Em uma cidade repleta de belas distrações–natureza, pessoas, música–muitas vezes é fácil esquecer o que está acontecendo embaixo dos nossos pés. No entanto, oficialmente para mais de um quarto da população do Rio de Janeiro, mas provavelmente muito mais, o que está acontecendo, ou mais apropriadamente, não está acontecendo, é difícil de ignorar. De acordo com o Ministério das Cidades, 30% da população do Rio de Janeiro não está ligada a um sistema de saneamento formal, e até mesmo em áreas com conexões formais, apenas cerca de metade dos resíduos de esgoto é tratado antes de entrar nos cursos das águas e, eventualmente no oceano.
Estes valores são de um cenário em um melhor caso, já que muitas áreas informais na cidade não estão contabilizadas, e até mesmo em áreas que tecnicamente têm saneamento básico, muitas vezes, os sistemas não estão em condições de funcionamento. Para uma cidade crescente em termos de importância global, o Rio está extremamente atrasado na área de saneamento. Mesmo dentro do Brasil, o Rio fica aquém. Em São Paulo, 96,1% da população têm acesso a saneamento básico, com Belo Horizonte ostentando um impressionante acesso de 100%.
Recentemente a CEDAE tem recebido crescentes críticas. Com os acontecimentos recentes, como o rompimento da adutora em Campo Grande em 30 de julho, matando uma criança, ferindo treze pessoas e destruindo casas, bem como os relatórios recentes que revelam que apenas 39,2% da população do município que têm contratos com a CEDAE para a coleta de esgoto estão de fato ligados a uma rede formal, os problemas de saneamento do Rio começam a ganhar a atenção da mídia.
O problema é generalizado em toda a cidade. De acordo com Mauro Kleiman, professor de urbanismo da UFRJ e coordenador do Laboratório de Redes Urbanas e Regiões Metropolitanas do IPPUR-UFRJ, “a situação de esgoto é grave no país inteiro, não apenas em áreas pobres, em áreas ricas igualmente. No entanto, tem um impacto ainda melhor em áreas pobres”.
Por toda a cidade, o acesso ao saneamento tem sido um tema central nos protestos criticando o foco dos investimentos do governo. Na Rocinha, protestos e reuniões lideradas por Rocinha sem Fronteiras e SOS Rocinha Saneamento têm criticado a implantação de um teleférico em vez de saneamento básico. Estes grupos mostram que a população reconhece a importância crucial do saneamento, mesmo que o governo opte por investir em outros projetos mais visíveis, muitas vezes trazendo menos benefícios. O Meu Rio, um site de campanhas e abaixos-assinados em prol do Rio, iniciou o abaixo-assinado Saneamento é Básico! para fazer pressão política para o fornecimento de saneamento básico para os moradores da cidade.
Por que este é um problema sério?
Apesar de cada vez mais moradores fazendo campanhas para o saneamento em suas comunidades, a falta de educação da gravidade do problema continua a agir como uma barreira importante. Em um levantamento recente feito pelo Instituto Trata Brasil, uma organização de interesse público trabalhando para trazer a universalização do saneamento básico para o Brasil, 1.008 brasileiros foram entrevistados de 26 grandes cidades ao redor do país. Quando perguntados sobre quais fatores são mais problemáticas em sua cidade, o esgoto só aparecia como o sexto problema mais grave, depois da saúde, segurança, drogas, educação e transporte.
No entanto, a falta de saneamento está diretamente ligada a uma miríade de problemas de saúde, ambientais e sociais. Outro estudo realizado pelo Trata Brasil mostra que quanto maior o déficit de saneamento básico adequado, menor a expectativa de vida ao nascer. Todos os anos, 217 mil trabalhadores no Brasil faltam ao trabalho devido a problemas gastrointestinais ligados à falta de saneamento, cada um se ausentando em média 17 horas de trabalho. As crianças sofrem por faltar à escola também. Estudos mostram que crianças com acesso a saneamento têm níveis de escolaridade 18% maior do que aqueles sem acesso.
O saneamento básico é apenas isso, um serviço básico, e parte integrante da urbanização. Saneamento serve como um alicerce para melhorar a qualidade de vida, garantindo condições de vida seguras e saudáveis para os moradores. Um estudo recente da Universidade de São Paulo mostra que investir em saneamento é ainda mais importante do que na educação em termos de impacto sobre o combate à pobreza.
Além dos sérios riscos para saúde, a falta de saneamento tem efeitos ambientais negativos generalizados. A maior parte do esgoto do Rio entra, sem tratamento, em rios, lagoas e, eventualmente, no mar. O problema é exacerbado na cidade quando a coleta do lixo é insuficiente. Sistemas de esgoto informais misturam com lixo e ambos são arrastados para o oceano ou agravam desastres naturais durante chuvas fortes. A maioria dos moradores que não têm acesso à coleta de esgoto pertence aos municípios localizados ao redor da Baía de Guanabara, ou que tenham rios e córregos que fluem para ela. Dos 750.000 lares sem sistema de esgoto, calcula-se que 630.000 pertencem a esta área. Consequentemente, 84% do esgoto não recolhido, e sem tratamento na região metropolitana do Rio flui diretamente para a Baía de Guanabara, programada para sediar uma série de eventos olímpicos em 2016.
A histórica falta de investimento
Apesar dos estudos que indicam que para cada R$1 gasto em saneamento, R$4 são salvas na área da saúde, houve uma histórica falta de investimento em saneamento no Rio de Janeiro. Mauro Kleiman explica que no Rio, “Saneamento é visto como um custo, em vez de um investimento”. Historicamente, o governo optou por investir em outras áreas. “Existe uma hierarquização–indústria primeiro, do que sobra vai para o urbano. No urbano tem outra hierarquização, antes nas áreas de renda alta. Os pobres serão sempre os últimos”. Em consequência disso, investimento em infra-estrutura de saneamento tem sido baixo em todas as partes da cidade e, pior ainda nas áreas mais pobres.
