Se os morros falassem, o Morro do Tuiuti teria muito o que dizer. Por mais de 200 anos foi testemunha de muitas das principais transformações físicas e sociais no Rio de Janeiro.
Muita história
Quando a família real portuguesa aportou no Rio em 1808 fugindo do exército de Napoleão, a cidade se transformou, da noite para o dia, de um remanso colonial adormecido em uma metrópole imperial. A nova sede do poder passou a ser o Palácio Real de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, a um passo do Morro do Tuiuti. Popularmente conhecido como a Versalhes dos Trópicos, o palácio estava localizado fora dos limites da cidade. Contudo, a gradual expansão urbana, acelerada pela inauguração de uma linha de trem em 1858 e um novo sistema de bonde em 1870, trouxe o palácio para dentro da cidade. O caráter aristocrático desse processo de instalação ainda hoje é visível na riqueza desbotada de grande parte da arquitetura na área.
Foi a curiosidade que levou Gleice Valadares, nascida e criada na favela do Tuiuti, a mergulhar nos arquivos da cidade e revelar a história do morro. Ela descobriu um mapa antigo que mostrava um reservatório no fim do morro e uma estrada ao lado do morro que conectava Tuiuti à São Cristóvão. Deve ter sido a fonte de água da área ao redor e presumivelmente também do Palácio. “O morro faz parte da história, mas ninguém liga isso à história do morro”, diz Gleice. Da infância ela também se lembra uma velha e grande mansão no morro, que foi abandonada e eventualmente derrubada. Acredita que deve ter sido da mesma época, mas parece não haver registro sobre o uso que era dado à mansão. “A gente aqui… também fazendo parte da história poderia ter preservado a história de uma forma melhor. Mas a gente tem um problema muito sério de memória, de guardar a memoria”.
No Rio imperial, a decadência aristocrática se misturava com uma opressão violenta sob a forma da escravidão doméstica. Contudo, com a abolição da escravatura em 1888 e a proclamação da República um ano depois, a desigualdade tomou outra forma. Antigos escravos e pobres migrantes se juntaram nos cortiços, que se tornaram notórios como recantos de pobreza e febre amarela. Durante a primeira década do século vinte, uma crescente preocupação da elite com a saúde pública culminou nas reformas urbanas do Prefeito Pereira Passos. Os cortiços foram destruídos e substituídos por boulevards, praças e prédios que hoje estruturam o centro do Rio. Os assentamentos informais no Morro do Tuiuti começaram nessa época e embora não haja registro de quem ocupou o morro primeiro, os relatos locais alegam que foram os trabalhadores que reconstruíram a cidade.
Não foi muito tempo depois disso que Dona Margarida chegou ao Morro. Com 97 anos, ela é um registro vivo das mudanças que viu. “Cheguei aqui de Minas Gerais com minha mãe quando tinha 7 anos em 1923. Na época não tinha nada aqui, só grama e alguns barracos”. Alguns anos depois, Dona Margarida foi trabalhar como babá na casa de uma família de classe média na Lapa, viajando para o trabalho no bonde agora já desaparecido. Gostava do trabalho porque era bem tratada por seus patrões e porque proporcionava a oportunidade de viajar pelo Rio e conhecer o Centro e a Zona Sul. “O Rio tinha menos ruas, menos condições”, relembra, “era perigoso, mas não tanto como hoje”. Já era um lugar interessante. Nos anos 20 e 30 o samba estava começando a se desenvolver e ela se lembra que frequentava festas de samba no morro vizinho da Mangueira, onde ouvia músicos legendários como Cartola e Jamelão.
Indústria e a questão de moradia
Já em 1890, depois da queda da monarquia, São Cristóvão começou a perder seu toque aristocrático. Cariocas ricos começaram a optar pelas áreas costeiras da Zona Sul. Por causa das boas conexões de transporte, prédios fortes e a proximidade do porto, São Cristóvão virou a localidade ideal para o emergente setor industrial do Rio. Conforme inumeráveis fábricas e oficinas iam surgindo, o ‘Bairro Imperial’ se tornou o ‘Bairro Industrial’. Os moradores do Tuiuti aproveitaram a abundância de oportunidades de emprego. Quando tinha por volta de 20 anos, Dona Margarida começou a trabalhar em uma fábrica de bebidas. “Eu empilhava as caixas de cachaça dia e noite, mas nunca bebi nada”, ela ri. Era trabalho pesado, mas era estável e pagava o suficiente para se viver. Ela passou grande parte de sua vida profissional na mesma empresa.
