Marcelle Leal

Ao fechar a entrevista, Marcelle Leal cita um poema sem título de Carolina, publicado como preâmbulo na abertura do capítulo “Diários no Quarto de Despejo” no livro Meu Estranho Diário, na década de 1950. De acordo com a especialista, este trecho é fundamental pois deixa evidente o pensamento dela sobre raça, racismo e antirracismo, além de resumir a posição do preto no Brasil pós-abolição.

Sem título

Muitas fugiam ao me ver 
pensando que eu não percebia,
Outras pediam para ler,
Os versos que eu escrevia.

Era papel que eu catava
para custear o meu viver.
E no lixo eu encontrava
livros para eu lêr.
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer 
Num país que predomina o preto.

Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo estes versos ao meu país 
se e que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz.

Meu Estranho Diário, Carolina Maria de Jesus

Sobre o autor: Igor Soares é jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é redator de home no Portal iG, contribui com o #Colabora e atua como freelancer. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos e segurança pública, já tendo passado pela redação do Estadão e produzido reportagens para a Folha de São Paulo.


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