No final do século 20, a partir de 1995, o governo criou vários programas com foco na ampliação do acesso à água e saneamento. No entanto, embora esses programas tenham feito melhorias individuais em aumentar o acesso à água, o saneamento foi, em geral, ignorado. De acordo com Kleiman, esses programas tiveram pequenos sucessos “parciais”, principalmente na melhoria do acesso à água, mas fazendo quase nada para melhorar o saneamento.
Uma dificuldade com o saneamento é que, embora ele produza benefícios generalizados, eles são quase invisíveis. Do ponto de vista político, quanto menos visibilidade, menor a prioridade do programa. O investimento está muito longe de onde ele precisa estar. Para universalizar o saneamento no Brasil, o governo precisa investir 0,63% do seu PIB. Atualmente, investe apenas 0,22%.
Promessas não cumpridas
Uma vez que estes primeiros programas começaram em 1995, o governo fez uma série de promessas para melhorar o acesso ao saneamento. No entanto, a grande maioria dessas promessas não foram cumpridas. O PAC inclui muitas promessas para melhorar o saneamento, mas na maioria dos projetos, os resultados ainda estão para serem vistos. O estudo De Olho no PAC, do Trata Brasil revela que, dos 114 principais projetos de saneamento prometidas como parte do PAC, apenas 7% foram concluídos até dezembro de 2011. 60% dos projetos foram paralisadas, atrasados ou ainda não começaram. Mauro Kleiman concorda que, entre as mais recentes promessas do PAC, os investimentos em saneamento não estão sendo bem feitos, fornecendo poucos, se houver, resultados. “Está escrito [no PAC] , esses investimentos em saneamento, mas não estão sendo feitos na realidade, ao menos no alcance que deveria ter”.
O último conjunto de promessas governamentais relativas ao saneamento foi apresentado como parte do plano de legado olímpico. Despoluição da Baía de Guanabara, da Lagoa Rodrigo de Freitas, e de várias lagoas da Barra da Tijuca fazem parte do Plano de Legado Urbano e Ambiental-Rio 2016 da cidade. Hoje, apenas 32% do esgoto que chega a Baía de Guanabara é tratado. O objetivo do Legado é de ter 80% do esgoto tratado até o início dos Jogos, em 2016, uma tarefa difícil na ausência de uma grande intervenção do governo.
Os planos para a elitizada região da Barra da Tijuca, atualmente carente de tratamento de esgoto adequado, incluem a construção e expansão de um sistema de tratamento de água e da rede formal de saneamento.
Jacarepaguá, uma área com condições de esgoto especialmente precárias está programada para receber tratamentos de dragagem, novas estações de tratamento de água, uma expansão da rede de esgotos e a implementação de um programa de educação ambiental.
No entanto, dado o histórico de promessas não cumpridas relacionadas com o saneamento, há uma grande dúvida sobre se estas iniciativas, de fato irão ser concretizadas. Apenas no mês passado, o governo brasileiro vetou uma iniciativa da ONU para avaliar e melhorar o acesso a água e as condições de saneamento no Brasil, um sinal de que o saneamento ainda está longe de ser uma prioridade do governo.
Favela como Modelo
Nas favelas condições diferentes, muitas vezes, pedem soluções diferentes quando se trata de saneamento. Historicamente, nos momentos em que o governo interveio para proporcionar saneamento em favelas, os projetos muitas vezes não foram bem sucedidos. Kleiman, explica: “O problema todo é a ideia de que você pode introduzir redes oficiais de água e esgoto idênticas as das áreas ricas nas áreas pobres. O problema é que não é certo isso. Dá impressão que isso é o certo, tudo precisa ser igual. Falta entendimento de que onde os mais pobres moram não é igual ao resto da cidade do Rio de Janeiro. Nem a estrutura urbanística é igual nem a tipologia de moradia é igual, nem a cultura é igual, o modo de vida não é igual”.
Sistemas de saneamento em favelas com frequência necessitam de ligação em vários pequenos sistemas, em vez de um grande sistema, a fim de se adaptar a diferentes condições, tais como a topografia e as restrições espaciais, e assegurar o acesso de todos os moradores. Educar sobre como usar cada sistema é também uma necessidade. Em muitos casos, projetos de saneamento que têm sido implementados em favelas fracassaram, devido à falta de educação adequada sobre como usar o sistema. Outra grande barreira é a manutenção do sistema. Mesmo após a implementação, os sistemas precisam de manutenção adequada ou há o risco de perder o investimento por completo. Até agora, o governo ainda tem que elaborar um vasto plano de saneamento para as favelas que abordem de forma adequada as suas condições únicas. Planos e promessas a respeito de saneamento são para realizações de pequena escala, e ou não foram concluídos, ou não funcionam para se adaptar às condições do local.
Hoje uma coisa é certa. Com o Rio se preparando para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, investindo em inúmeros projetos de alta visibilidade que proporcionam principalmente um marketing da cidade, o saneamento não deveria estar no final das prioridades públicas. Os cariocas continuam a sofrer os efeitos de sistemas de saneamento básico inexistente ou com mau funcionamento. Como Edison Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil conclui: “A população brasileira não deve permitir que, mais uma vez, o saneamento seja esquecido, em detrimento de outros investimentos, como em estádios, por exemplo, que não trazem benefícios para toda a população, em geral, como o saneamento, comprovadamente, traz”.
Em uma cidade conhecida pela sua beleza natural, os riscos ambientais, de saúde e sociais gerados por uma pobre infra-estrutura de saneamento devem ser levados mais a sério.