A industrialização do Rio e a imigração que isso atraía instigou um enorme crescimento populacional entre 1940 e 1960, produzindo uma enorme crise de moradia. No começo deste processo, um breve e ambicioso programa de construção de moradias lançado em 1946, o Minhocão, tinha como objetivo construir habitações para funcionários públicos de baixa renda e acabou deixando sua marca no Morro do Tuiuti. Projetado pelo famoso arquiteto Affonso Reidy e incluindo uma escola e instalações de lazer, o projeto é largamente visto como o momento alto da provisão de moradias públicas do século 20. Duas décadas mais tarde, com agravamento da crise, o regime militar do Brasil adotou uma abordagem diferente para o problema de moradia. Áreas centrais seriam liberadas para a valorização da terra através de uma campanha brutal de remoções das favelas. Tuiuti foi poupado por causa da terra barata de São Cristóvão de eixo industrial. Do outro lado dos trilhos do trem, na área mais rica da Tijuca, a Favela do Esqueleto não teve a mesma sorte. Foi removida para ceder espaço para a UERJ.
A longa estabilidade econômica que protegeu a área da agitação infligida em outras partes da cidade foi abalada no começo da década de 80 quando se iniciou no Brasil um demorado período de crise econômica. Muitos moradores do Tuiuti perderam seus empregos na indústria e no setor público e ingressaram em trabalhos de serviço menos seguros ou no setor informal. Neste contexto de dificuldades econômicas e altas taxas de desemprego, um novo problema apareceu. O Tuiuti entrou em uma dinâmica de conflito territorial que se espalhava por toda cidade e envolvia disputas entre quadrilhas de tráfico de drogas e os confrontos com a polícia militar. “Sofremos muito”, diz Gleice que cresceu durante a época. Assim como em outras favelas, os moradores tinham que viver com a dominância dos traficantes de drogas, invasões periódicas pela polícia e contínua violência.
Apesar do tumulto econômico e social da época, a qualidade das moradias no Tuiuti já era incomparável com os barracos de madeira da infância de Dona Margarida. Gerações após gerações, meticulosamente, os moradores melhoraram e expandiram suas casas, primeiro reconstruindo-as com tijolos e depois adicionando andares. As melhorias na favela foram completadas com a chegada tardia do estado nos anos 90, trazendo ruas pavimentadas, um sistema de drenagem e espaços públicos paisagísticos. Até hoje os moradores chamam a área central do Tuiuti, um pátio de onde se tem uma vista espetacular da Zona Norte do Rio, de ‘Favela Bairro’ em homenagem ao programa do governo que possibilitou a construção da área.
Ainda de pé
Como sempre, Tuiuti hoje está no centro das mudanças que estão correndo no Rio. A comunidade recebeu uma UPP junto com a comunidade vizinha da Mangueira em novembro de 2011. Embora tenha havido algumas dificuldades, incluindo um duplo homicídio e o roubo da arma de um oficial da UPP este ano, a maioria dos moradores parece ter uma opinião positiva sobre a pacificação. Porém, estão menos entusiasmados com algumas das mudanças que seguiram a pacificação. A Light acabou de fazer sua entrada na comunidade, mas vem pressionando os orçamentos familiares. Enquanto isso, vários serviços básicos continuam sendo de má qualidade e praticamente não há atividades educacionais ou de lazer para crianças e jovens na área. Tuiuti parece sintetizar muitas frustrações que levaram milhares às ruas do Rio em junho. Pela primeira vez em mais de um século, o valor dos terrenos em São Cristóvão tem subido rapidamente e os moradores do Tuiuti têm uma vista para o novo Maracanã. Contudo, se o ‘Bairro Imperial’ está recuperando sua coroa, os moradores não se sentem mais ricos.
Aconteça o que acontecer, Dona Margarida está feliz no morro que ela considera sua casa há 90 anos. “Outro dia eu estava pensando que já subi e desci este morro tantas vezes”. Mas valeu a pena. “É um bom lugar. É um morro que sabe receber as pessoas, e nunca ficamos desesperados, graças a Deus”. Mesmo com tudo que a vida já a atirou, Dona Margarida, assim como o morro, ainda estão de pé.